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Guarnieri é sepultado ao som de A Morte de Zambi

Milton Mansilha/AE

Enterro de Gianfrancesco Guarnieri. À direita, seu filho Paulo


Canção tema de Arena Conta Zumbi, uma das obras-primas do dramaturgo, foi puxada pela atriz Marília Medalha, na cerimônia que contou com a presença de cerca de 100 pessoas, entre parentes e amigos

Flávia Guerra

SÃO PAULO - “Zambi, meu pai. Zambi, meu rei. Última prece que rezou. Foi da beleza de viver ... Meu rei guerreiro diz adeus. ...Zambi morreu Se foi, mas vai voltar Em cada negrinho que chorar.”

Gianfrancesco Guarnieri morreu, mas vai voltar cada vez que o brasileiro real e operário ocupar o lugar principal de um palco. Esta era a sensação de certeza, a da continuidade da obra de um dos maiores dramaturgos do Brasil, no final da tarde deste domingo, quando amigos, familiares e fãs entoaram a canção acima, A Morte de Zambi, de Arena Conta Zumbi, durante o momento de despedida no cemitério Jardim da Serra, em Mairiporã, que contou com a presença de cerca de 100 pessoas. Guarnieri morreu na tarde deste sábado, aos 71 anos, em São Paulo. Ele estava internado no Hospital Sírio-Libanês desde o dia 2 de junho com insuficiência renal.

Arena Conta Zumbi foi uma das obras mais importantes da carreira de Guarnieri ao lado do seminal Eles Não Usam Black Tie. “Ele foi o primeiro homem a colocar a realidade do Brasil em cena”, dizia Sérgio Mamberti. “Foi o responsável por uma nova dramaturgia brasileira. Me orgulho muito dele, que costumava dizer que eu era mais parecido com ele que os próprios filhos”, afirmou Everton de Castro.

Ao velório, fechado para amigos e familiares, no hospital Sírio-Libanês, onde estava internado desde junho, também compareceram Antônio Fagundes, Eva Wilma e Renato Consorte.

O presidente Lula, mesmo distante, declarou: “Nos últimos dias perdemos duas pessoas importantes para a cultura brasileira, Raul Cortez e, sábado, o Guarnieri. Não vou pedir um minuto de silêncio porque certamente eles não gostariam. Se a gente pudesse pedir um minuto de bagunça ficaria melhor com o que representavam esses dois monstros sagrados da cultura brasileira."

Bagunça não houve. Mas a cantoria emocionou. Puxada pela cantora e atriz Marília Medalha, que esteve em cartaz com Arena Conta Zumbi, a canção foi o grito de guerra de uma geração que lutou para se fazer ouvir. “Ele mudou a forma de se fazer teatro no Brasil. Mesmo sendo italiano, soube captar e expressar muito bem a essência do brasileiro”, declarou o governador Cláudio Lembo, que esteve ao velório.

"Ele foi homenageado e recompensado em vida pelo que fez. Ele sempre fazia questão de dizer que iria partir com a contabilidade zerada, pois havia sido tratado com muito carinho e consideração”, disse Vanya Sant´Anna, mulher de Guarnieri há 41 anos, com quem teve três filhos: Cláudio, Fernando e Mariana. Eles, ao lado dos irmãos Paulo e Flávio, fruto da união de Guarnieri com Cecília Thompson, esperaram a noite cair para se despedir do pai, enterrado numa colina.

Guarnieri mudou os rumos da dramaturgia nacional

Em 1958, aos 24 anos, Guarnieri mudou os rumos da dramaturgia brasileira com a obra Eles não Usam Black-Tie, que explorava as relações trabalhistas a partir de uma greve de operários. Mas, como ator, foram outras dezenas de criações inesquecíveis no teatro, cinema e televisão. E ainda escreveu mais de 20 peças, sem contar episódios para casos especiais ou seriados.

Mas foram outras dezenas de criações inesquecíveis no teatro, cinema e televisão. Seu último papel foi na novela Belíssima, como Pepe. A participação teve de ser interrompida por causa da doença.

Guarnieri escreveu também mais de 20 peças, sem contar episódios para casos especiais ou seriados. Recebeu quatro prêmios Moliêre Filho de um maestro e de uma harpista, tinha ouvido musical e foi parceiro de grandes compositores, criando canções para musicais como Marta Saré, com Edu Lobo - músicas como Upa, Neguinho - ou Castro Alves Pede Passagem, com Toquinho.

Guarnieri nasceu em Milão, Itália, no dia 6 de agosto de 1934, filho dos músicos Edoardo e Elsa de Guarnieri. Em 1937 seus pais migraram para o Brasil e foram morar no Rio, onde ele morou até 1953, quando mudou-se para São Paulo.

(© Agência Estado)


Personalidades do teatro lamentam morte de Guarnieri

 
SÃO PAULO - "A bruxa está solta", disse a atriz Fernanda Montenegro sobre a morte do dramaturgo e ator Gianfrancesco Guarnieri, na mesma semana em que as artes cênicas brasileiras perderam o ator Raul Cortez. Guarnieri morreu na tarde deste sábado, 22, aos 71 anos. Internado no Hospital Sírio-Libanês desde o dia 2 de junho com insuficiência renal, ele estava sedado desde quinta-feira. Personalidades do teatro nacional lamentaram a morte.

Fernanda Montenegro, atriz
"A bruxa está solta. Está indo embora toda uma geração de ouro e não há reposição de peças. Trabalhamos tanto juntos, fizemos Black-tie, teleteatros, novelas. Meus Deus, tivemos um reencontro emocionante em Belíssima. Mesmo doente ele era um menino no palco, tocava a platéia no coração. Além de um grande ator, era um homem de ação política, visão social e um amigo e tanto."

Nicete Bruno, atriz
"Trabalhamos muito na TV, tanto eu como o Paulo (Goulart) tínhamos uma amizade e uma admiração muito grande por ele. Nossos filhos cresceram juntos, brincavam juntos. Perdemos um homem de valores extraordinários, tão grandiosos que ficarão para sempre em nossa memória."

Zé Renato, dramaturgo
"Com as mortes de Guarnieri e Raul (Cortez), todo um tempo se acaba. E esse tempo que desaparece a gente nunca mais vai recuperar. Guarnieri deu uma imensa contribuição de vida, de trabalho e de dedicação. É um momento muito triste."

João Batista de Andrade, cineasta e secretário de Estado da Cultura
"Lamento profundamente. São duas perdas tristes, dolorosas para a Cultura, a dele e a do Raul Cortez. Guarnieri tem um significado imenso para a cultura brasileira, ajudou a criar toda uma geração, ensinou a pensar, a reformular idéias no Teatro de Arena. Eu o dirigi em dois filmes, Eterna Esperança (1969) e A Próxima Vítima (1982). A secretaria da Cultura vai criar uma manifestação para reverenciar esses dois atores, Guarnieri e Cortez."

Benedito Ruy Barbosa, dramaturgo
"Ele é o grande responsável por eu ter iniciado minha carreira de dramaturgo. Ele me incentivou a escrever minha primeira peça e, quando foi assisti-la, invadiu o palco e puxou os aplausos da platéia para uma das cenas.Até então eu era uma jornalista que tinha 5 empregos para me manter. O Guarnieri era assim, uma inspiração. Fez duas participações especialíssimas em novelas minhas (Terra Nostra e Esperança), mas já estava doente. Perdi um mestre."

Zé Celso Martinez Corrêa, diretor teatral
"Um excelente ator, maravilhoso. O potencial era extraordinário. Excelente compositor. Um homem de teatro, de TV, de cinema, completo. Agora vai fazer companhia a Raul Cortez, e devem estar impressionando todo o Olímpio de Dionísio. Ele era um sujeito que sempre lutou pela transformação. A morte não é um obstáculo. Fica a obra, o afeto dele."

Esther Góes, atriz
"Que pena. Estava no auge da sua vitalidade. Ele ajudou a me formar, no Arena. Eu era do teatro infantil, e aprendi muito com eles: Guarnieri, Boal, Milton Gonçalves, Miriam Muniz, Dina Sfat, Paulo José. Há interpretações que marcam o teatro, como o Renato Borghi no Rei da Vela. E O Tartufo de Guarnieri, eu disse isso a ele, foi inesquecível, deslumbrante. Ele deu vida real, credibilidade absoluta ao personagem. Não quis fazer a comédia, embora tivesse o recurso para fazer a blague. Que pena, ele e o Raul. Além de tudo eram corajosos, autênticos. E que não vergam. Falta gente que não verga."

Bete Mendes, atriz
"Grande amigo, grande talento, grande companheiro político, tinha uma sensibilidade incrível e uma família maravilhosa. Sua obra é uma referência para o teatro brasileiro porque ele fez coisas maravilhosas, como Um Grito Parado no Ar, Arena Conta Zumbi. Fiz a Maria no filme Eles não Usam Black-tie, papel que foi aumentado no cinema, um presente que ele e o Leon Hirshman me deram."

Milton Gonçalves, ator
"Gianfrancesco foi um dos primeiros espectadores da minha vida artística e companheiro há quase 50 anos. Ele tinha um projeto para o Brasil e acreditava na palavra como instrumento da mudança, hoje isso é cada vez mais raro. É muito duro perder amigos como ele, e também Raul Cortez, que têm a mesma maneira de ver o mundo e a mesma idéia de como mudá-lo. Ele foi meu amigo, meu irmão, meu mestre e, ás vezes meu aluno. Estou muito triste."

Alcione Araújo, escritor e dramaturgo
"Ele é a referência em dramaturgia para todos que fizeram teatro a partir dos anos 60, Vianinha, Paulo Pontes e mesmo aqueles que quiseram contestar suas idéias mais tarde. Trouxe para o palco as questões urbanas e, em sua peça Eles não Usam Back Tie, apareceu no teatro brasileiro o homem de macacão. Pessoalmente era doce, muito comprometido idelogicamente, mas sobretudo afetivamente com o Brasil e nossas questões. Nunca foi teórico ou polemista, mas realizou uma grande dramaturgia."

Claudio Lembo, governador de São Paulo
"Guarnieri teve uma grande qualidade que foi a concepção do teatro de Arena - uma válvula de escape que apresentava temas políticos e peças brasileiras. Soube retratar de forma notável uma realidade que sempre estava escondida. Foi inovador e mudou o teatro brasileiro."

(© Agência Estado)


Guarnieri é enterrado com canção teatral

Na despedida, amigos e familiares do ator e dramaturgo, morto no sábado, entoam parte de "Arena Conta Zumbi"

Em cerimônia discreta, com cerca de cem pessoas, corpo do dramaturgo, vítima de insuficiência renal, é sepultado em Mairiporã

DA REPORTAGEM LOCAL

Numa cerimônia rápida, discreta e serena, o ator e escritor Gianfrancesco Guarnieri foi enterrado ontem em Mairiporã, município a 40 km de São Paulo. O dramaturgo morreu no sábado, aos 71 anos, vítima de insuficiência renal crônica.

O cortejo fúnebre de 25 carros que partiu do hospital paulistano Sírio-Libanês, onde o corpo foi velado, chegou ao cemitério Jardim da Serra às 16h45. Às 16h55 descia o caixão no platô ajardinado, pontilhado de lápides simples.

Cerca de cem pessoas -entre elas a mulher e os cinco filhos, além de moradores da cidade, amigos e pessoas que trabalharam com Guarnieri- se despediram do ator com aplausos e rosas lançadas sobre o caixão.

Juntos, cantaram um trecho de "A Morte de Zambi", canção composta pelo escritor e por Edu Lobo para a peça "Arena Conta Zumbi", de 1965. "Zambi, meu pai/ Zambi meu rei/ Última prece que rezou/ Foi da beleza de viver."

Feito o silêncio, a cantora e atriz Marília Medalha, que participou do elenco original da peça, gritou: "Viva o grande dramaturgo, o grande poeta Gianfrancesco Guarnieri". E todos responderam com vivas.

Marília disse que era amiga do escritor havia 40 anos, para ela "um dos maiores transformadores do teatro brasileiro". "Ele sempre fez um trabalho de reivindicação social", disse a atriz sobre o autor de "Eles Não Usam Black-Tie". "No velório, cantamos também "Upa, Neguinho" [da mesma peça]."

A mulher de Gianfrancesco Guarnieri, Vânia, disse, após o enterro, que ele já se considerava "homenageado e recompensado em vida pelo que fez". "Ele teve as flores em vida. Não achava que a sociedade ou o país devessem nada a ele. E chegou ao final com a contabilidade zerada com a vida."

Vânia, que disse considerar que Guarnieri "teve uma morte boa, tranqüila, feliz", lembrou o encontro com o marido de 41 anos no teatro, quando ambos interpretavam a peça "Tartufo", de Molière. "E nos casamos no "Arena Conta Zumbi"."

O filho Paulo Guarnieri disse, ainda no velório, que só se dá o verdadeiro valor às pessoas quando elas se vão. "Só 1% dos homens são grandes realizadores. Ele era um deles." Outro filho, Flávio, declarou que o pai deixava um "testamento" para os brasileiros com "Eles Não Usam Black Tie".

Ontem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou uma nota à imprensa lamentando a morte do escritor, segundo ele "uma grande perda para a cultura brasileira".

O governador de São Paulo, Cláudio Lembo, que compareceu ao velório no final da manhã de ontem, disse que Guarnieri foi um dos melhores dramaturgos do Brasil e "um grande dínamo do teatro".

Na noite de sábado, no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, o ator Otávio Martins dedicou a encenação de seu monólogo, "A Noite Antes da Floresta", a Guarnieri.

(© Folha de S. Paulo)


Frases

Ele teve as flores em vida. Não achava que a sociedade ou o país devessem nada a ele. E chegou ao final com a contabilidade zerada com a vida
VÂNIA SANTANA

mulher de Gianfrancesco Guarnieri


Gianfrancesco Guarnieri foi um inovador como dramaturgo e ator. Trouxe as classes populares para a dramaturgia brasileira e as transformou em protagonistas de suas próprias histórias e dramas
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

presidente da República

Foi um grande dramaturgo. E soube captar a essência do brasileiro, mesmo sendo italiano. Guarnieri foi um grande dínamo do teatro brasileiro
CLÁUDIO LEMBO

governador de São Paulo


Foi um dos maiores transformadores do teatro brasileiro
MARÍLIA MEDALHA

cantora e atriz, participou do elenco original de "Arena Conta Zumbi"

(© Folha de S. Paulo)


Artigo

Os que se vão, os que ficamos

JOÃO BATISTA DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

SIM, somos mesmo passageiros, efêmeros.

Ao olhar para o semblante calmo e imóvel de Gianfrancesco Guarnieri no velório do Hospital Sírio-Libanês, surpreendo-me a somar perdas. Em que algibeira teria eu guardado os ganhos, os feitos, as lutas, os prazeres? Em silêncio, dialogo com o silêncio desse amigo de tantas idéias, tantos feitos, tanta generosidade.

Conheci Guarnieri, ainda estudante de engenharia, na Politécnica da USP, início dos anos 1960. Eu tinha, então, já como um ídolo, esse líder do Teatro de Arena, movimento que marcou profundamente minha geração. Vi sua imagem primeiro no pungente filme "O Grande Momento", de Roberto Santos: a imagem de um jovem ator, talentoso, vestindo a camisa de nosso neo-realismo, porta aberta para o moderno cinema brasileiro. Depois, eu o via quase face a face, pois era assim o Arena: atores próximos do público, como numa roda envolvente, em que nos tornávamos participantes da aventura de representar este país tão fascinante quanto difícil. Os personagens desfilavam ali seus dramas, suas malícias, sonhos, entre perigos e glórias, esperanças e desesperos.

Nós, da platéia, vínhamos das escolas, das assembléias, das passeatas, onde a questão nacional e popular nos ocupava mais do que a própria escola. Era preciso mudar as coisas, mudar o país, mudar o poder, a política, construir um novo futuro!

Era o que sonhávamos ali, na roda de palavras e peitos empinados de rebeldia dos atores e seus autores, entre os quais estava Guarnieri.

Vida distorcida

Mas o tempo foi escasso.

Logo estávamos todos, a partir de 1964, sob a ditadura militar com seus 21 anos de violência, exclusão, distorcendo a vida brasileira ainda para muitas décadas. Perdemos, além de vidas preciosas, a energia de uma geração que se preparava para dirigir o país. Vimos o poder deslizar para as mãos de incautos e da escória oportunista que ainda hoje domina boa parte da vida política brasileira, inflando uma perigosa descrença na sociedade.

Ao olhar para a expressão tranqüila do Guarnieri em seu repouso de guerreiro, dialogo com seu silêncio sábio e imagino que tudo poderia ter sido diferente: o Golpe de 64 poderia não ter acontecido, eu teria terminado meu curso de engenharia ainda naquele ano fatídico, e Guarnieri teria desenvolvido ainda mais suas idéias, suas críticas, sua dramaturgia com toda aquela gente que eu via de tão perto no Arena.

O mundo já não era como queríamos, como sonháramos. Viver sob a ditadura nos fez aprender valores antes pouco sedimentados: a democracia, o pluralismo, o Estado de Direito, consciência fundamental na luta pela derrota (e não "derrubada") da ditadura militar. Nos tornamos mais críticos de nossos próprios sonhos, comportamento que Guarnieri já cultivara, precocemente.

Nós o perdemos agora, Guarnieri, isso faz parte da vida. Vivemos pouco e por isso é tão importante o que fazemos e o que fizemos pela vida. Vale a pena ainda, apesar de tanto desacerto, o exemplo, a dignidade, o desconcerto e a repulsa radical a toda injustiça, a toda perseguição, a toda violência, a toda miséria. E a persistente crença de que é possível um mundo melhor.

Ali, de pé, entre familiares desse amigo, consigo imaginar, em seu semblante de calma infinita, o sinal de um leve sorriso. Guarnieri continuará vivendo entre nós como um inesquecível e raro exemplo.

JOÃO BATISTA DE ANDRADE , cineasta, dirigiu Guarnieri em "Eterna Esperança" (1969, em parceria com Jean-Claude Bernardet) e "A Próxima Vítima" (1983). Desde 2005 "está" secretário da Cultura do Estado de São Paulo

(© Folha de S. Paulo)

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