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O veneziano Mario Seguso |
No país desde 1954, Mario Seguso é um papa no mundo dos
cristais e segue tradição que acompanha a famíliaSILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO
Mario Seguso, 78, nasceu em Veneza, numa família cujas raízes mergulham
até o ano de 1290. No mundo dos cristais, seu sobrenome é quase sinônimo
de "vidro artístico de Murano", como costuma dizer. Craque em alquimias
cristalinas, gravador de raro talento, esse italiano que veio a São
Paulo em 1954, a convite da Cristais Prado, radicou-se em Poços de
Caldas em 1965, quando fundou a cristaleria Ca'd'Oro, "para fazer um
vidro brasileiro". Leia a seguir trechos da entrevista que concedeu à
Folha:
SEGUSO À BRASILEIRA
"Vim de Veneza para as comemorações do 4º Centenário de São Paulo, em
1954, trabalhando como gravador, produzindo peças. Tinha 26 anos -e
desde menino tinha a idéia de conhecer o mundo. Meu ambiente, onde eu
nasci, na ilha de Murano, era fechado, tudo lá tinha séculos, todos os
amigos eram amigos, filhos de famílias amigas ou parentes. Não queria
abandonar Murano, mas precisava ter uma experiência fora. Me formei no
Regio Istituto d'Arte de Veneza, fiz meu ateliê em 1949 e passei a fazer
trabalhos para manufaturas de vidro como Gino Cenedese, Fischer e
Salviati. Em 1953, numa mostra internacional do Centro do Vidro Moderno
de Murano, participei gravando em cristal um desenho de Kokoschka. E, no
ano seguinte, quando apareceu a oportunidade de vir para Brasil, com um
contrato de dois anos, da Cristais Prado, do dr. Jorge da Silva Prado,
resolvi partir."
NOVOS HORIZONTES
"Em São Paulo, além de gravador, passei a ser designer de cristais. Mas
lá na Cristais Prado fazíamos cristaleira de mesa, não havia muito como
expandir o lado artístico, a criatividade. Uma pessoa precisa conhecer a
fundo o que fazer com a massa vítrea, que é difícil de trabalhar, sai do
forno numa densidade que pode ser manipulada por um minuto -e aquele
momento, a maleabilidade, depende de ter um bom forno. Dependendo da
espessura, da cor do vidro, que pode ter dureza diferente, dependendo da
cor. A malícia é que dá a habilidade de trabalhar o vidro. O tempo
ensina, traz as descobertas, mas a idade não quer dizer muito.
Características, como sentido de proporções, bom gosto, conhecimento da
cultura e da história, contam. Há bons mestres vidreiros que se
dedicaram ao vidro, mas falta às vezes a eles sair daquele ambiente de
Veneza. Há gente de muito talento, da minha idade, primos, amigos, que
nunca saíram de lá: faltou a eles abrir a visão. O sol não nasce só em
Veneza."
VIDRO ARTÍSTICO
"No passado, na origem desse trabalho de soprar e produzir vidro em
Veneza, talvez até Átila, o Huno, tivesse sua parcela de
responsabilidade. No Oriente, na atual Istambul, na época do Império
Bizantino, os vidreiros de Ravena construíam as fábricas no canteiro de
obras das basílicas. Quando chegou Átila, a solução foi o refúgio na
ilha de Murano, onde surgiram as fábricas, em 1390. Foi nesse ano que um
édito dos doges venezianos, a pretexto de proteger a cidade dos
incêndios, evitar que a fumaça atrapalhasse, destinou a ilha de Murano
às famílias que faziam vidro. Mas até que ponto foi por amor à cidade e
à natureza, ou porque eles detinham um conhecimento importante?"
DESAFIO
"Quero criar um vidro brasileiro com a qualidade do vidro de Murano:
luto para isso há 40 anos. A ilha de Murano é depositária da arte de
trabalhar com o vidro que remonta aos fenícios, aos egípcios e aos
mesopotâmicos. A herança que veio do Oriente é importante. Veneza viveu
e enriqueceu também graças ao vidro de Murano, onde se dominava uma
ciência. Carrego assim, uma tradição, mas vim para cá para fazer uma
arte brasileira. Não faz sentido pintar aqui o Napoleão a cavalo...
Quando vim, me apaixonei pelo folclore brasileiro, não queria mais
desenvolver temas venezianos."
MUDANÇAS
"Saindo de Veneza, muito moço, me despedi da minha mãe chorando e fui
para Gênova, embarquei no Giulio Cesare rumo ao Brasil. Nunca mais andei
de navio... Metade da viagem, de 13 dias, fiquei triste -valia a pena
deixar a família, os amigos, arriscar? Que será esse Brasil? Lembro de
ter passado a linha do Equador, da festa, de nadar e dançar, pensei:
onde é que eu vou cair? Mas o Rio foi o cartão de visitas, me deixou
saudade. Havia um amigo que me levou para a casa dele. No dia seguinte,
alguém da Cristais Prado me esperava para levar à fábrica -eu tive a
confirmação de que era aquilo mesmo que eu queria! O único dia triste
foi o primeiro dia de trabalho. Colocaram um intérprete -sorte que era
vêneto!- que nasceu na fazenda Amália, dos Matarazzo, mas em dialeto. Eu
respondia e lá, na fábrica, o dr. Jorge ficava satisfeito de ver como o
homem falava bem o italiano, que ele aliás não falava. Na hora do almoço
é que veio a tristeza: mandaram eu comer num hotel, o hotel Londres, na
Celso Garcia -uma topeira! Um lugar mal cheiroso, com comida horrível,
desci cinco degraus, o ambiente era escuro, comi o primeiro bife a
cavalo da minha vida e comecei a chorar. Achei que estava estrepado, ia
comer mal para sempre..."
VENEZA
"A Veneza da minha infância era tranqüila, mas nem tão serena assim. Meu
pai foi para a guerra, eram tempos difíceis também, eu tinha 15 anos.
Mas era uma cidade gostosa! Lembro das comidas, do mercado de peixe, dos
pequenos polvos. Todo ano, em setembro, ia lá, enquanto minha mãe vivia.
Mas ela morreu em 2001, quando caíram na América as Torres Gêmeas. Aí
ficou meio chato de viajar, com essa paranóia de terroristas. Devo ir em
setembro novamente."
VIDA E VIDRO
"A família é antiga, até hoje há vários parentes meus trabalhando lá: o
Archimede, que tinha a sua fábrica com o filho Gino. Há o Giampaolo e o
Gianni Seguso. Uns fazem trabalhos tradicionais, com os desenhos
clássicos venezianos. Quem tivesse atitude,se tornava vidreiro. E uma
fábrica precisa não só de vidreiros: precisa dos que cuidam dos
negócios, das matérias-primas etc. Um pouco, Murano foi condenada porque
tentou atender os gostos de todos. Há gente que fala que fazemos lá
cristal. Mas, desde criança, ouço falar de vidro -"vetro artisco di
Murano", compreende? A chegada do gás como combustível melhorou a
qualidade do vidro. Antigamente, vinha a lenha da Dalmácia, e uns homens
das montanhas a fatiavam. Hoje, com fornos bem construídos, combustível
bom, refratário bom, temos resultados melhores."
ENTROU AREIA
"Mais limpa a areia usada na fabricação do vidro, mas bonito ele fica.
Hoje, em Murano, quando se quer fazer uma coisa boa, se busca a areia de
Fontainebleu, na França, ou na Bélgica. Mandei analisar em Veneza, no
Centro Studio, uma areia brasileira, e eles ficaram entusiasmados: "Onde
é que tem essa areia?". No Brasil, tem areia boa até dizer chega!
Encontrei uma que tinha 99 não-sei-o-quê de pureza. Em Veneza, me
disseram que, nos nove ou dez anos de existência do centro de análise,
foi a melhor que eles haviam analisado. A formação geológica aqui é
excepcional. Aqui na fábrica em Poços de Caldas construímos os nossos
fornos. Gosto de fazer fornos pequenos, de tijolos refratários, com um
ou dois recipientes dentro, porque cada cor tem sua exigência de
temperatura. Não fornos calculados como aqueles imensos para fazer
vidro, de 100 mil toneladas, com cálculo, engenharia pura. Não! Fazer o
próprio forno significa fazer um instrumento, dando o jeito necessário
para produzir o que se quer produzir. As cores do vidro se devem aos
óxidos usados na produção."
DE VOLTA AO PASSADO
"Quando cheguei ao Brasil, em meados dos anos 50, havia dois irmãos
de Murano trabalhando em São Paulo: Alamiro e Vittorio Ferro. Eles
trabalhavam com maçarico. O pai, Tito Ferro, era um dos melhores mestres
venezianos. O Vittorio tinha a idéia de montar aqui uma fábrica. Na
verdade, antes disso, alguém tinha chegado para fazer uma fábrica de
mosaico vitroso, que não deu certo, para a Matarazzo. A demanda havia,
mas o gosto não era refinado. Aliás, os objetos, até então, eram o
máximo do máximo do brega. As meninas recebiam um vaso desses, de
presente de casamento, e trocavam correndo por uma panela de pressão.
Achávamos que o Brasil devia ser respeitado -e aquele "murano" era uma
porcaria. Aí montamos uma fábrica para fazer um vidro bom."
ORIGEM CONTROLADA
"Afinal, só é vidro de Murano o vidro feito em Murano. Vittorio voltou
para a Itália, e eu continuei, sempre tendo em mente que o importante
era fazer um vidro brasileiro. A Cia. Vale do Rio Doce recentemente nos
trouxe um minério de ferro. Estudamos uma peça que eles pudessem dar de
presente. Fizemos com o material uma cobra, de desenho sóbrio, com uma
sombra dessa massa mineral. Eles ficaram encantados. O resultado foi uma
forma moderna. Paralelamente, mandamos uma para Murano. Tem uma loja lá
que, eventualmente, também vende as nossas peças. Aí, soubemos depois
que chegou lá em Veneza um grupo internacional de médicos que
participava de um congresso. Entre eles, havia uma brasileira, que
falava bem italiano. Atendida em grupo, ela comprou uma peça feita aqui,
em Poços de Caldas! Puxa vida! Isso é um termômetro! Fico feliz de
narrar essa história. Alguma coisa dentro dessa pessoa a fez escolher,
dentre diversas peças, uma que era feita no Brasil."
TEMPO DA CARAVELA
"Uma vez, pesquisando, descobri no Arquivo Público de Veneza que um
certo Alvise Seguso, em 1560, foi a Portugal entregar caixas de
mercadorias de vidro. Significa que os portugueses já estavam em Murano,
comprando contas e espelhos, para colocar nas caravelas, fazer comércio.
Acho até que os Segusos entraram no Brasil na época das caravelas."
SÉCULO 20
"Nos anos 1930, pessoas como o advogado milanês Paolo Venini
impulsionaram o vidro. Ele tinha o sentido do marketing e reposicionou a
indústria.
Se eu conheci a colecionadora Peggy Guggenheim, que fez a coleção de
arte moderna que está no Palazzo Vernier dei Leoni? Olha, sem querer ser
indiscreto, ela tinha 80 anos, mas ajudava muito os moços jovens, meio
adoidados, que não pintavam tão bem. Alguns eram realmente bons. Há lá
obras de Marino Marini, de Alberto Giacometti. Ela era "madrinha", mas
esse é um fenômeno do pós-Guerra, meio que americano..."
TURISMO RIDÍCULO
"Uma vez, já vivendo aqui, fui visitar Veneza e fiz um tour. O guia nos
mostrou a sala dos magistrados no palácio Ducal, a sala da tortura, e o
discurso era notável: "Interessante é que os venezianos não eram tão
bárbaros como os outros". E eu pensei, será que torturavam com música
sinfônica? Uma cidade que foi uma República, a Sereníssima, tem
realmente coisas para exibir, mas o turismo mostra coisas sem
importância, tira do contexto."
(©
Folha de S. Paulo)
Seguso, 50 anos de Brasil
Priscilla Santos
Em meio às comemorações dos 450 anos de São Paulo
torna-se curioso relatar a trajetória de Mário Seguso. O artista
desembarcou no país, em 1954, a pedido da Cristais Prado, para realizar
gravações em peças comemorativas do quarto centenário da capital
paulista. Em Murano, Mário Seguso comandava um ateliê de gravação
disputado pelas grandes cristalerias. A habilidade veio desde pequeno
quando brincava com vidros coloridos nas praças da ilha.
Encontrar contas, produzidas durante séculos,
misturadas à terra do Campo San Donato, era um grande trunfo. O menino
apenas seguia o ofício da família. Os Segusos se orgulham da
ininterrupta geração de mestres vidreiros, que tem em Mário um dos
grandes representantes da linhagem contemporânea.
Aos quatorze anos, já aprofundava os estudos no Regio
Instituto d'Arte de Veneza. Suas criações foram ganhando cada vez mais
destaque em exposições de arte e vidrarias. Mas o artista vislumbrava
novos horizontes.
O convite para trabalhar, temporariamente, no Brasil
foi recebido
como uma oportunidade. Os primeiros contatos com o país
já lhe renderam inspiração para deixar a previsibilidade dos temas
clássicos e criar imagens da fauna e da flora tropical.
As cenas nacionais, aos poucos, foram agregadas aos
trabalhos. Ainda da década de 50, se destacam as gravações, em jarros e
taças, do cotidiano de pescadores. “O Mercado”, década de 90, também
revela as particularidades das feiras de comércio, dando destaque aos
balaios artesanais.
Além das gravações, a brasilidade na obra de Seguso se
destaca nas formas. Um dos exemplos é “Zebu”, década de 60, escultura de
cristal maciço transparente e vermelho que leva as formas deste animal.
A década de 90 contabiliza diversos exemplos: “Tamanduás”, escultura em
cristal oxidado com detalhes de vidro metalizado, “Piracema”, esculturas
baseadas nos contornos desse peixe em vidro brilhante e oxidado e
“Peixe”, escultura de cristal colorido oxidado.
Os peixes são figuras que perpassam toda a obra, seja na forma esculpida
ou na gravação. Vida e movimento do mar também inspiraram “Ondas do Mar”
e “Espaciais”, ambos da década de 90. Ao contorno das ondas Seguso
agregou as formas, não mais misteriosas, da lua. “Árvores Espaciais”,
escultura em vidro azul e “Visão Lunar”, escultura em forma de concha,
opaca, demonstram a fascinação pelo satélite capaz de influir nos
humores terrestres.
O breve olhar sobre a obra é suficiente para perceber a
verdadeira nacionalidade desse italiano que, a partir dos anos 50, tomou
o Brasil como motivo de inspiração. Na comemoração dos 450 anos de São
Paulo, Mário Seguso não desembarca na maior capital latina para deixar
suas gravações. Desta vez, ele expõe em Belo Horizonte parte de seus
trabalhos mais recentes. A mostra no saguão da Reitoria da UFMG
esclarece ao público a frase dita por Lino Tagliapietra: “Mario é um
grande brasileiro que honra Murano”.
(©
UFMG/DAC, 2004) |