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O maestro
italiano Riccardo Muti |
Um dos mais celebrados regentes em atividade, o italiano Riccardo
Muti explica os mistérios de seu ofício
LEONETTA BENTIVOGLIO
Há os que dançam no pódio, os que se contorcem, os que exibem movimentos
enérgicos e cabeleiras ao vento. E há o misticismo da imobilidade, o
ícone do maestro parado e tenso: apenas gestos mínimos nos fazem
perceber um impulso e um chamado. Mas, entre os dois opostos, há muitas
possibilidades intermediárias, uma longa série de gradações de
intensidade motora. Como se sabe, o regente se ergue como um emblema de
domínio. Mas há mais coisa em jogo, algo bem mais profundo que uma
esquemática relação de poder. Um fluxo de energia circular que percorre
os instrumentos e o pódio. E o caráter imprescindível da função:
qualquer orquestra, até a melhor do mundo, não sabe tocar sozinha, como
Fellini nos mostrou em um de seus filmes mais lúcidos e pungentes
["Ensaio de Orquestra"]. Mas as dificuldades desse ofício são imensas.
Não por acaso, são pouquíssimos os que conseguem alcançar os vértices de
uma carreira tão almejada e preciosa. Hoje os melhores maestros, os da
série A, se contam nos dedos de uma mão. Entre eles desponta Riccardo
Muti [1941]. Todos conhecem o seu perfil sério, a atitude determinada,
os movimentos nítidos, o controle férreo dos membros da orquestra. "O
ponto de partida", nos diz Muti, "é a funcionalidade do gesto, que
sempre deve ser um meio, e não um fim, como infelizmente tem acontecido
hoje. Deve-se transmitir à orquestra uma mensagem que, na plasticidade e
na expressividade gestual, comunique a idéia interpretativa, de som,
fraseado e timbre, já explicada e pretendida pelo regente durante os
ensaios. Os braços se tornam extensões da mente".
PERGUNTA - Diz-se que o braço direito pontua o ritmo, e o
esquerdo, a expressão. Como aplica em sua prática pessoal esse esquema?
RICCARDO MUTI - Em linhas gerais, essa é uma divisão aceitável.
Mas não se pode assumi-la como norma absoluta. Há maestros dotados de
extrema facilidade no uso de ambos os braços, como os ambidestros, para
os quais a escansão rítmica pode ser confiada ora ao direito, ora ao
esquerdo. Há alguns que, durante a execução, passam a batuta de uma mão
para outra. Às vezes, para obter um acorde violento ou um som muito
vigoroso, há quem junte as mãos apertando a batuta nos punhos e
movendo-a como a uma espada.
PERGUNTA - Então não há nada prefixado?
MUTI - Nada preestabelecido. Pode-se partir de certas regras e
fazer o contrário. Pode-se reger apenas com a intensidade de um olhar. A
direção de orquestra é e não é uma ciência; um trabalho que se baseia em
indicações precisas e, simultaneamente, muito imprecisas. Todas as
orquestras do mundo, de Copenhagen a Sydney, de Vancouver a Buenos
Aires, de Nova York a Roma, sabem que o ritmo quaternário corresponde ao
primeiro gesto para baixo, o segundo à esquerda, o terceiro à direita e
o quarto para o alto, desenhando uma cruz imaginária, para retomar no
compasso sucessivo.
PERGUNTA - Então há um ponto de partida comum: manter o ritmo.
MUTI - Mas, enquanto um violinista ou um pianista se fecham numa
sala e repetem passagens por dias, semanas, anos, até a superação das
dificuldades técnicas, o regente sempre precisa ensaiar com cem pessoas.
É essa a contradição implícita no meu trabalho: em teoria, deve-se dizer
à orquestra o que ela deve fazer, mas, na prática, é com a orquestra que
aprendemos como se faz.
PERGUNTA - Tomemos o modo como as indicações oferecidas pelo
texto são observadas. Até que ponto a fidelidade ao sinal escrito pelo
compositor é um critério generalizante e, portanto, objetivo?
MUTI - O que significa fidelidade? Antes de tudo, é a observação
do sinal escrito. Mas, por sua vez, as indicações do autor são e não são
exatas. Sobre um pentagrama de cinco linhas estão assinaladas notas cuja
duração é indicada. Às vezes há indicações feitas pelo autor com o
metrônomo, ou seja, o aparelho usado para escandir a pulsação rítmica, a
velocidade. Mas, como dizia Nino Rota [1911-79], o compositor que ativa
o metrônomo de noite, na manhã seguinte o encontra quase sempre
descompassado. Houve debates violentos a propósito dos metrônomos de
Beethoven. Há quem tente respeitá-los ao pé da letra; há quem diga que,
daquele modo, as sinfonias são inexeqüíveis; há quem defenda que
Beethoven tinha um metrônomo defeituoso. Um ato de "Parsifal" [de
Wagner] nas mãos de um regente pode durar 20 minutos a mais do que a
execução da mesma obra por um outro intérprete.
PERGUNTA - A cada vez, o sr. faz uma leitura analítica da
partitura, que antecede o ensaio e que visa a distinguir o essencial do
supérfluo. De que maneira se percebem as estruturas fundamentais do
discurso musical, aquelas que devem emergir na execução?
MUTI - O trabalho do regente pressupõe um estudo aprofundado da
composição. É importante, por exemplo, o conhecimento do peso sonoro dos
instrumentos, e logo se percebe se uma partitura é bem escrita ou de
modo impróprio. Houve grandes compositores, como Schumann e Brahms, que
tinham alguns limites na orquestração, ao passo que as partituras de
Tchaikovsky são perfeitas, assim como as de Haydn, Mozart e Schubert.
Cabe ao regente equilibrar o que parece desequilibrado na arquitetura da
passagem.
PERGUNTA - É verdade que a escola de regência alemã,
diferentemente da italiana, sugere um gesto que retarda o ataque da
frase musical?
MUTI - São lugares-comuns a serem desfeitos. Na realidade, cada
maestro tem o seu gesto. Pensemos em Furtwangler [maestro alemão,
1886-1954]. Quando o vemos reger em filmes, se nota um gesto que se
estende em profundidade, freqüentemente sem indicar o momento em que a
orquestra deve começar, o que faz com que, às vezes, não se entre
perfeitamente em conjunto. Mas essa profundidade e o conseqüente
descompasso milesimal entre um instrumento e outro provocam uma espécie
de deslizamento do som que resulta naquela sonoridade larga e profunda
que se tornaria o protótipo da sonoridade germânica. Quando trabalho com
a Filarmônica de Viena, se quero obter um som muito profundo, uso um
gesto que não é um golpe seco, mas algo como se afundasse no terreno. E
os músicos respondem com um som denso e escuro.
PERGUNTA - Diz-se que a escola italiana é mais nítida e
brilhante que a alemã. Toscanini [1867-1957], da escola de que o sr.
descende, era um modelo de limpidez.
MUTI - Ele tinha um vigor rítmico controlado por um gesto
imperioso e inexorável: mirava o essencial. Outro pilar da regência
orquestral foi o austríaco Karajan [1908-89], que levou a um fraseado
mais acurado e a um som mais polido. Mas sua gestualidade também era
controlada e avessa a efeitos. Karajan foi a síntese entre a exigência
rítmica de Toscanini e a profundidade de som de Furtwangler. Outros
maestros, como Bruno Walter, Erich Kleiber e Klemperer, tinham gestos
bem diferentes. Por isso me recuso a pensar em uma rígida compartição em
escolas nacionais de regência. A gestualidade de Stokowski [1882-1977],
por exemplo, se baseava na expressividade das mãos, longuíssimas, os
dedos como dez tentáculos, e graças a isso ele criava um som perfumado e
cheio de cores, que ainda hoje caracteriza a Orquestra da Filadélfia,
que dirigiu por muitos anos. Stokowski não pode ser catalogado nem na
escola italiana nem na alemã. Seguindo uma definição do grande maestro
alemão Carlos Kleiber [1930-2004], eu diria que há três tipologias de
regentes, e não escolas.
PERGUNTA - Quais?
MUTI - O piloto, o mecânico e o piloto-mecânico. O piloto conduz
magnificamente um carro, ou seja, uma orquestra, preparada por um outro.
O mecânico conhece a máquina a fundo, do motor até as mínimas
engrenagens, e explica tudo à orquestra, mas não dirige bem, e o
resultado fica no plano teórico, sem uma realização concreta. O
piloto-mecânico sabe ajustar o carro e também guiá-lo de modo impecável.
Hoje os pilotos-mecânicos quase desapareceram, e os que triunfam são
diretores-pilotos, com graves conseqüências para as orquestras. Um
piloto-mecânico extraordinário era Karajan. De qualquer modo, o ideal do
maestro (e vimos isso justamente com Karajan, sobretudo nos últimos
anos) é reduzir sempre a gestualidade.
PERGUNTA - O corpo deve movimentar-se pouco? Não é o que parece
quando vemos alguns maestros contemporâneos...
MUTI - Há regentes que exibem um "passeio" no pódio. De resto,
ainda é difusa a idéia do maestro-domador, que estala a chibata no ar,
como se a orquestra fosse composta por uma massa de escravos. Mas,
quando vemos as filmagens de Toscanini, percebemos que ele estava sempre
parado, bem plantado sobre as pernas. Ormandy, mítico regente da
Orquestra de Filadélfia depois de Stokowski, era um adorador de
Toscanini, que ele sempre trazia em efígie no fraque; e, assim como
Toscanini, ele não dava um passo.
PERGUNTA - No entanto um grande regente como Leonard Bernstein
tinha um estilo tão movimentado que às vezes parecia dançar.
MUTI - Era um caso singular, uma natureza extrovertida. Mas
também ele, quando imergia profundamente na música, se tornava
essencial. Em certos momentos, o gesto se transforma quase num estorvo
para o regente, como uma membrana colocada entre ele e os músicos. Temos
vontade de conduzi-los para a própria idéia por meio de uma troca
não-visível, elétrica, incorpórea. Karajan dizia que o máximo para um
regente seria preparar uma orquestra a ponto de, durante o concerto,
parecer que era a orquestra que conduzia o maestro, e não o contrário. A
simbiose alcançada deveria ser de tal ordem a tornar o gesto necessário
apenas em momentos cruciais: uma mudança de tempo, uma ênfase a ser
recordada.
PERGUNTA - O sr. é feliz no pódio. De vez em quando, uma
intensa felicidade ilumina o rosto do maestro.
MUTI - Às vezes se tem a impressão de agarrar alguma coisa. Mas
eu nunca fico satisfeito. Porque é impossível realizar 100% daquilo que
se deseja: há muitas variáveis. O êxito depende de você, da orquestra,
do público, do ambiente.
Mas, durante uma execução, pode haver instantes em que se sente
realmente vibrar em uníssono, numa fusão de quem toca com quem dirige e
com a própria sala de concerto. Que, assim como todo momento de
felicidade absoluta, dura pouco e se dissipa num sopro.
(A íntegra deste texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias)
(©
Folha de S. Paulo)
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