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Morre o ator e dramaturgo
Gianfrancesco Guarnieri |
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Agliberto Lima/AE
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Gianfrancesco Guarnieri |
Beth Néspoli
SÃO PAULO -
Morreu na tarde deste sábado na capital o ator
e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, de 71 anos. Internado no Hospital
Sírio-Libanês desde o dia 2 de junho com insuficiência renal, ele estava
sedado desde quinta-feira.
Em 1958, aos 24 anos, Guarnieri
mudou os rumos da dramaturgia brasileira com a obra Eles não Usam
Black-Tie, que explorava as relações trabalhistas a partir de uma
greve de operários. Mas, como ator, foram outras dezenas de criações
inesquecíveis no teatro, cinema e televisão. E ainda escreveu mais de
20 peças, sem contar episódios para casos especiais ou seriados.
Mas foram outras dezenas de criações
inesquecíveis no teatro, cinema e televisão. Seu último papel foi na
novela Belíssima, como Pepe. A participação teve de ser
interrompida por causa da doença.
Guarnieri escreveu também mais de 20
peças, sem contar episódios para casos especiais ou seriados. Recebeu
quatro prêmios Moliêre Filho de um maestro e de uma harpista, tinha
ouvido musical e foi parceiro de grandes compositores, criando canções
para musicais como Marta Saré, com Edu Lobo - músicas como
Upa, Neguinho - ou Castro Alves Pede Passagem, com
Toquinho.
Filho de imigrantes
italianos, nasceu em Milão na Itália
Guarnieri nasceu em Milão, Itália,
no dia 6 de agosto de 1934, filho dos músicos Edoardo e Elsa de
Guarnieri. Em 1937 seus pais migraram para o Brasil e foram morar no
Rio, onde ele morou até 1953, quando mudou-se para São Paulo. Em
inúmeras entrevistas, creditou à empregada Margarida, que cuidou dele
na infância e adolescência, o “aprendizado” da cultura popular, da
vida nas ruas, no morro, nas favelas cariocas. “A mãe de Margarida
morava no morro, era analfabeta, mas também uma mulher de grande
sabedoria. Foi nela que eu me inspirei para criar Romana.”
Matriarca de Eles não Usam
Black-Tie, Romana foi interpretada por Lélia Abramo na primeira
montagem teatral, por Fernanda Montenegro no cinema e por Ana Lúcia
Torre em 2001, em uma das recentes montagens da peça. Foi também no
morro próximo a sua casa, em Laranjeiras, que conheceu Gimba, uma
espécie de guarda-costas de bicheiro, que mais tarde inspiraria o
malandro e anti-herói que seria o personagem central da peça Gimba.
Ainda garoto, Guarnieri debatia-se
entre duas vocações - a militância ou a poesia. “Desde cedo sentia-me
dividido entre a ação política concreta e o caminho mais
contemplativo, da ação cultural e artística”, afirmou em recente
entrevista ao Estado, em sua casa, em Mairiporã. De certa
forma, ele uniu as duas vocações ao estrear, no palco do Arena, com
Eles não Usam Black-Tie, inaugurando no teatro um novo caminho de
investigação da realidade brasileira.
Coloca operários em
cena pela primeira vez
A obra fez com que a greve de
operários subisse à cena pela primeira vez no País e lhe valeu, entre
outros, o Prêmio Governador do Estado de revelação de autor e o Prêmio
APCA de ator. O sucesso se repetiria 22 anos mais tarde, com a
adaptação cinematográfica dirigida por Leon Hirszman. O filme recebeu
seis prêmios nacionais e dez internacionais, entre eles o Leão de Ouro
para Leon e Guarnieri. Se na primeira montagem teatral ele interpretou
o filho fura-greve Tião, que trai os interesses coletivos em busca da
solução individual, no filme ele assumiu o papel de Otávio, o pai,
operário e líder sindical com um vasto currículo de lutas e prisões.
Sua primeira lição como escritor
veio ao 13 anos, ainda no Rio, quando começou a escrever para o jornal
da Juventude Comunista. “Eu achava que escrever para jornal era
escrever difícil. Ao ler meu primeiro texto, o editor rasgou a matéria
e quase me agrediu fisicamente.”
Expulso do colégio com primeira peça
Mas justamente por ter aprendido
como escrever com clareza e concisão, aprenderia outra lição
importante na sua primeira “tentativa” de escrever uma peça teatral,
no colégio de padres Santo Antônio Maria Zacharias, no Rio. A peça
chamava-se Sombras do Passado e tinha como “alvo” um
vice-reitor prepotente. “Era horrível”, reavaliaria ele depois de
tornar-se autor consagrado. Mas o padre que tomava conta do teatro
gostou, e a peça foi montada. O “problema” foi que Guarnieri
interpretou o personagem principal e, embora a peça tratasse de um
tema que nada tinha a ver com o colégio, ele representou tão bem que
os alunos reconheceram no prepotente protagonista de uma casa o odiado
“vice-reitor” e começaram a gritar seu nome durante o espetáculo. A
peça foi muita aplaudida e Guarnieri foi expulso do colégio.
O duplo talento que explodiu nessa
primeira experiência - para retratar uma realidade observada, ou
vivida, e para interpretar os personagens dessa realidade - jamais o
abandonaria. O episódio escolar seria lembrado mais tarde, em 1961,
quando A Semente foi proibida pela censura na véspera de sua
estréia no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O golpe militar ainda
não tinha estourado e ele já tinha problemas com o poder.
“O texto constitui claro e audacioso
incitamento à subversão da ordem pública, objetivando solapar as suas
bases e a estrutura do regime democrático vigente no País”, dizia o
parecer do censor. Curiosamente, nesse texto, ele criticava a rigidez
do Partido Comunista e a excessiva determinação de líderes da esquerda
que atingia a indiferença com o “lado humano” das causas políticas. O
forte movimento dos intelectuais e da imprensa acabaram anulando a
interdição, e a peça estreou com Cleyde Yáconis, Nathalia Timberg,
Leonardo Villar e Guarnieri no elenco.
Destaque no Teatro
de Arena nos anos 50
Assim que chegou a São Paulo,
Guarnieri decidiu investir no talento que causou sua expulsão no
colégio. Em 1955, ajudou a fundar o Teatro Paulista do Estudante e
ganhou seu primeiro prêmio de ator como protagonista da peça Está
lá Fora um Inspetor, de Priestley. Um ano depois, em 1956, entrou
para o Arena, onde também ganhou um dos mais cobiçados prêmios da
época, o APCA de revelação de ator no papel de George na peça Ratos
e Homens, de Steinbeck, dirigida por Augusto Boal. Na mesma época
foi chamado pelo diretor Roberto Santos para fazer sua primeira
atuação em cinema, no filme O Grande Momento.
Depois do estrondoso sucesso de
Black-Tie, nunca mais parou. Gimba, A Semente,
Ponto de Partida, O Filho do Cão, Marta Saré,
Castro Alves Pede Passagem, Arena Conta Zumbi e Arena
Conta Tiradentes - essas duas últimas escritas em parceria com
Boal - Um Grito Parado no Ar. Foram muitas as peças, em que ele
também integrava o elenco, sempre em boas atuações. E não só no
teatro. Guarnieri integra aquela geração de atores que ajudou a
televisão a dar os seus primeiros passos, seja no Grande Teatro Tupi
ou nas primeiras novelas.
Papéis memoráveis na
televisão
Quem viu, jamais esquecerá sua
criação do personagem Tonho da Lua, o maluquinho da novela Mulheres
de Areia, mais tarde regravada na Rede Globo, com Marcos Frota
vivendo o mesmo papel. Igualmente inesquecível o Jejê, apelido de
Jerônimo Machado, o trambiqueiro da novela Cambalacho, na qual
contracenava, mais uma vez, com a amiga Fernanda Montenegro. Os muito
jovens devem se lembrar de sua participação especial na novela
Terra Nostra, como o “pai italiano” da Giuliana vivida por Ana
Paulo Arósio.
Guarnieri casou-se pela primeira vez
em 1958, com Cecilia Thompson, com quem teve dois filhos, Flávio e
Paulo Guarnieri, ambos atores. Com sua companheira dos últimos 35
anos, Vânia Santana, teve mais três filhos - Cacau e Mariana
Guarnieri, que também seguiriam a carreira teatral - e Fernando.
(©
Agência Estado)
Obra dramática de Guarnieri resgata
coletividade
A convicção de que a realização do homem só se completa por meio do
resgate da coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo
impacto de golpes que a História recente desfechou sobre os projetos e
as práticas socialistas
Mariangela
Alves de Lima
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Divulgação
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Cena de Eles Não Usam Black Tie |
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SÃO PAULO -
Cristãos e marxistas partilham pelo menos um artigo de fé: ninguém se
salva sozinho. Na obra dramática de Gianfrancesco Guarnieri,
construída peça a peça por mais de quatro décadas, a convicção de que
a realização do homem só se completa por meio do resgate da
coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo impacto de golpes
que a História recente desfechou sobre os projetos e as práticas
socialistas. Em Eles Não Usam Black-Tie, primeira peça de um
jovem autor de 24 anos que estreou com grande impacto no Teatro de
Arena de São Paulo em 1958, entrava em cena, pela primeira vez nos
palcos brasileiros profissionais, um coletivo de trabalhadores
brasileiros cujo dilema ético era a solidariedade de classe. O
operário Tião, filho de um líder da classe trabalhadora, trai os
companheiros ao furar uma greve e é, ao final, exilado do morro onde
vivem a família e a moça com quem pretende se casar. Renuncia, enfim,
ao seu lugar de classe em nome do bem-estar individual.
A repercussão dessa primeira peça
entre a crítica e o público fez dela o marco inaugural de uma nova
etapa do teatro brasileiro. Assim como para os trabalhadores, não
haveria salvação individual para os artistas e intelectuais. Era
imperioso, portanto, encontrar alternativas para a expressão estética
do ideário coletivista. Essa primeira peça questionava a um só tempo
os cânones da dramaturgia e da encenação do teatro burguês. Para
encená-la, o Teatro de Arena de São Paulo criou um espetáculo em que a
escassez de materiais e a mobilidade da vida da população operária se
reproduziam nos artefatos em cena, na disposição circular do espaço e
na interpretação que procurava, nos gestos e na voz, a reprodução das
características culturais da comunidade da favela. O que se impunha
como valor, ao mesmo tempo dramatúrgico e cênico, era a autenticidade.
Fenômeno aos 25 anos
Sábato Magaldi observaria mais tarde
que o conjunto, dirigido por José Renato, “não seguiu também a pista
falsa do pitoresco do morro, despreocupando-se da tarefa, quase
impossível na arena, de mostrar a cor local”. Com esse despojamento
material e essa tônica no valor testemunhal da expressão, o espetáculo
peregrinou por diversas capitais brasileiras, foi apresentado em
locais inusitados como circos e sindicatos, e tornou-se pioneiro de
uma estratégia que se tornaria em breve usual entre os grupos de arte
militante: ir à procura da classe social que protagonizava o drama.
Alguns desses procedimentos de
concepção e produção da obra dramática estão gravados como marca de
origem nas peças subseqüentes de Guarnieri. Em primeiro lugar o foco
concentrado sobre a situação de classe das personagens e do drama que
protagonizam. As situações, as opções morais, o ser das suas
criaturas, só se concretiza dramaticamente na interação social.
Gimba, que estreou em 1959 em uma produção do Teatro Popular de
Arte dirigida por Flávio Rangel, era um experimento no palco italiano
que iluminava a vida da comunidade da favela carioca sob outro ângulo,
o da marginalidade. A mitificação do transgressor, uma constante na
experiência das comunidades pobres que até hoje intriga a sociologia
bem-pensante, servia de pretexto para exaltar a potência criadora de
uma comunidade excluída da riqueza e confinada nas encostas dos
morros. Com essas duas peças o dramaturgo é, com apenas 25 anos, um
fenômeno, como nota Décio de Almeida Prado: “Em menos de um ano e meio
de atividade pública como autor, Guarnieri já teve certamente mais
espectadores do que a maioria dos nossos dramaturgos em toda uma
existência dedicada ao teatro”.
O ponto de equilíbrio com A
Semente
Com A Semente, peça que
estreou em 1961 no Teatro Brasileiro de Comédia sinalizando uma
alteração nos rumos de um conjunto até então de perfil culturalista,
também dirigida por Flávio Rangel, a fase de caracterização, de namoro
um tanto quanto idílico com as virtudes de proletariado, cedia lugar a
uma impiedosa análise das virtudes e dos vícios da militância
comunista junto ao operariado. Em perfeito equilíbrio, os dois pratos
da balança se ofereciam à apreciação do público. No protagonista
Agileu Carraro, um sofrido militante curtido por 20 anos de luta, é
notável a entrega ao bem-estar coletivo, o desprezo pela felicidade
pessoal e a confiança inquebrantável no futuro. Mas são também traços
inalienáveis dessa integridade entre teoria e prática a
insensibilidade, a incapacidade para a relação afetiva e a argúcia do
aproveitador que, em nome da “oportunidade política”, explora a dor
dos seus companheiros de fábrica. “Política é incompatível com
sossego!” - afirma Agileu em uma reunião - “E pouco me importa que sua
mulher esteja doente ou que seus filhos comam terra. Há muitas
mulheres doentes e muitos filhos comendo terra. Muitos filhos mortos -
e a hora é de ação.”
As crises internas do Partido
Comunista, nessa ocasião disciplinado por uma orientação
internacionalista nem sempre adequada à realidade brasileira, eram
representadas por cenas que criticavam agudamente a burocratização.
Por outro lado, a selvageria do comportamento patronal permanecia fiel
ao realismo, mostrando que o simples cumprimento da legislação
trabalhista em vigor (bem menos do que luta revolucionária) demandava
dos trabalhadores uma luta permanente. Pelo equilíbrio de forças e
pelo perspectivismo consciente, que abordava a luta proletária pelo
ângulo do afeto, incluía o ponto de vista das mulheres, detalhava a
desvalorização do valor do trabalho e estabelecia, a partir desse
patamar concreto, a discussão política, essa peça permanece até hoje
como uma das mais complexas e perfeitas realizações do corpo da
dramaturgia brasileira. Seus aspectos contingentes, ligados à
existência de uma militância comunista, contribuíram para alijá-la do
repertório contemporâneo. Relida e reencenada hoje, no entanto,
parece-nos de um vigor trágico e pode-se dizer que atualiza o conflito
grego entre as exigências da polis e a necessidade individual. De
qualquer forma, seus contemporâneos souberam reconhecer de imediato a
importância da peça. De um lado da trincheira política o Estado e a
Igreja se obstinaram em condenar a peça enquanto, do outro, artistas,
intelectuais e jornalistas se uniram para defendê-la.
Desafio com a camisa-de-força da
repressão
Falar abertamente sobre a atuação
dos comunistas sob a batuta conservadora de Jânio Quadros e no
interior da atmosfera fanática e dualista da Guerra Fria era, já nessa
ocasião, um desafio considerável aos poderes estabelecidos. Em 1964,
quando o Arena apresentava no seu repertório O Filho do Cão,
uma peça que dava continuidade à investigação da realidade brasileira
enfocando a exploração do misticismo em uma comunidade de agricultores
miseráveis, a situação política do país se radicalizava
institucionalmente por meio de um golpe militar. A temporada,
interrompida por uma medida cautelar enquanto o grupo esperava para
ver quais os riscos que efetivamente corria, não foi retomada. Para um
autor em evidente processo de verticalização temática - a peça
enfrentava o aspecto auto-destrutivo da miséria cultural dramatizando
um episódio de infanticídio - impunha-se o freio inelutável de novas
condições históricas.
Para Guarnieri, como de resto para
todos os artistas e intelectuais da sua geração, os 20 anos da
ditadura militar significaram ao mesmo tempo uma camisa-de-força
imposta aos seus projetos originais e um estímulo para propor formas
de comunicação que, de alguma forma, conseguissem driblar a mordaça.
Os musicais do Arena, obras em colaboração onde é possível distinguir
a sua marca nas tônicas da poesia e na ênfase dada à esperança,
abandonavam a trilha do realismo documental e enveredavam por
narrativas de valor analógico. Arena conta Zumbi (1965),
Tempo de Guerra (1965) e Arena conta Tiradentes (1967)
consolidaram um novo tipo de musical brasileiro, com uma estrutura
fluida e uma lírica combativa inspirada no modelo brechtiano,
exortando à resistência (no caso dos dois primeiros espetáculos) e
encontrando uma forma original para a autocrítica dissimulada da
atuação da esquerda no caso de Arena conta Tiradentes.
Galeria de papéis
De 1964 a 1970, data em que a prisão
e o exílio de Augusto Boal determinam o fim do núcleo ideológico do
Arena, o dramaturgo Guarnieri praticamente se dissolve nesse
empreendimento coletivo de resistência cultural. Escreve em conjunto
as peças, compõe músicas em parceria e se responsabiliza pela
interpretação de personagens com um talento que lhe garante até hoje
um lugar incontestado na galeria dos grandes intérpretes do teatro
brasileiro. Quem já teve o privilégio de ver no palco o ator
Gianfrancesco Guarnieri, não o esquecerá.
Talvez se deva a esse trânsito
simultâneo entre o palco e a escrita - e não só ao treino forçado para
driblar a repressão - a ênfase no simbólico das suas peças escritas
após o fechamento do Teatro de Arena de São Paulo. Escreve peças
menores, curtas e nitidamente circunstanciais, para expressar de modo
direto os efeitos da opressão sobre a consciência e os hábitos de uma
população mantida deliberadamente na irresponsabilidade política ou
para retratar, sob a forma de vinheta, aspectos da experiência
militante. São desse teor duas peças curtas escritas para as “feiras
de opinião”, espetáculos compostos de peças de diferentes dramaturgos.
Mas além da opinião, da reiteração
do credo político e ideológico, dá continuidade a um projeto pessoal
de fazer incidir o foco dramatúrgico sobre a realidade que lhe é
contemporânea, prescindindo cada vez mais do instrumento do realismo e
incorporando ao texto aberturas para a música, para a expressão
poética e para a inventividade plástica da encenação.
Um Grito Parado no Ar
Castro Alves Pede Passagem
estreou em 1971 com uma estrutura semelhante à dos musicais do Arena.
A narrativa da biografia e dos feitos do poeta do povo inseria-se
dentro da moldura pervertida de um programa televisivo populista.
Apropriado pelo reino da mercadoria, o idealismo tornava-se também um
produto inócuo, enfraquecido na sua potência mobilizadora e
transformadora. Com Um Grito Parado no Ar, inversamente, o meio
de comunicação adotado pelas personagens - neste caso o teatro - era
capaz, por si só, de extrair água de pedra. Considerado quase
unanimemente um dos pontos mais altos do teatro brasileiro dos anos
70, o texto dispensava as minúcias narrativas para concentrar-se em um
único ato simbólico.
Uma trupe de artistas ensaia, por
meio de improvisações, um espetáculo que entrará em cena em um prazo
máximo de dez dias. Não há dinheiro para o espetáculo, o reduzido
equipamento vai sumindo durante a ação porque os credores vêm
retirá-lo e, por fim, até a luz do teatro é cortada. No entanto,
durante a improvisação, a alquimia do teatro se completa e, à luz de
velas, os artistas cumprem a dupla missão de transformar-se e
transformar a realidade porque, apoiando-se em documentos, constrói
personagens de valor universal. Ao cândido simbolismo da representação
que se mantém viva sob a chama de uma vela associa-se a complexidade
da transformação da matéria histórica - indicada no texto pelo
depoimento de populares - em signos de profunda significação para os
indivíduos e para a sociedade.
Essa linguagem meio cifrada, que
oculta para estimular a atividade analógica do público e, em grande
parte, para preservar a comunicação emocional das obras, mantém-se até
hoje como um traço característico dos textos de Guarnieri. Botequim,
Ponto de Partida, Pegando Fogo Lá Fora, Anjo na
Contramão e A Luta Secreta de Maria da Encarnação, que
estreou em 2001, são, vistas como um conjunto, alegorias não só dos
acontecimentos que moldaram a vida do País no último quartel do século
20, mas também a história íntima de todas as lutas travadas pela
redenção dos oprimidos. Não são 20 ou mesmo 40 anos que estas peças
simbolizam, mas “Séculos de luta, mulher! Séculos de luta que ninguém
desfaz!”
(©
Agência Estado)
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