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Veneziano quer fazer "vidro brasileiro" com qualidade de Murano

06/07/2006

 

O veneziano Mario Seguso


No país desde 1954, Mario Seguso é um papa no mundo dos cristais e segue tradição que acompanha a família

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO

Mario Seguso, 78, nasceu em Veneza, numa família cujas raízes mergulham até o ano de 1290. No mundo dos cristais, seu sobrenome é quase sinônimo de "vidro artístico de Murano", como costuma dizer. Craque em alquimias cristalinas, gravador de raro talento, esse italiano que veio a São Paulo em 1954, a convite da Cristais Prado, radicou-se em Poços de Caldas em 1965, quando fundou a cristaleria Ca'd'Oro, "para fazer um vidro brasileiro". Leia a seguir trechos da entrevista que concedeu à Folha:

SEGUSO À BRASILEIRA
"Vim de Veneza para as comemorações do 4º Centenário de São Paulo, em 1954, trabalhando como gravador, produzindo peças. Tinha 26 anos -e desde menino tinha a idéia de conhecer o mundo. Meu ambiente, onde eu nasci, na ilha de Murano, era fechado, tudo lá tinha séculos, todos os amigos eram amigos, filhos de famílias amigas ou parentes. Não queria abandonar Murano, mas precisava ter uma experiência fora. Me formei no Regio Istituto d'Arte de Veneza, fiz meu ateliê em 1949 e passei a fazer trabalhos para manufaturas de vidro como Gino Cenedese, Fischer e Salviati. Em 1953, numa mostra internacional do Centro do Vidro Moderno de Murano, participei gravando em cristal um desenho de Kokoschka. E, no ano seguinte, quando apareceu a oportunidade de vir para Brasil, com um contrato de dois anos, da Cristais Prado, do dr. Jorge da Silva Prado, resolvi partir."

NOVOS HORIZONTES
"Em São Paulo, além de gravador, passei a ser designer de cristais. Mas lá na Cristais Prado fazíamos cristaleira de mesa, não havia muito como expandir o lado artístico, a criatividade. Uma pessoa precisa conhecer a fundo o que fazer com a massa vítrea, que é difícil de trabalhar, sai do forno numa densidade que pode ser manipulada por um minuto -e aquele momento, a maleabilidade, depende de ter um bom forno. Dependendo da espessura, da cor do vidro, que pode ter dureza diferente, dependendo da cor. A malícia é que dá a habilidade de trabalhar o vidro. O tempo ensina, traz as descobertas, mas a idade não quer dizer muito. Características, como sentido de proporções, bom gosto, conhecimento da cultura e da história, contam. Há bons mestres vidreiros que se dedicaram ao vidro, mas falta às vezes a eles sair daquele ambiente de Veneza. Há gente de muito talento, da minha idade, primos, amigos, que nunca saíram de lá: faltou a eles abrir a visão. O sol não nasce só em Veneza."

VIDRO ARTÍSTICO
"No passado, na origem desse trabalho de soprar e produzir vidro em Veneza, talvez até Átila, o Huno, tivesse sua parcela de responsabilidade. No Oriente, na atual Istambul, na época do Império Bizantino, os vidreiros de Ravena construíam as fábricas no canteiro de obras das basílicas. Quando chegou Átila, a solução foi o refúgio na ilha de Murano, onde surgiram as fábricas, em 1390. Foi nesse ano que um édito dos doges venezianos, a pretexto de proteger a cidade dos incêndios, evitar que a fumaça atrapalhasse, destinou a ilha de Murano às famílias que faziam vidro. Mas até que ponto foi por amor à cidade e à natureza, ou porque eles detinham um conhecimento importante?"

DESAFIO
"Quero criar um vidro brasileiro com a qualidade do vidro de Murano: luto para isso há 40 anos. A ilha de Murano é depositária da arte de trabalhar com o vidro que remonta aos fenícios, aos egípcios e aos mesopotâmicos. A herança que veio do Oriente é importante. Veneza viveu e enriqueceu também graças ao vidro de Murano, onde se dominava uma ciência. Carrego assim, uma tradição, mas vim para cá para fazer uma arte brasileira. Não faz sentido pintar aqui o Napoleão a cavalo... Quando vim, me apaixonei pelo folclore brasileiro, não queria mais desenvolver temas venezianos."

MUDANÇAS
"Saindo de Veneza, muito moço, me despedi da minha mãe chorando e fui para Gênova, embarquei no Giulio Cesare rumo ao Brasil. Nunca mais andei de navio... Metade da viagem, de 13 dias, fiquei triste -valia a pena deixar a família, os amigos, arriscar? Que será esse Brasil? Lembro de ter passado a linha do Equador, da festa, de nadar e dançar, pensei: onde é que eu vou cair? Mas o Rio foi o cartão de visitas, me deixou saudade. Havia um amigo que me levou para a casa dele. No dia seguinte, alguém da Cristais Prado me esperava para levar à fábrica -eu tive a confirmação de que era aquilo mesmo que eu queria! O único dia triste foi o primeiro dia de trabalho. Colocaram um intérprete -sorte que era vêneto!- que nasceu na fazenda Amália, dos Matarazzo, mas em dialeto. Eu respondia e lá, na fábrica, o dr. Jorge ficava satisfeito de ver como o homem falava bem o italiano, que ele aliás não falava. Na hora do almoço é que veio a tristeza: mandaram eu comer num hotel, o hotel Londres, na Celso Garcia -uma topeira! Um lugar mal cheiroso, com comida horrível, desci cinco degraus, o ambiente era escuro, comi o primeiro bife a cavalo da minha vida e comecei a chorar. Achei que estava estrepado, ia comer mal para sempre..."

VENEZA
"A Veneza da minha infância era tranqüila, mas nem tão serena assim. Meu pai foi para a guerra, eram tempos difíceis também, eu tinha 15 anos. Mas era uma cidade gostosa! Lembro das comidas, do mercado de peixe, dos pequenos polvos. Todo ano, em setembro, ia lá, enquanto minha mãe vivia. Mas ela morreu em 2001, quando caíram na América as Torres Gêmeas. Aí ficou meio chato de viajar, com essa paranóia de terroristas. Devo ir em setembro novamente."

VIDA E VIDRO
"A família é antiga, até hoje há vários parentes meus trabalhando lá: o Archimede, que tinha a sua fábrica com o filho Gino. Há o Giampaolo e o Gianni Seguso. Uns fazem trabalhos tradicionais, com os desenhos clássicos venezianos. Quem tivesse atitude,se tornava vidreiro. E uma fábrica precisa não só de vidreiros: precisa dos que cuidam dos negócios, das matérias-primas etc. Um pouco, Murano foi condenada porque tentou atender os gostos de todos. Há gente que fala que fazemos lá cristal. Mas, desde criança, ouço falar de vidro -"vetro artisco di Murano", compreende? A chegada do gás como combustível melhorou a qualidade do vidro. Antigamente, vinha a lenha da Dalmácia, e uns homens das montanhas a fatiavam. Hoje, com fornos bem construídos, combustível bom, refratário bom, temos resultados melhores."

ENTROU AREIA
"Mais limpa a areia usada na fabricação do vidro, mas bonito ele fica. Hoje, em Murano, quando se quer fazer uma coisa boa, se busca a areia de Fontainebleu, na França, ou na Bélgica. Mandei analisar em Veneza, no Centro Studio, uma areia brasileira, e eles ficaram entusiasmados: "Onde é que tem essa areia?". No Brasil, tem areia boa até dizer chega! Encontrei uma que tinha 99 não-sei-o-quê de pureza. Em Veneza, me disseram que, nos nove ou dez anos de existência do centro de análise, foi a melhor que eles haviam analisado. A formação geológica aqui é excepcional. Aqui na fábrica em Poços de Caldas construímos os nossos fornos. Gosto de fazer fornos pequenos, de tijolos refratários, com um ou dois recipientes dentro, porque cada cor tem sua exigência de temperatura. Não fornos calculados como aqueles imensos para fazer vidro, de 100 mil toneladas, com cálculo, engenharia pura. Não! Fazer o próprio forno significa fazer um instrumento, dando o jeito necessário para produzir o que se quer produzir. As cores do vidro se devem aos óxidos usados na produção."

DE VOLTA AO PASSADO
"Quando cheguei ao Brasil, em meados dos anos 50, havia dois irmãos de Murano trabalhando em São Paulo: Alamiro e Vittorio Ferro. Eles trabalhavam com maçarico. O pai, Tito Ferro, era um dos melhores mestres venezianos. O Vittorio tinha a idéia de montar aqui uma fábrica. Na verdade, antes disso, alguém tinha chegado para fazer uma fábrica de mosaico vitroso, que não deu certo, para a Matarazzo. A demanda havia, mas o gosto não era refinado. Aliás, os objetos, até então, eram o máximo do máximo do brega. As meninas recebiam um vaso desses, de presente de casamento, e trocavam correndo por uma panela de pressão. Achávamos que o Brasil devia ser respeitado -e aquele "murano" era uma porcaria. Aí montamos uma fábrica para fazer um vidro bom."

ORIGEM CONTROLADA
"Afinal, só é vidro de Murano o vidro feito em Murano. Vittorio voltou para a Itália, e eu continuei, sempre tendo em mente que o importante era fazer um vidro brasileiro. A Cia. Vale do Rio Doce recentemente nos trouxe um minério de ferro. Estudamos uma peça que eles pudessem dar de presente. Fizemos com o material uma cobra, de desenho sóbrio, com uma sombra dessa massa mineral. Eles ficaram encantados. O resultado foi uma forma moderna. Paralelamente, mandamos uma para Murano. Tem uma loja lá que, eventualmente, também vende as nossas peças. Aí, soubemos depois que chegou lá em Veneza um grupo internacional de médicos que participava de um congresso. Entre eles, havia uma brasileira, que falava bem italiano. Atendida em grupo, ela comprou uma peça feita aqui, em Poços de Caldas! Puxa vida! Isso é um termômetro! Fico feliz de narrar essa história. Alguma coisa dentro dessa pessoa a fez escolher, dentre diversas peças, uma que era feita no Brasil."

TEMPO DA CARAVELA
"Uma vez, pesquisando, descobri no Arquivo Público de Veneza que um certo Alvise Seguso, em 1560, foi a Portugal entregar caixas de mercadorias de vidro. Significa que os portugueses já estavam em Murano, comprando contas e espelhos, para colocar nas caravelas, fazer comércio. Acho até que os Segusos entraram no Brasil na época das caravelas."

SÉCULO 20
"Nos anos 1930, pessoas como o advogado milanês Paolo Venini impulsionaram o vidro. Ele tinha o sentido do marketing e reposicionou a indústria.
Se eu conheci a colecionadora Peggy Guggenheim, que fez a coleção de arte moderna que está no Palazzo Vernier dei Leoni? Olha, sem querer ser indiscreto, ela tinha 80 anos, mas ajudava muito os moços jovens, meio adoidados, que não pintavam tão bem. Alguns eram realmente bons. Há lá obras de Marino Marini, de Alberto Giacometti. Ela era "madrinha", mas esse é um fenômeno do pós-Guerra, meio que americano..."

TURISMO RIDÍCULO
"Uma vez, já vivendo aqui, fui visitar Veneza e fiz um tour. O guia nos mostrou a sala dos magistrados no palácio Ducal, a sala da tortura, e o discurso era notável: "Interessante é que os venezianos não eram tão bárbaros como os outros". E eu pensei, será que torturavam com música sinfônica? Uma cidade que foi uma República, a Sereníssima, tem realmente coisas para exibir, mas o turismo mostra coisas sem importância, tira do contexto."

(© Folha de S. Paulo)



Seguso, 50 anos de Brasil

Priscilla Santos

Mario Seguso - foto: Cuia Guimarães

Em meio às comemorações dos 450 anos de São Paulo torna-se curioso relatar a trajetória de Mário Seguso. O artista desembarcou no país, em 1954, a pedido da Cristais Prado, para realizar gravações em peças comemorativas do quarto centenário da capital paulista. Em Murano, Mário Seguso comandava um ateliê de gravação disputado pelas grandes cristalerias. A habilidade veio desde pequeno quando brincava com vidros coloridos nas praças da ilha.

Encontrar contas, produzidas durante séculos, misturadas à terra do Campo San Donato, era um grande trunfo. O menino apenas seguia o ofício da família. Os Segusos se orgulham da ininterrupta geração de mestres vidreiros, que tem em Mário um dos grandes representantes da linhagem contemporânea.

Trabalho de Mario Seguso - foto: Cuia Guimarães

Aos quatorze anos, já aprofundava os estudos no Regio Instituto d'Arte de Veneza. Suas criações foram ganhando cada vez mais destaque em exposições de arte e vidrarias. Mas o artista vislumbrava novos horizontes.

O convite para trabalhar, temporariamente, no Brasil foi recebido

como uma oportunidade. Os primeiros contatos com o país já lhe renderam inspiração para deixar a previsibilidade dos temas clássicos e criar imagens da fauna e da flora tropical.

As cenas nacionais, aos poucos, foram agregadas aos trabalhos. Ainda da década de 50, se destacam as gravações, em jarros e taças, do cotidiano de pescadores. “O Mercado”, década de 90, também revela as particularidades das feiras de comércio, dando destaque aos balaios artesanais.

'Tamanduá' - foto: divulgação

Além das gravações, a brasilidade na obra de Seguso se destaca nas formas. Um dos exemplos é “Zebu”, década de 60, escultura de cristal maciço transparente e vermelho que leva as formas deste animal. A década de 90 contabiliza diversos exemplos: “Tamanduás”, escultura em cristal oxidado com detalhes de vidro metalizado, “Piracema”, esculturas baseadas nos contornos desse peixe em vidro brilhante e oxidado e “Peixe”, escultura de cristal colorido oxidado.


Os peixes são figuras que perpassam toda a obra, seja na forma esculpida ou na gravação. Vida e movimento do mar também inspiraram “Ondas do Mar” e “Espaciais”, ambos da década de 90. Ao contorno das ondas Seguso agregou as formas, não mais misteriosas, da lua. “Árvores Espaciais”, escultura em vidro azul e “Visão Lunar”, escultura em forma de concha, opaca, demonstram a fascinação pelo satélite capaz de influir nos humores terrestres.

'Visão Lunar' - foto: divulgação

O breve olhar sobre a obra é suficiente para perceber a verdadeira nacionalidade desse italiano que, a partir dos anos 50, tomou o Brasil como motivo de inspiração. Na comemoração dos 450 anos de São Paulo, Mário Seguso não desembarca na maior capital latina para deixar suas gravações. Desta vez, ele expõe em Belo Horizonte parte de seus trabalhos mais recentes. A mostra no saguão da Reitoria da UFMG esclarece ao público a frase dita por Lino Tagliapietra: “Mario é um grande brasileiro que honra Murano”.

(© UFMG/DAC, 2004)

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