Conheça a enigmática e turbulenta vida do navegador genovês
Cristóvão Colombo muito antes de ele ir para a Espanha e se tornar o
descobridor da América
RENATO MODERNELLTodos conhecem o Cristóvão
Colombo descobridor da América: o genovês heróico e destemido que
descobriu o "novo mundo" em 1492 ao ousar chegar às Índias pelo rumo do
pôr-do-sol, enfrentando as ondas do Atlântico, conhecido então como mar
Tenebroso.
Mas há outra face da vida de Colombo mais enigmática, que pode ser
chamada de "pré-colombiana": a do mercador errante que negociava
especiarias e escravos antes de entrar no rol dos grandes navegadores da
história.
E, segundo os pesquisadores, é bem provável que Colombo terminasse a
sua vida como um simples comerciante, não fosse um ataque marítimo. Tudo
aconteceu em 1476, quando ele tinha 24 anos e viajava a Lisboa para
negociar vinho e lã como agente do comerciante genovês Ludovico
Centurione.
A flotilha onde ele estava navegava pelo estreito de Gibraltar quando
foi atacada pelo corsário gascão Guillaume de Casanove, conhecido por
Coullon (a semelhança com o nome Colón, versão espanhola do nome de
Colombo, fez com que alguns pesquisadores aventassem a hipótese de que o
próprio navegador tenha se envolvido com pirataria). Após ter o navio
incendiado, Colombo escapou a nado e conseguiu chegar à cidade de Lagos,
no Algarve, sul de Portugal.
Ele permaneceria no país de 1476 a 1485, do fim do reinado de Afonso
V ao início do de dom João II - ou seja, dos 25 aos 33 anos. Foi assim,
como náufrago, que Colombo chegou à nação que detinha, desde os tempos
do infante dom Henrique, príncipe morto em 1460, a elite dos navegadores
ocidentais. Afinal, os pilotos portugueses eram formados na Escola de
Sagres, uma espécie de Nasa da marinha do século 15.
Acolhido num mosteiro de Lagos, Colombo depois se transferiu para
Lisboa, provavelmente atraído pela famosa escola naval - onde não
conseguiria entrar. Na capital portuguesa também vivia seu irmão mais
jovem, Bartolomeo, que era cartógrafo. Cristóvão Colombo acabou por se
envolver com a produção de mapas e cartas de navegação, em paralelo ao
seu trabalho como agente comercial.
Nessa fase "portuguesa" de Colombo, é difícil saber com certeza os
caminhos trilhados pelo navegador. Alguns historiadores dizem que ele
morou o tempo inteiro em Lisboa, fazendo da cidade a base de suas
viagens.
Outros, entretanto, asseguram que ele transferiu-se para a ilha de
Porto Santo, no arquipélago da Madeira, 1370 quilômetros a sudoeste de
Portugal. No local viviam numerosos genoveses que negociavam açúcar - e
lá Colombo ficou por vários anos. Mas não há dúvida de que ele, ao
menos, era familiarizado com essas ilhas espalhadas no mar aberto.
A hipótese de Colombo ter vivido em Porto Santo (que hoje reivindica
essa honra) apóia-se no fato de que, em fins de 1479, ele se casou com
Filipa Moniz Perestrelo. Essa moça era filha do já então falecido
donatário da ilha, o italiano Bartolomeo Perestrelo, e de sua nobre mas
decadente viúva Isabel, herdeira das possessões.
O sogro, que havia convivido com lendários navegadores e com o
infante Henrique (patrocinador de várias viagens marítimas), deixara à
mulher uma coleção de livros, mapas e documentos da Escola de Sagres.
Esse precioso material, dado a Colombo pela sogra, foi o fundamento da
formação náutica e cosmográfica do genovês. Nesse momento, o comerciante
começava a se tornar um capitão.
Entre esses documentos, supõe-se, haveria uma peça essencial: a carta
confidencial de Paolo Dal Pozzo Toscanelli à corte portuguesa. Ali, o
geógrafo florentino assegurava ser possível chegar a Cipango (Japão) e
Catai (China) na contramão de Marco Polo, isto é, navegando para oeste,
tendo as Antilhas como apoio no meio do caminho.
Era um texto com enorme carga de convicção. Toscanelli era como um
Colombo terrestre. Nunca saíra de Florença e falava do mundo com a
naturalidade de quem fala sobre uma laranja na palma da mão. Dava até as
medidas das distâncias no mar. Ora, isso era tudo o que Colombo queria:
um sábio a seu lado, avalizando seus sonhos.
No período em que morou em Portugal, Colombo teve oportunidade de
aprimorar seus conhecimentos práticos de navegação. E o fez diretamente
no oceano Atlântico, ambiente mais complexo e perigoso que o já bem
conhecido mar Mediterrâneo.
Como agente comercial, esteve nos lugares de onde os portugueses
traziam escravos - os guanchos de cabelos vermelhos, das Ilhas Canárias,
e os negros africanos da Guiné e da Mina, já próximas da chamada Zona
Tórrida. Ele foi também à Zona Frígida, ao norte da Europa, onde estavam
os países produtores de estanho e âmbar.
Na baía de Galway, na Irlanda, ficou sabendo de canoas surgidas no
porto, vindas do oeste, trazendo cadáveres de um casal com feições
estranhas. Na Groenlândia, ouviu de um homem chamado Gelik,
sobrinho-neto de um chefe viking, o relato de uma viagem marítima a uma
terra distante feita por esse seu ancestral.
Outros indícios da possível existência de terras desconhecidas, para
o lado do poente, chegaram a Colombo em suas andanças pelas ilhas
portuguesas, que marcavam os confins do mundo conhecido. No Funchal,
capital da Madeira, tomou contato com náufragos que lhe confiaram
documentos e cartas náuticas.
Falavam também de manchas que surgiam no horizonte ao amanhecer e ao
anoitecer, e que podiam ser ilhas. Do piloto português Martim Vicente,
soube de peças de madeira esculpidas pela mão humana, recolhidas no mar
a 2250 quilômetros do Cabo de São Vicente.
Na ilha de Faial, nos Açores, Colombo ouviu falar de plantas, canas e
troncos pertencentes a espécies vegetais desconhecidas na Europa,
trazidos pelas correntezas marítimas. E na ilha do Corvo, no mesmo
arquipélago, ouviu relatos sobre a existência de uma estátua - ou talvez
de um promontório - cuja forma sugeria a figura de um homem que aponta
para o lado oposto ao das Colunas de Hércules, os rochedos que
constituem o portal do Mediterrâneo.
Político ingênuo
Isso tudo hoje nos parece fantasioso, claro. Mas no fim do século 15
esses relatos eram tão comuns quanto as narrativas da existência de
seres alienígenas durante a corrida espacial no século 20. A própria
narrativa do veneziano Marco Polo, o mais confiável guia de viagem do
tempo de Colombo, falava em cidades espetaculares e objetos voadores.
É difícil separar fantasias e fatos nesses misteriosos oito ou nove
anos passados por Colombo em Portugal. No entanto, tudo indica que as
circunstâncias conspiravam para que ele mantivesse os olhos fixos na
rota do poente.
Ele e muitos outros. Lisboa era, afinal, o ponto de encontro de
navegadores, cosmógrafos, exploradores e de toda uma comunidade
mercantil interessada na exploração ultramarina.
Dois homens que Colombo deve ter conhecido pessoalmente foram
fundamentais para consolidar suas convicções. Um deles foi o já citado
Toscanelli. O outro foi o famoso cosmógrafo Martin Behaim, autor de um
dos primeiros globos terrestres de que se tem notícia, ao qual chamou de
"maçã do mundo" (erdapfel), e cujo original está até hoje no
Museu Nacional de Nuremberg, na Alemanha. Também conhecido como "Martin
da Boêmia", Behaim viveu vários anos em Portugal e destacou-se na
comissão encarregada pelo rei de aperfeiçoar o astrolábio.
Quando dom João II subiu ao trono, em 1481, Colombo teve a impressão
de que, afinal, poderia convencê-lo a financiar sua viagem. O chamado
"Príncipe Perfeito" mostrava-se determinado a dar aos empreendimentos
marítimos portugueses a mesma relevância da época de seu tio, o infante
Henrique.
Era de vital importância encontrar um caminho marítimo para a terra
das especiarias. A questão era saber se o novo monarca iria investir
suas fichas na rota pelo sul da África, turbulenta mas confirmada, ou em
um possível caminho pelo oeste, cuja extensão era um ponto de
interrogação. Isso para não falar nas crendices de que os navios podiam
despencar num abismo, ser destroçados por monstros marinhos ou
envolvidos por gigantescas algas.
O obstinado Colombo, é claro, defendia com unhas e dentes a rota pelo
oeste. Como era um joão-ninguém aos olhos da corte portuguesa, Colombo
teve que defender sua tese usando o argumento de Toscanelli e de
estudiosos de outras épocas.
Citava, por exemplo, o filósofo francês Pierre d'Ailly, que em sua
obra Imago Mundi afirmava o seguinte: "Segundo Aristóteles, o fim
das terras habitadas para o leste e o fim das terras habitadas para o
oeste são muito próximos e entre eles há um pequeno mar, navegável em
poucos dias".
Colombo fazia seus próprios cálculos, apoiado em manuscritos árabes,
para tentar convencer os portugueses. Mas cometeu pelo menos dois erros.
O primeiro foi de interpretação: tomou a milha árabe como equivalente
à italiana, quando na verdade era menor. Feitas as contas, isso tornava
o mundo menor do que de fato é - e sua viagem às Índias aparentemente
mais fácil.
O outro erro foi político. Sendo um sonhador, Colombo era ingênuo
demais para se preocupar com as querelas do jogo de poder da corte
portuguesa. Enquanto isso, capitães concorrentes atuavam junto à corte
para levar avante o projeto de circunavegação da África, cuja costa
ocidental vinha sendo mapeada havia décadas.
Outros ares
O rei oscilava. Tudo indica que chegou a ordenar uma expedição
exploratória no Atlântico que voltou sem encontrar nada. Foi um balde de
água fria nos planos de Colombo. A partir daí, dom João II não botaria
mais fé naquele genovês com fama de arrogante que se julgava dono dos
ventos e dos mares e que lhe acenava com as riquezas que seria capaz de
trazer das Índias.
Em 1484, após ser recebido pelo rei ao voltar de Lisboa para a
Madeira, Colombo sofreu um duro golpe. Sua mulher, Filipa, havia
morrido. Depois de um casamento que durara menos de seis anos, ele se
encontrava só, num país estrangeiro, com o encargo de criar o filho
Diogo, de 5 anos.
Viúvo, afastou-se da família Perestrelo, que lhe permitira certa
ascensão social. Sem perspectivas de levar adiante seu projeto, resolveu
abandonar Portugal. Pouco depois de passar a fronteira espanhola,
entregou o menino aos cuidados de frades franciscanos do Mosteiro de La
Rabida e tomou o rumo de Sevilha, na época a maior cidade da Espanha,
com cerca de 120 mil habitantes, o dobro de Lisboa.
Mesmo depois de radicado na Espanha, Colombo ainda voltou a Portugal
em 1488 para tentar, uma vez mais, convencer o rei a apoiar seu projeto
de chegar às Índias pela rota oeste. O momento não podia ser menos
favorável.
Bartolomeu Dias acabava de voltar do sul da África. Os portugueses o
glorificavam pela façanha de ter conseguido passar das águas do
Atlântico para as do Índico ao dobrar o cabo das Tormentas, que dom João
II rebatizaria como cabo da Boa Esperança. Era o fim das esperanças de
Colombo em Portugal.
Na Espanha, o navegador encontrou finalmente um ambiente favorável
aos seus projetos. Após pelo menos duas rejeições, os reis católicos
Fernando e Isabel deram o aval para a viagem. É que, além das vantagens
comerciais, a conquista de novas terras era crucial para que a Espanha
consolidasse seu poder na Europa.
E foi o que de fato ocorreu após o dia 3 de agosto de 1492, quando
Colombo partiu do porto de Palos para mudar o mapa do mundo.
SAIBA MAIS
LIVRO
Retrato Histórico de Cristóvão Colombo,
Marianne Mahn-Lot, Jorge Zahar Editora, 1992
Mais que um tratado sobre as viagens de Colombo, o livro traz um perfil
psicológico do navegador
(©
Aventuras na História)
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