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Alto preço de imóveis causa êxodo
populacional na cidade |
Elisabetta Povoledo
Em Veneza
Há quatro meses, Mirella Dalla Pasqua, nascida e criada nesta venerada
cidade construída sobre a água, fez algo que nunca imaginou que faria:
comprou uma casa no continente.
"Eu não tive escolha", disse Mirella, 31 anos, que descreveu a partida
para o lado "terra firme" da lagoa como um trauma. "Eu tenho orgulho de
ser veneziana", ela disse, mas "os preços dos imóveis estão
impossivelmente altos em Veneza e você ainda tem que reformá-los. Jovens
simplesmente não conseguem arcar com tal despesa". Mirella trabalha em
uma loja de luvas perto da Ponte Rialto, no coração histórico de Veneza,
e agora vai diariamente de condução para o trabalho. Ela não é a
primeira veneziana a deixar esta cidade abraçada pelo mar. Nos últimos
50 anos, milhares já participaram do ato coletivo de desaparecimento. De
um pico de 171 mil moradores em 1951, a população do centro histórico de
Veneza caiu para menos de 62 mil. "Nós chegamos a um ponto de colapso, o
ponto em que as coisas começam a se desfazer", disse Ezio Micelli, um
planejador urbano.
Se a tendência continuar, os jornais se queixaram recentemente, até 2030
os venezianos autênticos estarão extintos e o centro histórico reduzido
a uma concha sobrevivendo apenas do turismo. Pois enquanto os venezianos
partem, os turistas continuam vindo. E vindo. Segundo estimativas
recentes, entre 15 milhões e 18 milhões de turistas vieram a Veneza no
ano passado. Em certos dias, o número deles ultrapassa facilmente o de
moradores; durante o Carnaval pré-Quaresma no ano passado, havia 150 mil
turistas por dia. Quando a proporção de turistas para moradores pende
para o primeiro, "não é mais significativo falar em Veneza como uma
sendo cidade", disse Robert Davis, um professor de história italiana da
Universidade Estadual de Ohio. "A cidade já está basicamente perdida",
disse Davis, um co-autor de "Venice: The Tourist Maze", uma critica
cultural divertida e refletida do fenômeno do turismo. "A especulação é
o que acontecerá a seguir." Veneza atualmente depende praticamente do
turismo para sua sobrevivência econômica, apesar dos turistas
complicarem o dia-a-dia para a maioria dos venezianos.
"Você não consegue mais tomar um 'vaporetto'" -o barco de transporte
público que conduz as pessoas pelos canais- "sem encontrá-lo lotado de
turistas e suas malas", reclamou Gianpietro Meneghetti, um gerente de
banco aposentado. Ele disparou uma ladainha de queixas compartilhadas
por muitos moradores, incluindo os preços altos para alimentos básicos e
a incapacidade e viver normalmente entre os invasores estrangeiros. As
lojas que atendem as necessidades diárias -supermercados, sapatarias e
até mesmo cinemas- estão sendo constantemente expulsas por lojas que
vendem vidro de Murano e máscaras de cerâmica. Hotéis, pensões,
restaurantes e lanchonetes também passaram a disputar o espaço, elevando
o preço dos imóveis, um recurso limitado dada a própria natureza de
Veneza.
"As coisas custam demais -se você fica, é apenas porque herdou uma
casa", disse Walter Pitteri, que mora em Mestre, a área em terra firme
da Grande Veneza. Poder dirigir um carro também tem seu atrativo, ele
acrescentou. "Eu nunca voltarei", ele disse. "Eu não estou interessado
em uma cidade na qual é tão difícil de se viver." O preço dos imóveis é
excepcionalmente alto em Veneza, em comparação ao continente -um
apartamento com 100 metros quadrados custa mais de US$ 1 milhão no
centro histórico, e ainda mais no Grande Canal- mas metade ou um quarto
disto em terra firma, do outro lado da lagoa, dependendo da localização.
Mesmo isto é alto demais para alguns: a população da Grande Veneza
também caiu desde seu pico em 1968, de 367.832 habitantes. Atualmente
ele está pouco abaixo de 270 mil, incluindo os moradores da cidade
velha. O prefeito Massimo Cacciari aponta que a evasão de moradores nos
centros das cidades é um problema em muitos lugares. Mas como Veneza é
identificada como o centro histórico em sua lagoa, e não os subúrbios no
continente, o problema da redução da população parece mais incômodo
aqui, ele disse. "Pessoas também não moram no centro da Potsdamer Platz"
em Berlim, disse Cacciari. "Em Veneza, é percebido como um grande
problema."
Algo precisa ser feito para "deter o êxodo e proteger a população
residente", afirmou Cacciari durante uma entrevista em seu gabinete, em
um palácio adjacente ao Grande Canal. Apesar da cidade ter reservado
dinheiro para ajudar casais jovens a arcarem com o custo dos altos
aluguéis ou hipotecas, o dinheiro destinado "mal cobre um pequeno
percentual das necessidades", disse Cacciari. Por meio de um órgão
municipal de desenvolvimento imobiliário, a cidade está construindo
entre 500 e 600 apartamentos em três áreas da cidade que serão alugados
para famílias de classe média, o grupo social que corre maior risco de
"extinção".
"Se você perde a classe média, você fica com uma polarização entre os
muito ricos e os muito pobres, e a cidade perde coesão e se desfaz",
disse Micelli, o planejador urbano, que também chefia o órgão municipal
de desenvolvimento imobiliário. Projetos semelhantes em outras áreas de
Veneza foram bem-sucedidos, ele disse, desacelerando o êxodo para o
continente e "reforçando o tecido social". As autoridades venezianas
também querem atrair novos moradores para o centro histórico e estão
buscando desenvolver oportunidades de emprego fora do setor de turismo.
"Nós precisamos de novas energias de fora", disse Mara Rumiz, a
vereadora veneziana encarregada da habitação. A atual população, ela
disse, "não possui massa crítica suficiente para lançar a cidade em um
novo caminho". Mas estimular novos negócios a se instalarem aqui não tem
sido fácil. "Afinal, não é possível construir uma fábrica aqui", disse
Cacciari, citando o frágil ecossistema de Veneza. Assim, a cidade está
acentuando suas vantagens culturais, crescentes instalações de pesquisa
e programas universitários no centro histórico, assim como promovendo
eventos culturais como a Bienal de artes e o festival de cinema.
Cacciari também está buscando fazer com que o turismo em massa ajude a
pagar as despesas da cidade. Ele está tentando impor um imposto sobre
turismo e fazer com que os moradores locais ganhem dinheiro com o
turismo, para compensar de alguma forma a cidade pelo fardo que
representa para os serviços locais. Tais impostos dificilmente
afugentarão os turistas.
"A demanda por Veneza é inflexível -o aumento dos preços não vai
detê-la", disse Davis, o autor. "As pessoas virão de qualquer jeito."
Enquanto alguns aqui consideram as decisões dos próximos anos como sendo
cruciais para o futuro de Veneza, outros buscam conforto no passado de
uma cidade que muitas vezes antes foi declarada condenada.
"Veneza é uma cidade forte, apesar de sua aparente fragilidade", disse
Franca Coin, presidente da Fundação Internacional Veneza, que levanta
dinheiro para projetos de restauração. "É preciso acreditar no futuro da
cidade. É preciso arregaçar as mangas e fazer um esforço, caso contrário
você não conseguirá nada."
(Tradução: George El Khouri Andolfato)
Texto original
International Herald Tribune
(©
UOL Mídia Global)
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