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O italiano Antonio
Gramsci |
OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para uns, ele é socialista. Para outros, social-democrata. Há até quem
identifique liberalismo nos escritos de Antonio Gramsci (1891-1937). Seu
legado tem sido objeto de disputa pelas mais diversas correntes
políticas.Duas boas razões estão por trás do debate. Uma é de conteúdo: líder
comunista na Itália, Gramsci teve nos anos de formação a influência do
antimarxista Benedetto Croce. Outra é circunstancial: a fragmentação de
seus textos, escritos na prisão onde passou os últimos dez anos de sua
vida.
Em "Gramsci e a Revolução", Lincoln Secco, professor de história da
USP, não deixa dúvida sobre sua interpretação: "Gramsci foi, antes de
tudo, um revolucionário e o núcleo de suas preocupações sempre foi a
política e o poder. Mas não qualquer política e sim a estratégia
socialista".
Socialismo democrático
A própria tese de Secco permite que se acrescente: não uma estratégia
socialista qualquer e, sim, a que resultasse num socialismo democrático.
A questão da democracia em Gramsci tem despertado grande interesse. É
fonte de inspiração tanto para marxistas que procuram alternativa ao
modelo stalinista quanto para social-democratas que buscam diálogo com o
marxismo.
É preciso entender, no entanto, que a concepção de democracia de
Gramsci não é a liberal. Esta, para ele, é uma forma de hegemonia
burguesa, ou seja, o poder que os de cima têm de retirar a capacidade de
luta dos de baixo, "integrando-os no jogo democrático-eleitoral como
participantes que legitimam a dominação de classe da burguesia", resume
Secco.
O livro traça uma boa síntese da recepção no Brasil das idéias de
Gramsci, que permitiram que a defesa da democracia durante o regime
militar fosse uma estratégia consistente de forças de esquerda, e não
apenas uma tática provisória. A instrumentalização de Gramsci que a
crítica à esquerda qualifica de contrabando ideológico foi defendida
pela corrente do PCB que se abrigaria no PT.
Resultado de uma dissertação de mestrado de 1998, o livro de Secco
não aborda o PT no governo, mas antecipa a dificuldade de a esquerda
conciliar socialismo e democracia. O autor lembra que Gramsci é "tão
notável que resistiu a todas as tempestades que varreram muitos autores
supostamente identificados com o marxismo". Na Europa, o teórico
contribuiu para a experiência do eurocomunismo. No Brasil, porém, sua
obra não se traduziu numa ação política que testasse a viabilidade de
seus conceitos.
OSCAR PILAGALLO é jornalista, editor das
revistas "EntreLivros" e "História Viva" e autor de "A História do
Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha)
GRAMSCI E A REVOLUÇÃO
Autor: Lincoln Secco
Editora: Alameda
Quanto: R$ 34 (240 págs.)
(©
Folha de S. Paulo)
Quem foi Antonio GramsciOtto
Maria Carpeaux
Antonio Gramsci é o fundador do Partido Comunista da Itália. A
história das suas lutas, do seu martírio no cárcere e das vitórias
póstumas do seu espírito é leitura edificante para os adeptos do credo
político que foi o seu. Mas suas atividades de altiva independência em
parte só agora reveladas, também o tornam caro a todos os que apreciam
a heresia, the right to dissent, em suma: a liberdade. A
recordação de Gramsci deve ser igualmente cara a todos os que
reivindicam a verdadeira democracia, contra as hipocrisias do
elitismo. Sua obra de grande intelectual -- um dos maiores do século
XX -- inspira respeito até aos adversários do seu credo: inspirou
respeito também ao intransigente Benedetto Croce que "só com
reverência e com afeto" permitiu falar desse morto, desse símbolo vivo
de uma resistência inquebrantável nos cárceres mais escuros da
tirania. Antonio Gramsci foi um mártir e quase um santo. Sua história
é um exemplum vitae humanae. A vida de Gramsci! Seria um livro para todos. Mas não pretendo
escrevê-lo. Em parte porque minha intenção é outra; em parte porque os
fatos já são bem conhecidos, de modo que basta recordá-los.
1. Antonio Gramsci nasceu em 23 de janeiro de 1891 em Ales,
província de Cagliari, na Ilha de Sardegna, na parte mais pobre e mais
atrasada da Itália, filho de gente humilde ao qual só duras privações
permitiram o estudo na Universidade de Turim, onde em 1915 aderiu ao
socialismo, no mesmo ano em que Benito Mussolini saiu das fileiras do
partido socialista para entrar nas do nacionalismo reacionário e
belicoso, que seria depois o berço do fascismo. Enquanto o renegado
sonhava, nas trincheiras, sua futura ditadura, o jovem Gramsci
organizou em 1917 a greve dos operários de Turim contra a continuação
da guerra. Restabelecida, precariamente, a paz européia, e entrando a
Itália numa fase de graves perturbações sociais, Gramsci fundou o
semanário Ordine Nuovo que reuniu em breve os mais avançados
intelectuais da península. Organizou os Consigli di fabbrica
que, em momentos de greve, ocuparam fábricas e usinas, preparando-se
para administrá-los. Em abril de 1920 dirigiu a greve geral. No
Congresso do Partido Socialista Italiano em Livorno, em janeiro de
1921, foi Gramsci o líder da ala radical que saiu, constituindo-se
como Partido Comunista Italiano. Foi o primeiro secretário-geral desse
partido, que o elegeu deputado e do qual fundou o órgão jornalístico,
o diário L´Unità. Enquanto isso, fortaleceu-se cada vez mais a
ditadura fascista, que ainda tolerava a existência do Parlamento para
oferecer ao estrangeiro o espetáculo de uma democracia simulada.
Mussolini conseguiu vencer a crise mais grave do seu regime, a
indignação moral do país inteiro depois do assassinato de Matteoti. Só
então, o terrorismo iniciou, sem freios, a opressão totalitária. Os
mandatos dos deputados oposicionistas foram cassados. Perdida a
imunidade parlamentar, Gramsci foi preso em 8 de novembro de 1926 e
confinado na ilha de Ustica, perto de Palermo. Alguns meses depois,
transportaram-no de volta, algemado, para Roma. Processo perante o
Tribunal especial. O Promotor falou com franqueza: "Devemos", dizia
aos juízes, "inutilizar por 20 anos esse cérebro perigoso": a 20 anos
de reclusão na Penitenciária de Turi, perto de Bari, foi Gramsci
condenado. Submeteram-no a um regime severo, embora permitindo-lhe
escrever cartas e notas, permissão da qual nasceu a imponente obra
desse espírito encarcerado. Mas em 1933 os sintomas da tuberculose dos
ossos tornaram-se evidentes. A doença fez progressos rápidos. Enfim,
as autoridades fascistas não quiseram que o preso morresse como mártir
dentro dos muros do cárcere. Gramsci foi solto três dias antes do
desenlace. Morreu
em 27 de abril de 1937 numa clínica particular em Roma. Foi
sepultado no Cemitério dos Ingleses, à sombra da Pirâmide de Cestio,
perto do túmulo de Keats. Uma coroa de verdes permanentes, com fita
vermelha, indica o lugar em que dormem seus pobres restos mortais.
2. Seria esta a vida de Antonio Gramsci: de um homem morto há 29
anos e que não acreditava na ressurreição dos corpos. Acreditamos, por
nossa vez, no preceito evangélico que manda deixar aos mortos o mister
de enterrar os mortos. Importam os vivos. No túmulo de Keats, perto
daquele de Gramsci, o poeta infeliz mandara gravar as palavras: "Eis
um cujo nome foi escrito na água". Mas na verdade tinha escrito os
versos imortais em língua inglesa. Quando Antonio Gramsci foi, em
1937, enterrado, o que ele tinha feito e pensado também parecia
"escrito na água". E hoje sua personalidade está mais viva que jamais
e o poeta Pier Paolo Pasolini, no colóquio com o sepultado do
Cemitério dos Ingleses que abre o volume Le Ceneri di Gramsci,
pode acrescentar "às fadigas, contradições, pensamentos, atos, lutas e
vitórias" a homenagem de una luce poetica. A personalidade de
Gramsci continua uma força viva.
Tratando-se de um discípulo de Croce -- à filosofia do pensador
napolitano dedicou Gramsci um volume, escrito na prisão --, temos o
direito de empregar a distinção crociana entre a personalidade
empírica e a personalidade "poética", isto é, que se exprime através
de versos ou de pensamentos ou mesmo de ação. A personalidade "atual"
de Gramsci desapareceu. Mas sua personalidade "poética", de escritor,
pensador e homem de ação, continua atual e é -- veremos -- uma
atualidade para nós e conosco. Eis por que importa a Vida de Gramsci.
Muitos estrangeiros, fora da Itália, já se admiravam do alto nível
intelectual do Partido fundado por Gramsci. Intelectuais de estatura,
os líderes
Palmiro Togliatti e Umberto Terracini. Ao PCI pertencem ou
pertenceram grandes professores universitários como Luigi Russo,
Eugenio Garin e Natalino Sapegno, escritores como Cesare Pavese, Elio
Vittorini, Alberto Moravia, Salvatore Quasimodo, Vasco Pratolini, Pier
Paolo Pasolini, os cineastas Vittorio De Sica, Cesare Zavattini,
Lucchino Visconti, o pintor Guttuso, o compositor Nono. A fascinação
exercida pela personalidade já desaparecida, pela recordação de
Gramsci tem contribuído para essa atração intelectual do Partido.
Decisivo, porém, é um fato do qual o fundador do Partido apenas
participa. Durante mais de 30 anos, a filosofia de Benedetto Croce
dominava espiritualmente a Itália, inclusive os anticrocianos que
nunca conseguiram livrar-se totalmente da influência do filósofo. Toda
a vida italiana da primeira metade do século XX, a literatura, as
disciplinas históricas e científicas, o pensamento político e
econômico estavam e estão imbuídos de espírito filosófico. Um
antimarxista italiano não é ou não precisa ser um propagandista
vulgar, mas é ou pode ser um crociano. Um marxista italiano é, em
regra, um ex-crociano. Antonio Gramsci também foi ex-crociano e essa
sua formação filosófica abriu-lhe os olhos para interpretações
erradas, porque pouco filosóficas, do marxismo.
Como secretário-geral do Partido fundado por ele, Gramsci teve de
combater radicalismos ("a doença infantil do radicalismo") e a
tentação contrária de acomodação reformista. Enfim, a vitória total da
ditadura fascista acabou com os adversários de Gramsci dentro do
Partido: tornando impossível a revolta armada exigida pelos radicais e
recusando a adesão dos reformistas. Gramsci já estava na Penitenciária
de Turi -- e esse contraste, entre o ditador vitorioso e soberbo e o
preso reduzido à impotência e o silêncio -- é a primeira vez que a
atualidade de Gramsci, hic et nunc, aqui e agora, nos toca
vivamente.
Pois qual tinha sido o "crime" que levara Gramsci para o cárcere?
Não penso em pintar-lhe o retrato como de um anjo inocente, condenado
sem culpa nenhuma. Foi ele homem de ação revolucionária, disposto a
subverter pela força e pela violência a ordem estabelecida. Mas apenas
estava disposto para tanto, sem chegar a realizar seus projetos, ao
passo que o ditador fascista tinha realizado a subversão, colocando-se
a si próprio acima de todas as leis humanas e divinas e atribuindo-se
o direito de punir com requintes de crueldade, e inapelavelmente, o
crime político que ele próprio perpetrou. Alega-se salvar a democracia
ou a civilização ocidental, destruindo-se a democracia e violando-se a
civilização. Compreendemos, hic et nunc, aqui e agora, a
situação de Mussolini na ditadura e a de Gramsci na prisão. É uma
atualidade que continua e percebemos que Gramsci, embora postumamente,
venceu.
3. Mas não vamos antecipar nada. Ainda estamos em 1926: Gramsci na
prisão, e os democratas italianos de todas as nuanças perseguidos e no
ostracismo. Como se comportar, nessa situação aparentemente sem saída?
Comportavam-se como se todos estivessem, com Gramsci, na prisão.
Esperavam um milagre: pela marcha inexorável dos acontecimentos
históricos. O preso, dentro dos muros da Penitenciária de Turi, sabia
disso; e discordou. Reconheceu, sim, naquele fatalismo passivo uma
fonte de fortalecimento moral em tempos de opressão. Definiu a fé em
certa razionalità della storia como sucedâneo da fé dos
cristãos na Providência divina. Mas rejeitou a analogia, exigindo a
permanente tomada de consciência, única fonte possível -- naquelas
circunstâncias -- do futuro ativismo revolucionário.
Esse ativismo é bem marxista. Ou então, para defini-lo mais
exatamente: é marxista-leninista. Mas Gramsci não encontrara os
argumentos para refutar o fatalismo nem em Marx nem em Lenin.
Sua doutrina da consciência como fonte de ação -- que lembra, de
longe, pensamentos de Lukács
e Ernst Bloch -- é herança do seu mestre ou ex-mestre Croce. Como
discípulo do filósofo de Nápoles, exigiu Gramsci um marxismo
humanista, base etica del nuovo Stato. Como discípulo de Croce,
Gramsci não podia imaginar a revolução política e social sem a
consideração devida dos fatores culturais. Mas esses pensamentos e
raciocínios todos não seriam tipicamente revisionistas?
A crítica de Gramsci contra as falsas interpretações do marxismo,
unilateralmente economicistas e mecanicistas, também se baseia em
pensamentos de Croce. Enquanto o Partido Comunista Italiano sempre,
desde 1945, defendeu a ortodoxia, no sentido de Moscou, como doutrina
de Gramsci, os adversários do Partido nunca deixaram de focalizar
aquelas diferenças: o santo do comunismo italiano também é venerado
como santo nos altares do revisionismo internacional, ao lado de
Trotski, Bogdanov, Deborin, Lukács, Bloch e Lefebvre. A verdade é que
nos escritos e manifestações de Gramsci se encontram trechos e frases
capazes de justificar esta e aquela interpretação. Seriam as
"contradições" às quais Pasolini, em Le Ceneri di Gramsci,
prestou a homenagem de sua luce poetica. Estou convencido que
essas contradições se revelarão, futuramente, como elos do seu
pensamento dialético. Limito-me, agora, a focalizá-las sem tentativa
nenhuma de escondê-las.
Bem ortodoxamente exigiu Gramsci, antes de tudo, a unidade
doutrinária. Mas para justificá-la apelou, mais uma vez, para Croce:
como este, citou o exemplo da unidade doutrinária do catolicismo.
Anticlerical, como sempre foram os intelectuais italianos, Gramsci não
é, no entanto, anticatólico. Venera, de longe, a Igreja à qual não
pertence. Pretende aproveitar a milenar experiência moral da
instituição de Roma. Exige que os comunistas preservem a disciplina
intelectual e moral de um clero. É assim que ele entende o Partido.
O escrito básico de Gramsci, a esse respeito, é sua interpretação
originalíssima de Maquiavel. O fascismo vitorioso tinha proclamado o
"Duce" como reencarnação do "Príncipe"; e todo mundo, dentro e fora da
Itália, tinha concordado, acostumado como se estava a ver no
secretário florentino o pai do amoralismo político. Gramsci,
devolvendo a Maquiavel o papel de fundador do pensamento político
moderno, tinha, antes de tudo, de destruir aquela identificação.
Embora reconhecendo, com Croce, o papel dos grandes espíritos
individuais na História, nega a possibilidade e a necessidade de um
Príncipe individual nos tempos modernos. O
Príncipe de hoje é um coletivo: é o partido de vanguarda política,
é o partido comunista, liderando e dirigindo o povo.
Nessa altura, Gramsci parece leninista dos mais ortodoxos. Mas
leninista, sim, e não stalinista. Citando trechos menos citados do
pensador-revolucionário russo, Gramsci rejeita ou parece rejeitar a
ditadura do proletariado, admitindo apenas a
hegemonia do proletariado numa fase de transição (ver Fabrizio
Onofri, ex-membro do Comitê Central do PCI, em seu artigo "La via
sovietica alla conquista del potere e la via italiana aperta da
Gramsci", Nuovi Argomenti, 23/24, 1957). Este Gramsci é o pai
do Comunismo libertario e da Democracia operaia, o
fundador dos Consigli di fabbrica, que estavam destinados a
ocupar, explorar e administrar as empresas industriais. A esse
respeito é Gramsci o precursor da organização industrial hoje em vigor
na Iugoslávia, começo de uma evolução que ainda não terminou. É bem
possível que esse "revisionismo" de Gramsci se transforme mesmo em
"ortodoxia". E o mesmo vale quanto às atitudes democráticas de Gramsci
dentro do seu partido e dentro da III Internacional de então.
A publicação dos respectivos documentos é de data recente. Só em
1964 permitiu Togliatti a publicação (L´Unità, 30/05/64) da
carta de Gramsci, datada de 15 de outrubro de 1926, dirigida "aos
camaradas russos", na qual advertiu contra a supressão da oposição
trabalhista dentro do partido russo. Mas os iniciados sabiam, há anos,
dessa atitude de Gramsci. Já em 15 de março de 1956 tinha Togliatti
veladamente aludido a ela, acrescentando: "A procura de um caminho
italiano para o socialismo foi nossa preocupação permanente. Creio
poder afirmar que essa preocupação também foi a de Gramsci, que em
seus atos políticos e essencialmente no pensamento da última parte de
sua vida estava ocupado em tirar dos ensinamentos da revolução russa
as conclusões de uma versão italiana dela". Caminho italiano para o
socialismo, caminho francês para o socialismo, etc., etc., essas
atitudes também foram ontem "revisionistas" e passam hoje por
"ortodoxas". O pensamento de Gramsci está hoje mais vivo que no
momento da morte do seu corpo. A vida de Gramsci continua.
Gramsci como mentor do "caminho italiano para o socialismo" parece
confirmar aquilo que poderíamos chamar de "italianismo essencial de
Gramsci". Sua vida e seu pensamento só são compreensíveis como parte
de determinada fase da evolução política, social e cultural da Itália;
suas idéias continuam idéias de Croce, embora invertendo-as; italianos
são todos os seus pontos de referência, a começar com Maquiavel. O
italianismo de Gramsci culmina em sua crítica dos intelectuais
italianos, da intelligentsia italiana, pois são fenômenos,
estes, diferentes em qualquer uma das nações modernas, dependentes da
história, da evolução social, da evolução literária e até da formação
da língua. Não seria possível aplicar à intelligentsia francesa
ou russa ou espanhola as lições tiradas das experiências históricas,
muito diferentes, da intelligentsia italiana. No entanto,
justamente através do italianismo fundamental de Gramsci revela-se seu
universalismo.
O respectivo livro de Gramsci, Gli intellettuali e
l´organizzazione della cultura, censura nos intelectuais italianos
o cosmopolitismo e a falta de relações com o povo. Lembra o fato de
que toda a maravilhosa literatura italiana, Dante, Petrarca,
Boccaccio, os humanistas, Ariosto, Tasso, Parini, Goldoni, Alfieri,
Foscolo, Leopardi, Manzoni, Carducci, foi feita por uma pequena classe
de letrados para ser lida por pequena classe de amadores; ainda por
volta de 1880, 20 anos depois da unificação política da Itália pelo
Risorgimento, que passava por movimento democrático, 80% da
nação italiana eram de analfabetos, excluídos da política e da cultura
do país; e essa "desnacionalização" agravou-se no século XIX pelo
afrancesamento das classes cultas da península.
A propósito das críticas de Gramsci à interpretação
fatalista-passiva do marxismo em tempos de opressão e perseguição e a
propósito da resistência inquebrantável de preso contra a tirania
armada, tocou-nos a atualidade surpreendente e dolorosa, hic et
nunc, dessa vida exemplar. Não é menor a atualidade, aqui e agora,
da sua crítica a uma intelligentsia cosmopolita (antes
afrancesada e agora, muitas vezes, americanizada), sem relações com a
maioria analfabeta de nação. Um dos pensamentos mais italianos de
Gramsci revela sua validade universal.
O próprio Gramsci indica as causas desse universalismo: pois o
caráter cosmopolita da intelligentsia italiana é herança do
universalismo católico medieval -- Roma como Capital supranacional da
Europa, do mundo de então -- e do caráter supranacional do humanismo
italiano. O catolicismo de rotina e o humanismo formalista das nações
da América Latina participam da mesma herança; e por isso o pensamento
especificamente italiano de Gramsci também vale aqui e agora, assim
como seu exemplo de resistência.
Na solidão do cárcere descobriu Gramsci a índole ilusória da muito
exaltada "independência do intelectual" de tipo tradicionalista.
Exigiu a formação de um novo tipo de intelectual, técnico e
científico, capaz de organizar o trabalho e a classe que trabalha;
mas, advertindo seriamente contra o especialismo e o especialista que
é bárbaro em tudo fora de sua especialidade e incapaz de desempenhar
verdadeira atividade dirigente, revela Gramsci novamente o humanismo
crociano no fundo do seu pensamento marxista.
Enfim, a variedade das interpretações do marxismo de Gramsci
baseia-se na evolução dialética do pensamento do próprio Gramsci, no
qual descobrimos várias camadas: o comunismo "libertário" --
democrático dos Consigli di fabbrica, o ortodoxo "comunismo de
Partido" do escrito sobre Maquiavel; e, enfim, a idéia revolucionária
de uma aliança libertadora dos operários industriais do Norte da
Itália com as massas rurais do Sul subdesenvolvido da península. Essa
última idéia parece, mais uma vez, especificamente italiana, nascida
de circunstâncias históricas. No entanto, mais uma vez, o italianismo
de Gramsci se revela como de validade universal.
La questione meridionale, a "questão do Sul", é o
permanente problema político-social da Itália. Do país da mais antiga
civilização na Europa toda, agora também economicamente bem
desenvolvido, desse país a parte mais populosa, o Sul, continua
entregue aos males do latifúndio feudal, do pauperismo, da miséria, do
analfabetismo, das superstições populares, da mortalidade infantil.
Não é exagero afirmar que as melhores cabeças políticas dos últimos
cem anos -- e a Itália é a terra de promissão da ciência política --
se têm dedicado ao trabalho de estudar as causas do problema e de
propor remédio da doença. Gramsci escreveu sua Questione
meridionale em 1926, às vésperas de ser preso pelos fascistas,
completando o trabalho na prisão. Só não foi possível a publicação na
Itália. Em 1930, uma revista de exilados políticos em Paris publicou o
escrito que, tratando de problema especificamente italiano, não
encontrou repercussão na Europa e ficou praticamente despercebido,
enterrado como seu autor. Mas a roda da História deu uma volta: e
depois da queda do fascismo, em fevereiro de 1945, a pequena
obra-prima foi republicada na revista Rinascita: desde então,
continua sendo guia de todos os que pretendem resolver radicalmente e
para sempre a "questão do Sul". Qual é a solução? Muitos já têm
denunciado as condições climáticas e a aridez da terra. Também
denunciaram o pecado capital da democracia italiana, de ter abusado
das massas humanas do Sul para, por meio de eleições fraudulentas,
conseguir Parlamentos dóceis em Roma, que votaram tudo menos a
modificação das condições de vida no Sul. Mas a destruição do regime
parlamentar pelo fascismo tampouco modificou coisa alguma. E Gramsci
previu bem que o restabelecimento da democracia formal (acontecido,
depois, em 1945) tampouco modificaria as coisas. A chamada reforma
agrária, desde então empreendida, limita-se a melhorar as condições
físicas, a irrigação, o adubamento, etc., desmentindo pelo menos o
fatalismo daqueles que acreditavam na inevitabilidade da miséria
produzida pela aridez da terra e pelo desfavorável regime de chuvas.
Gramsci, porém, responsabilizou pela questione meridionale o
formalismo da democracia do Risorgimento, que deu aos sulinos
o voto sem dar-lhes a terra, isto é, a independência econômica do
voto. E propõe a democratização do Sul pela radical reforma agrária,
que as populações rurais conseguiriam pela aliança com o operariado
industrial nortista.
Pela terceira vez atinge-nos a atualidade do pensamento gramsciano;
e seu universalismo, válido para toda a gente fora da Itália. A
primeira vez foi o exemplo da resistência contra a ditadura
terrorista. A segunda vez: a alienação da intelligentsia e a
necessidade de sua reconstrução em bases nacionais. Agora, na terceira
vez, pensamos no latifúndio, na miséria, na democracia formal e na
necessidade de uma radical reforma agrária, reconhecendo: aquilo que
na Itália é o Sul, isto é, exatamente, no Brasil o Nordeste.
Um dos argumentos ou pseudo-argumentos mais usados pelos
adversários de reformas sociais é a alegada necessidade maior de
realizar uma reforma moral da sociedade. Em vez da reforma agrária
levantam a falsa bandeira da luta contra a corrupção. Depois de
extirpada a corrupção, eles realizariam o milagre de reformar tudo sem
tocar no regime social vigente. Exigem, antes, a reforma moral porque
a sabem inviável ou porque, desprezando as possibilidades do homem, a
acreditam inviável. A esse pseudomoralismo opõe Gramsci o exemplo da
sua vida. Um exemplo irrespondível de reforma moral e verdadeira.
4. As obras
escritas por Gramsci no cárcere só podiam ser publicadas depois de
1945. O primeiro volume que saiu compreende as 218 cartas que o preso
escreveu entre 1926 e 1936 a membros de sua família: à mãe; aos filhos
que viviam em Moscou com a mulher do preso, física e mentalmente
quebrada; e, sobretudo, à cunhada Tatiana, a pessoa lá fora no mundo
que melhor o compreendeu. Escritos sob a censura das autoridades da
Penitenciária, as Lettere dal Carcere falam pouco ou nada de
política. Destinam-se, sobretudo, à luta contra a solidão dentro das
quatro paredes; à luta contra o progressivo enfraquecimento físico, e,
sobretudo, à luta pela sobrevivência espiritual: separado dos seus
para sempre, o encarcerado não quer ficar esquecidos por eles. Por
isso, se dirige Gramsci, nesse grande documento humano e obra-prima da
literatura italiana, com preferência a seus filhos nos quais espera
sobreviver. Nessas cartas aos filhos não se percebe o menor traço de
sofrimento, de impaciência, mas uma maravilhosa adaptação ao espírito
infantil: no entanto, muitas vezes, as palavras têm duplo sentido,
escondendo atrás dos conselhos paternais, acessíveis à compreensão das
crianças, confissões de auto-introspecção do preso e propósitos dele
para seu próprio futuro, tão limitado. Penosamente, o epistológrafo
procura reconstruir as caras, as vozes que ele já quase esqueceu.
Lembra-se para não ficar esquecido e não esquecer, é seu grande
esforço. Atrás da família surgem recordações de sua própria infância
na Sardenha, inspiradas pelo profundo amor cristão desse materialista
aos pobres da sua terra. O estilo rigorosamente sóbrio das Lettere
dal Carcere não dissimula a emoção de quem as escreve. Pela
emotividade procura Gramsci superar o intelectualismo seco que ele
próprio censurara nos seus pares, nos intelectuais; e procura
fortalecer-se para o trabalho intelectual em circunstâncias
monstruosamente difíceis.
"Eu sei", diz Gramsci, "que bater com a cabeça contra o muro não
destrói o muro, mas a cabeça". Não desespera. Mas escreve. Escreve
furiosamente, cadernos, cadernos e mais cadernos, que foram, depois de
1945, coligidos e ordenados pelos seus testamenteiros e publicados
pela Editora Einaudi: O materialismo histórico e a filosofia de
Benedetto Croce; o escrito sobre Maquiavel; Os Intelectuais e
a Organização da Cultura; Literatura e vida nacional; um
comentário sobre o Canto X do Inferno de Dante; um estudo
sobre Pirandello; e a versão definitiva da Questione meridionale.
É um output admirável. Escrevendo e escrevendo, o mortalmente
doente sempre repete em suas cartas: "Sto bene, sto bene". "Sinto-me
muito bem", porque o tirano não conseguiu realizar a promessa do
promotor, de "inutilizar por 20 anos esse cérebro". A morte prematura
foi a coroa do martírio. Mas a cova debaixo da campa fascista ficou
vazia. O espírito ressurgiu.
"O espírito está disposto, mas a carne é fraca", diz São Paulo.
Vida, martírio e morte de Antonio Gramsci desmentem vigorosamente esta
frase, mas confirmam outras palavras do apóstolo: "A fé, o amor e a
esperança, esses três ficam, mas o amor é o maior entre eles". Grande
foi, realmente, o amor de Antonio Gramsci a seu povo sofredor e
maltratado. Maior foi, porém, em seu caso, a fé que consegue
transferir montanhas e que para Gramsci abriu, espiritualmente, os
muros da prisão. Mas a maior das virtudes suas foi a Esperança.
Pensamos: em 1926, quando Gramsci escreveu La questione
meridionale, o preso já não podia publicá-la; em 1930, quando em
Paris se publicou o escrito, só poucos o leram; e em 1937, quando
Gramsci morreu, seu pensamento parecia enterrado com ele na terra
italiana, dominada talvez para sempre pela tirania fascista, baseada
em exército, polícia, hordas inumeráveis de milicianos armados,
justiça especial, dinheiro da grande burguesia, apoio do latifúndio,
ajuda de potências estrangeiras e apatia do povo exausto. Mas só
poucos anos depois caiu como um castelo de cartas todo esse edifício
da tirania e o sintoma externo dessa queda foi, em 1945, a segunda
publicação da Questione meridionale numa revista editada na
Via delle Botteghe Oscure, em pleno coração da Roma libertada.
Mesmo no escuro da prisão que parece perpétua e é efêmera, a
esperança não morre e "é a maior das três". Eis a vida de Antonio
Gramsci.
Fonte: Revista Civilização Brasileira, 7, maio 1966
(©
Gramsci e o Brasil) |