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Cidades visíveis

Italo Calvino


Numa coletânea autobiográfica, Italo Calvino fala sobre os lugares que marcaram sua vida

Jerônimo Teixeira

Em As Cidades Invisíveis, um dos melhores livros de Italo Calvino, o viajante italiano Marco Polo, em conversas com Kublai Khan, traça um panorama prodigioso dos domínios do imperador mongol, falando de cidades tomadas por animais fantásticos, ou suspensas por cordas sobre um abismo. Eremita em Paris (tradução de Roberta Barni; Companhia das Letras; 264 páginas; 39,50 reais), coletânea organizada postumamente por Esther Calvino, viúva do escritor italiano, percorre lugares mais prosaicos, mas nem por isso menos fascinantes. O livro é uma coletânea de material heterogêneo – entrevistas, cartas, ensaios – que pretende compor um painel autobiográfico do autor. A obra também trata de política (incluindo uma autocrítica muito honesta sobre os anos de militância stalinista do autor de O Visconde Partido ao Meio) e, claro, de literatura – mas é sobretudo ao falar de suas cidades favoritas que Calvino brilha.

A vida de Calvino já começa em trânsito: ele nasceu em 1923, em Santiago de las Vegas, em Cuba, onde seus pais, botânicos, trabalhavam, mas passou só dois anos no Caribe. Na Itália, Turim, onde viveu logo depois da II Guerra Mundial, era sua cidade favorita, por suas paisagens que, segundo Calvino, restituíam "o gosto de estarmos vivos". Paris foi seu lugar de exílio predileto, onde apreciava ficar sozinho para escrever. Embora o título do livro mencione a capital francesa, sua peça central é o Diário Americano 1959-1960, conjunto de cartas que Calvino escreveu dos Estados Unidos para colegas da editora italiana Einaudi. Visitando a América na condição de bolsista da Fundação Ford, Calvino encara o país com uma mistura muito italiana de desdém irônico e fascinação infantil. Fica encantado com a bolsa de valores de Wall Street, mas mostra alguma reticência diante das rodinhas literárias de Nova York – não levava a sério a pose inconformista de poetas como Allen Ginsberg, com sua "barba preta e nojenta" e seu "séquito de beatniks ainda mais barbudos e sujos".

Escrito ao sabor do momento, sem a precisão estilística que caracteriza sua obra (inclusive O Caminho de San Giovanni, autobiografia que deixou incompleta), o Diário Americano é um instantâneo precioso dos Estados Unidos no limiar dos anos 1960. Calvino percorre o Meio-Oeste, a Califórnia e até o sul caipira e racista, onde tem um breve encontro com o líder negro Martin Luther King. Mas foi Nova York que marcou sua memória. Em 1984, um ano antes de morrer, ainda diria em uma entrevista: "Minha cidade é Nova York".

(© Veja)


Leia trecho de Eremita em Paris, de Italo Calvino

EU TAMBÉM FUI STALINISTA?

Eu sou um daqueles que deixaram o Partido Comunista em 1956-7 porque demorava a se destalinizar. Mas o que eu dizia quando Stálin estava vivo e o stalinismo era aceito sem discussões dentro dos partidos comunistas? Eu também era stalinista? Gostaria de poder dizer: "Não, não era", ou então: "Era, mas não sabia o que isso significava", ou então "Pensava que era, mas não era mesmo". Sinto que nenhuma dessas respostas corresponde inteiramente à verdade, por mais que em todas elas haja uma parte da verdade. Se quero conseguir compreender e fazer compreender o que pensava então (coisa nada fácil porque, em tantos anos, a gente muda e acabam mudando também nossas lembranças, as lembranças de como éramos), é melhor começar dizendo "Sim, fui stalinista", e depois procurar ver mais claramente o que isso podia significar.

Evito assim enquadrar o problema em suas premissas quer subjetivas (o modo como, na ruína da guerra, um jovem italiano sem experiência ou informação política se descobria, de repente, comunista), quer objetivas (Stálin que queria dizer Stalingrado, a Rússia que detinha a marcha triunfal de Hitler e descia como uma avalanche de ferro e fogo sobre Berlim), não porque não sejam importantes, mas porque podemos considerá-las subentendidas. E vamos ao ponto crucial: quem era Stálin para nós, para mim? (É melhor que eu fale no singular, e veja depois se dessa exploração de minha memória individual se pode tirar alguma consideração geral.) Quem era Stálin entre 1945 e 1953, aqui neste Ocidente que tinha se concretizado a partir da vitória aliada e da Guerra Fria? Que imagem podíamos reconstituir pelos retratos oficiais sempre iguais e pela invisibilidade quase absoluta da pessoa, pelas páginas escritas que desciam de vez em quando no mundo como oráculos e pelo grande silêncio que respondia ao coro incessante dos hosanas?

A essa distância (afortunada distância, mas nem todos sabiam disso), podíamos ter mais de uma imagem de Stálin: para muitos comunistas "da base", que haviam ficado à espera da hora H da revolução, Stálin era a garantia viva de que essa revolução aconteceria. (E era verdade exatamente o contrário, já que Stálin tendia a excluir toda revolução que pudesse se dar fora da esfera de influência direta da União Soviética.) Havia depois o Stálin que dizia que o proletariado deveria recolher a bandeira das liberdades democráticas que a burguesia deixara cair, e esse era o Stálin cuja estratégia servia de apoio à linha do partido de Togliatti, e parecia corresponder a uma perspectiva de continuidade histórica entre a revolução burguesa e a proletária, continuidade que a aliança dos Três (ou Cinco) Grandes contra o Eixo havia selado... Stálin, para mim, era isso? Mas como manter essa imagem com todos os aspectos que a contradiziam de maneira gritante? Tentemos uma aproximação inicial: o stalinismo, mesmo sendo muito compacto, continha para os comunistas ocidentais um - mesmo que limitado - leque de possibilidades políticas e culturais e comportamentais em certa medida divergentes. Havia modos diferentes de ser stalinista, mas a regra do jogo era que quem apoiava uma linha era obrigado a não apresentá-la como alternativa às outras.

No que me diz respeito, Stálin se tornara uma personagem em minha vida apenas ao se deixar fotografar com Roosevelt e Churchill nas poltroninhas de vime de Yalta. O que acontecera antes, a luta com Trotski, as grandes purgas, eram coisas que haviam acontecido "antes", nas quais não me sentia diretamente envolvido. Claro, o mistério das incríveis auto-acusações nos processos de Moscou continuava lançando uma sombra gélida (ainda mais quando o mesmo cenário se repetiu nos processos de Budapeste e de Praga), mas as gigantescas fogueiras da guerra pareciam ter encolhido todas as demais fogueiras e tê-las absorvido numa única fornalha, no clima da tragédia iminente. Mesmo o grande trauma dos que haviam entrado para a luta política antes de nós - o Pacto Germano-Soviético de 1939 - se reequilibrava na história dos anos seguintes (contanto que não fosse observado nos detalhes, aliás pouco conhecidos na Itália). Era a história que começava a partir da revanche contra o nazifascismo dono da Europa, aquela com que eu queria me identificar, e em tudo aquilo que no passado a antecipava. Stálin parecia representar o momento em que o comunismo se tornara um grande rio, já distante do curso precipitoso e acidentado de suas origens, um rio em que confluíam as correntes da história. Poderia então situar assim minha posição: tanto meu stalinismo como meu anti-stalinismo tiveram origem no mesmo núcleo de valores. Por isso, para mim, assim como para muitos outros, a tomada de consciência anti-staliniana não foi sentida como uma mudança, mas como uma concretização das próprias convicções.

Não que não existisse para mim uma outra história, inadmissível com aquela imagem. Seria preferível passar por partidário do maquiavelismo mais cínico a passar por um dos que dizem: "Os crimes de Stálin? E quem é que sabia? Eu nem desconfiava". Claro, ninguém desconfiava da extensão dos massacres (e ainda hoje cada nova avaliação do número de milhões de vítimas desmente a anterior como excessivamente otimista), tampouco se conhecia o mecanismo das grotescas confissões nos processos políticos (buscavam-se explicações refinadas de psicologia revolucionária, de modo que os chefes caídos em desgraça e sem esperanças se autocaluniavam para poder colaborar com o desenvolvimento do socialismo, até mesmo Koestler, que tinha escrito o livro mais impressionante sobre o tema, pecava por otimismo), mas os elementos para compreender alguma coisa - ao menos para compreender que havia muitas zonas nebulosas - não faltavam. Podia-se considerá-los ou não: o que é diferente de acreditar ou não. Por exemplo, eu era amigo de Franco Venturi, que sabia muitas coisas que aconteciam lá e me contava com todo seu sarcasmo iluminista. Não acreditava nele? Claro que acreditava. Só que eu pensava que, por ser comunista, eu deveria ver esses fatos sob outra perspectiva que não a dele, num outro balanço do positivo e do negativo. Ademais, tirar as conseqüências daquilo tudo significaria me separar do movimento, da organização, das massas etc. etc., perder a possibilidade de participar de alguma coisa que naquele momento, para mim, contava mais... Essa não-transmissibilidade da experiência, ou, digamos, escassa eficácia da transmissibilidade da experiência, continua sendo uma das realidades mais desanimadoras do mecanismo histórico e social. Não há como impedir uma geração de tapar os próprios olhos, a história continua a ser movida por impulsos não completamente dominados, por convicções parciais e não claras, por escolhas que não são escolhas e por necessidades que não são necessidades.

A esta altura posso tentar especificar minha definição: o stalinismo se tornava forte com a necessidade, as coisas não poderiam ter seguido outro rumo, embora o vulto da história não tivesse nada de agradável. Só quando cheguei a compreender que, mesmo no interior da necessidade mais férrea, há um momento em que as escolhas são possíveis, e aquelas escolhas de Stálin haviam sido em grande parte escolhas desastrosas, qualquer justificativa para o stalinismo se tornava impensável.

Evidentemente, havia um campo em que a negatividade do stalinismo não poderia se esconder de mim de modo nenhum, era o meu campo direto de trabalho. A literatura e a arte soviética - desde que o período revolucionário havia se esgotado - eram de uma esqualidez tétrica, a estética oficial consistia em rudes diretrizes autoritárias. Não tendo idéias claras sobre como funcionava o sistema de direção soviética, eu não estava inclinado a responsabilizar diretamente Stálin (que, em suas intervenções "assinadas", parecia ser mais aberto que seus seguidores). Explicava-me a situação assim: nos anos em que na urss a direção comunista havia se imposto nos diversos setores da cultura e da vida associada, alguns campos puderam aproveitar a liderança de personalidades criativas em sentido verdadeiramente comunista, ao passo que outros campos - como precisamente a literatura e a arte, após as diversas mortes e os suicídios bem conhecidos - haviam caído nas mãos de canalhas e oportunistas. Alguma coisa, em suma, eu tinha entendido, mas não o mais importante: que o sistema staliniano impunha necessariamente na cultura o predomínio dos canalhas, e que esse sistema era uma monarquia absoluta, e não uma direção colegiada.

Para barrar o caminho dos desonestos ao poder cultural, eu pensava ser necessário realizar, no próprio campo, um trabalho prático e teórico que fosse inatacável do ponto de vista político e que servisse como modelo de valores para a nova sociedade. Por isso, era necessário excluir muitíssimas coisas do próprio horizonte: o comunismo era um funil estreito, que era preciso atravessar para encontrar, do outro lado, um universo ilimitado. Posso então acrescentar este corolário ao "postulado da necessidade" que enunciei anteriormente: o stalinismo tinha a força e os limites das grandes simplificações. A visão de mundo considerada era muito reduzida e esquemática, mas dentro dela eram novamente propostas escolhas e lutas para fazer com que prevalecessem as próprias escolhas, por meio das quais muitos valores que se presumiam excluídos voltavam a fazer parte do jogo.

Por trás disso tudo, eu ainda via como modelo operacional aquela extraordinária convergência entre intelectuais animados por um espírito prático e inventivo e o proletariado com sua exigência renovadora, que fora o milagre da Revolução Russa. Que essa convergência (talvez herança natural da tradição revolucionária russa e socialista, mais do que resultado de uma intenção consciente de Lênin e dos bolcheviques) tivesse durado poucos anos e tivesse sido depois dispersa por Stálin, tirando dos operários toda força reivindicadora e dizimando os intelectuais com o terror, eu só compreendi depois. Eis então que posso introduzir um postulado de alcance mais geral: o stalinismo se apresentava como o ponto de chegada do projeto iluminista de submeter todo o mecanismo da sociedade ao domínio do intelecto. Era, ao contrário, a derrota mais absoluta (e talvez inelutável) desse projeto.

A esse quadro tenho de acrescentar um detalhe mais pessoal: minha utopia de chegar a um conceito do mundo que não fosse ideológico. A atmosfera intelectual daqueles anos era decerto menos ideológica que a de agora, mas o mundo no qual me movia era saturado de ideologia. Eu tinha para mim que, toda vez que Stálin falava, os ideólogos engasgavam. E isso me dava uma grande satisfação. Parecia-me que Stálin sempre estava mais do lado do senso comum do que da ideologia. Essa minha postura foi muito censurada por meus amigos, na época e depois, mas correspondia à necessidade de me situar em relação a meus interlocutores habituais muito ideologizados. Eu estava errado, ao menos no que concerne a Stálin. Porque Stálin não era a superação da ideologia, porque minha superficialidade me levava a me identificar com o pior ideologismo, porque os exemplos de ousadia de pensamento, quando provêm de um monarca, não contam, a não ser pelo fato de que só ele pode se dar a esse luxo porque é o rei. Acrescento então à minha série de conclusões esta outra: o stalinismo parecia estabelecer a primazia da prática sobre os princípios ideológicos, de fato ele forçava a ideologia por ideologizar o que só se sustentava na força.

Só agora começo a compreender como eram as coisas. Digo as coisas entre Stálin e mim, entre o comunismo e mim. O páthos revolucionário, o Outubro Vermelho, Lênin, sempre foram para mim fantasmas distantes, fatos acontecidos outrora, tão irrevogáveis quanto irrepetíveis. Eu havia entrado na problemática do comunismo na época de Stálin, mas devido à história italiana, e precisava fazer um esforço contínuo para que a União Soviética entrasse no meu quadro. Bem cedo eu concluíra que as democracias populares eram uma passagem a mais forçada e artificial e imposta de fora e do alto. No caso da urss, pensava que fosse diferente, que o comunismo, passados os anos das provas mais duras, tivesse se tornado uma espécie de Estado natural, tivesse alcançado espontaneidade, serenidade, sabedoria madura. Projetava na realidade a simplificação rudimentar de minha concepção política, cujo objetivo final era reencontrar, após ter atravessado todas as deformações e as injustiças e os massacres, um equilíbrio natural para além da história, para além da luta de classes, para além da ideologia, para além do socialismo e do comunismo.

Por isso, no "Diario di un viaggio in Urss", que publiquei em 1952 no l’Unità, eu anotava quase exclusivamente observações mínimas da vida diária, aspectos serenadores, tranqüilizadores, atemporais, apolíticos. Essa maneira não monumental de apresentar a URSS me parecia a menos conformista. Ao passo que minha verdadeira culpa quanto ao stalinismo foi precisamente esta: para me defender de uma realidade que não conhecia, mas que de algum modo pressentia e à qual não queria dar um nome, colaborava com minha linguagem não oficial, que, à hipocrisia oficial, apresentava como sereno e sorridente o que era drama e tensão e tormento. O stalinismo era também a máscara melíflua e bondosa que escondia a tragédia histórica em curso.

Os estrondos de trovão de 1956 dissolveram todas as máscaras e proteções. Muitos dos que se reconheceram naquela hora da verdade se religaram depois às matrizes revolucionárias do comunismo (e quase todos aceitaram uma nova imagem mítica, com aspectos diferentes mas não menos passíveis de mistificação: Mao Tsé-tung). Outros tomaram o caminho mais prático do reconhecimento do existente para tentar reformá-lo, alguns com otimismo racionalista, alguns com senso de limite, do pior a evitar, da relatividade dos resultados. Não segui nem os primeiros nem os segundos: para ser um revolucionário me faltava o temperamento e a convicção, e a modéstia do horizonte reformador (do mundo socialista ou do capitalista) me parecia que não poderia me curar das vertigens dos abismos que havia renteado. Assim, mesmo continuando amigo de muitos dos primeiros e dos segundos, fui aos poucos encolhendo o lugar da política em meu espaço interior. (Ao passo que a política ia ocupando cada vez mais espaço no mundo externo.)

Talvez em minha experiência a política permaneça ligada àquela situação extrema: um senso de necessidade inflexível e uma busca do diferente e do múltiplo num mundo de ferro. Então acabarei dizendo: se fui (mesmo a meu modo) stalinista, não foi por acaso. Há componentes de características próprias àquela época que fazem parte de mim mesmo: não acredito em nada que seja fácil, rápido, espontâneo, improvisado, aproximativo. Creio na força do que é lento, calmo, obstinado, sem fanatismos nem entusiasmos. Não creio em nenhuma libertação individual ou coletiva que seja obtida sem o custo de uma autodisciplina, de uma autoconstrução, de um esforço. Se a alguém esse meu modo de pensar pareça stalinista, pois bem, então não terei dificuldades em admitir que nesse sentido ainda sou um pouco stalinista.

(© Veja)

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