Através de campanha publicitária
"radical", governo espera estimular a população a fazer contribuições
RACHEL SANDERSON
DA REUTERS, EM FLORENÇA
Será que a visão das pernas sendo arrancadas da estátua de David, de
Michelangelo, faria você sentir náuseas? Você choraria se visse a tela
da "Vênus" de Botticelli ser rasgada em tiras? É isso o que o governo
italiano espera que aconteça.
A
poluição, o vandalismo e a ação natural do tempo se uniram para fazer
com que a conta da conservação do patrimônio artístico-cultural da
Itália seja grande demais para que o Estado possa arcar com ela. Assim,
o país repleto de arte resolveu apelar a seus próprios cidadãos para que
cubram o rombo.
Entretanto, ciente de que os esforços de levantamento de fundos não
costumam ser bem recebidos na Itália, o governo resolveu recorrer a uma
tática de choque. Durante as próximas semanas, os italianos que voltarem
das férias serão submetidos a uma investida publicitária maciça
mostrando a destruição encenada de seus mais célebres monumentos
culturais.
Os
organizadores esperam que a visão assustadora de "A Última Ceia" de
Leonardo da Vinci com alguns discípulos faltando vá assustar os
italianos a ponto de convencê-los a socorrer os 30% dos sítios culturais
vistos como em situação de emergência.
"A
manutenção e defesa de nossa herança cultural e artística não é
responsabilidade apenas do Estado, mas de todos os italianos", disse o
ministro da Cultura, Rocco Buttiglione, ao lançar a campanha. "Os
italianos precisam cuidar hoje da grande arte que têm à sua volta, senão
ela pode não estar aqui para as gerações futuras."
Ledo Prato, secretário-geral da CittaItalia, a fundação sem fins
lucrativos que lidera a campanha e é responsável por recolher os
donativos, disse que 30 ou mesmo dez anos atrás um apelo aos italianos
para que gastassem de seus próprios bolsos para proteger ou restaurar
seu palácio ou igreja local seria fadado ao fracasso.
Entretanto, com a decadência do setor industrial nacional, muitos
italianos hoje vêem seus tesouros artísticos, como o palácio Ca'd'Oro,
em Veneza, ou os afrescos de Giotto em Pádua, como o melhor que o país
tem a oferecer. De acordo com Prato, "a população está se dando conta de
que, sem sua herança cultural, a Itália seria um país anônimo. E ela
compreende que esse patrimônio cultural gera não apenas fama e prestígio
mas também receita e desenvolvimento econômico".
Com essa idéia em vista, os organizadores da campanha querem utilizar os
recursos gerados para cuidar de obras que interessam aos turistas e que
freqüentemente se encontram nas regiões mais pobres do país. Quando os
cidadãos italianos fazem suas doações, por correio ou por e-mail, eles
também têm o direito de fazer sugestões sobre o uso do dinheiro.
De
acordo com Prato, um dos sítios que precisa urgentemente de recursos é
Canne della Battaglia, o campo de batalha situado no calcanhar da Itália
onde, em 216 a.C., Aníbal derrotou o Exército romano. Outro é o Palácio
Real da cidade de Caserta, no sul do país, erguido no século 18.
Os
organizadores da campanha não precisaram quanto esperam levantar, mas
disseram que a carência de recursos é grande num país que, segundo eles,
possui 4,4 milhões de obras de arte.
Embora as pinturas e esculturas que figuram na campanha não corram
riscos reais, as obras que de fato estão em risco incluem até mesmo os
tesouros mais conhecidos da Itália, tais como a cidade de Veneza ou o
Coliseu de Roma.
O
orçamento italiano para 2005 prevê 26 milhões (cerca de R$ 55,7 milhões)
para a manutenção e restauração de centenas de igrejas, palácios,
conventos e museus. É menos do que a metade do que seria necessário
apenas para a manutenção, de acordo com estudos independentes.
Em
Florença, no início de agosto, um cozinheiro, após uma noite passada
bebendo, decidiu tentar escalar a estátua de Netuno erguida há 450 anos
na praça central, perto do museu de Uffizi. Ele caiu, e, em sua queda,
arrancou a mão esquerda do "Il Biancone", como a estátua é apelidada
pelos italianos, deixando apenas o suporte metálico interno. O prefeito
de Florença, Leonardo Domenici, disse que a restauração da estátua vai
custar mais de 30 mil (cerca de R$ 83,7 mil).
Tradução Clara Allain
(©
Folha de S. Paulo)