FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL
Preparada como minissérie para a TV italiana, "A Vida de Leonardo da
Vinci" equilibra-se entre ficção e realidade. Em longos 325 minutos, que
bem poderiam ter sido reduzidos na versão para DVD, o diretor e
roteirista Renato Castellani apresenta o cotidiano do grande gênio do
renascimento com uma narrativa um tanto novelesca sem, no entanto,
inventar situações melodramáticas. Já é um grande mérito.
Com fontes bastante fidedignas sobre Leonardo da Vinci (1452-1519), já
que ele próprio deixou inúmeros escritos, e seu biógrafo, Vasari, outros
tantos, a produção reforça aquilo que se sabe: a versatilidade do
artista que também era grande pesquisador e cientista, sua dependência
dos mecenas, e a criação de suas principais obras, entre elas "A Santa
Ceia" e "Monalisa".
Quanto a eventuais romances, silêncio, assim como nos escritos de Da
Vinci, interpretado por Philippe Leroy. Apenas a constatação de sua
próxima convivência com dois jovens italianos, Salay, a quem chamava
"ladrão, obstinado, mentiroso e guloso", e o nobre Francesco Melzi, que
foi seu testamenteiro.
Vida pública
Passados 500 anos, não deixa de ser surpreendente como muito de sua vida
envolve personagens conhecidos: a disputa por realizar uma escultura em
mármore, perdida para Michelângelo (1475-1564), que criou "Davi" com a
vitória, ou as disputas judiciais com o irmão, nas quais foi aconselhado
por Nicolau Maquiavel (1469-1527). Da Vinci, além de gênio, sabia onde
deveria estar. Talvez por isso fosse gênio.
A Vida de Leonardo da Vinci
Direção: Renato Castellani
Distribuidora: Versátil; R$ 60, em média
(©
Folha de S. Paulol)
“O código Da Vinci” em questão
Como foi o debate da crítica Walnice Nogueira Galvão e do
teólogo Luiz Felipe Pondé sobre o best-seller
Por José Augusto Ribeiro
Como romance de fundo histórico, "O código Da Vinci" peca pelas
imprecisões factuais. Como thriller policial, tem desfecho
"anticlimático". Como enigma esotérico ou religioso, opta por
soluções "simplistas" e uma teologia "bem barata". Mas, como
best-seller, o livro não erra: repete a fórmula do sucesso
mercadológico, sem arriscar-se em experimentações formais. Por que
então, com tantas deficiências, o título virou a coqueluche que é?
Algumas respostas possíveis a essa pergunta foram aventadas em um
debate a respeito do livro promovido por Trópico e pela
Pinacoteca do Estado de São Paulo dentro da série de encontros
“Trópico na Pinacoteca”. Diante do auditório lotado da Pinacoteca, a
crítica de literatura e cultura Walnice Nogueira Galvão e o teólogo
Luiz Felipe Pondé analisaram a representação da Igreja Católica no
livro do norte-americano Dan Brown que se tornou um fenômeno de
vendas em todo o mundo.
Primeiro, Walnice destrinchou o formato de best-seller comum aos
livros de Brown, Paulo Coelho e J. K. Rowling, a autora da série
"Harry Potter". Depois, Pondé se deteve ao exame das "questões
teológicas" em que se enreda "O código Da Vinci". O resultado foi
elucidativo e sem concessões.
"A meu ver, o extraordinário sucesso mundial de ‘O código Da
Vinci’ é resultado de uma estratégia de marketing. Nada encontrei
neste livro, nem nos dois outros que li do mesmo autor (‘Anjos e
demônios’ e ‘Deception point’), algo que justificasse tal sucesso.
Sei que existem, inclusive, quatro ou cinco livros, de outros
autores, discutindo ‘O código Da Vinci’", disparou Walnice Galvão,
na abertura do encontro.
Para corrigir, em vez de "quatro ou cinco", já são pelo menos 12
os títulos editados no Brasil que se dedicam a "quebrar", a
"decodificar", a "revelar", a "desmascarar", a "decifrar" -e até
mesmo a "cozinhar com"- "O código da Vinci". O sucesso internacional
a que se referia a crítica literária pode ser medido pelos mais de
20 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Só no Brasil,
onde a tiragem de um livro recente costuma ser de 3.000 cópias, em
média, a obra vendeu 750 mil, em um ano. O resultado animou a
editora responsável pela edição brasileira, que agora espera
duplicar estes números até o final de 2005.
Os produtos culturais que têm por trás um poderoso aparato de
publicidade são vários. Contudo, nem todos dão certo como o "O
código Da Vinci". Menor ainda é o número de lançamentos editoriais
com uma liquidez tão estrondosa. Então, afora a "estratégia de
marketing", o que caracteriza um best-seller? Walnice propõe uma
definição:
"Quando falo de best-seller, eu falo não de um livro que vendeu
muito, mas de um livro que é escrito de acordo com uma receita
prévia, destinada a vender muito e rapidamente. É um livro cujo
valor como mercadoria precede o valor artístico ou estético. É um
livro produzido não de maneira livre e desinteressada, se nós
considerarmos os dois critérios para identificar a obra de arte,
segundo (o filósofo Immanuel) Kant, mas de olho nas
exigências do mercado".
Para tanto, existe uma fórmula, segundo Walnice, reproduzida a
seguir. Primeiro, a leitura do livro deve ser fácil e digestiva.
Segundo, o autor deve se pautar pelo "mínimo denominador comum", até
chegar a alguma coisa que seja acessível à maioria das pessoas.
Terceiro, a escrita deve fingir que a forma não existe; "deve-se
diluir a camada lingüística, para que ela se torne transparente e
desapareça como fonte de beleza estética". Quarto, é obrigatório
aferrar-se a clichês e evitar o experimentalismo. Quinto,
recomenda-se eleger temas que mexam com emoções primárias e
irracionais, como sexo, violência e, "como vemos ultimamente",
esoterismo, religião e ocultismo.
A sexta regra é, segundo a crítica, aquela em que menos se presta
atenção: todo best-seller traz sempre idéias progressistas. "Veja
que é muito raro encontrar um best-seller reacionário, e por quê?
Porque cai bem com os leitores, já que as camadas sociais que lêem
livros, em geral, têm idéias progressistas. Qual seria a idéia
progressista central de ‘O código Da Vinci’? É a entronização da
mulher e do feminino, que é algo da última moda e que está na linha
de frente das idéias progressistas de nosso tempo. No livro, isso é
escondido atrás de uma série de ficções a respeito de Maria
Madalena."
Personagem da Bíblia normalmente interpretada como prostituta que
encontrou sua redenção em Cristo, Maria Madalena se insere na trama
de "O código Da Vinci" como suposta esposa de Jesus Cristo e a mãe
de um filho do filho de Deus. Passagens deste tipo levaram o
Vaticano a recomendar a seus fiéis que não comprassem nem lessem
nada da lavra de Dan Brown. O que, claro, só fez aumentar os índices
de venda dos livros do autor americano.
A sétima regra para um best-seller é "ter um saber, uma técnica,
uma especialidade". A obra deve oferecer ao leitor essa
especialidade porque a ideologia burguesa, para a qual "tempo é
dinheiro", exige que haja um efeito de aprendizagem, “que o leitor
se iluda pensando que não está perdendo seu tempo ao consagrar-se à
leitura", nas palavras de Walnice.
"Uma das maneiras de reconhecer o best-seller é até simples: seu
autor publica um livro por ano ou a cada dois anos, no máximo. Nesse
sentido, é bom lembrar os estudos do (sociólogo francês)
Pierre Bourdieu, quando ele diz que a aceleração das coisas no nosso
tempo é nefasta para as artes e para a cultura. Porque as artes e a
cultura têm um tempo de maturação que leva anos, décadas e, às
vezes, séculos. A boa literatura, portanto, é avessa à linha de
montagem, que é o que ocorre com os autores de um livro por ano ou a
cada dois anos", completou.
Em seguida, Galvão deu início a um levantamento do que têm em
comum e do que têm de diferente "O código Da Vinci", os livros de
Paulo Coelho e os "Harry Potter". A análise começou pela escocesa J.
K. Rowling. "No caso do ‘Harry Potter’, a autora acerta a mão. Ela
executa um livro seguindo a receita do best-seller com grande
felicidade. Aliás, este é um segredo que os britânicos têm para
fazer livros para crianças", comentou a crítica literária, lembrando
exemplos do passado, como o inglês Lewis Carrol ("Alice no país das
maravilhas") e o escocês Robert Stevenson ("A ilha do tesouro").
"Uma das razões desse grande acerto (dos britânicos com relação à
literatura infanto-juvenil) pode ser buscada nas mitologias
européias, dos povos bárbaros. Os nórdicos demoraram mais tempo a se
romanizar, a se cristianizar, e conservaram um acervo enorme de
lendas, mitos e narrativas em que pululam os seres sobrenaturais,
como fadas, gigantes, trasgos, gnomos, duendes. Quando o Romantismo,
na virada do século 18 para o 19, despertou um interesse muito
grande pelas tradições populares, nós tivemos, em toda a parte da
Europa, alguns escritores recolhendo essas narrativas orais e
transformando-as em livro", explicou Walnice, citando como exemplo a
obra clássica dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.
"Harry Potter" seria, então, a revitalização do conto de fadas,
ou sua versão contemporânea. "É como se a autora tivesse posto no
liquidificador todas essas histórias anteriores, selecionado os
ingredientes básicos e montado de novo o paradigma do conto de
fadas." Basta comparar: o protagonista da série -que já foi adaptada
para o cinema- é um órfão atormentado, mal-tratado por pais
adotivos, convivendo com um primo que o persegue. Em meio a tantas
dificuldades, ele descobre que é um bruxo. O personagem sabe que
pertence a uma grande linhagem de magos e, assim, vai vencendo todas
as tristezas, como na Branca de Neve.
O escritor seguinte a ser alvo da reflexão foi Paulo Coelho, o
primeiro autor brasileiro a se situar entre os 10 mais vendidos do
planeta. Para a crítica de literatura, o autor de "O alquimista" é
um precursor do gênero "auto-ajuda travestido de esotérico". "Ele (Coelho)
estava lá no seu canto, escrevendo livros em que oferecia
esoterismo, ocultismo, auto-ajuda, quando o mundo inteiro deu uma
guinada nessa direção. Vamos dizer que o mundo é que foi ao encontro
de Paulo Coelho. Como ele escreve dentro do mínimo denominador
comum, isso o globaliza imediatamente. Ele pode ser lido em qualquer
lugar." Até chefes de Estado, como os presidentes de França e
Estados Unidos, declararam que leram livros do escritor brasileiro,
que também é sucesso na China, no Iraque e no Leste europeu.
E o que "O código Da Vinci" tem a ver com isso? Tudo, segundo
Walnice. "Harry Potter, Paulo Coelho e ‘O código Da Vinci’, além de
serem best-sellers, oferecem esoterismo, religiosidade, o oculto e a
magia, que são, a meu ver, compensatórios do excesso de materialismo
de nosso tempo, do fundamentalismo do mercado, do primado da
mercadoria e da idolatria do consumo e seu templo, que é o shopping
center", resumiu a professora de literatura comparada da
Universidade de São Paulo e autora de “O império do Belo Monte”,
sobre a Guerra de Canudos.
"Nós temos (no livro de Dan Brown) um enigma esotérico que exige
decifração, por isso o herói é um simbologista da Universidade
Harvard, acolitado por uma criptógrafa. Segundo, nós temos segredos
escandalosos da vida privada de Jesus Cristo e a história de seu
casamento com Maria Madalena. Terceiro, é um thriller de detetive,
de suspense, e eu penso que Dan Brown é bom de enigma, mas ruim de
solução. Ele põe uma série de soluções, uma atrás da outra, e cada
uma delas fica mais sem graça que a anterior, até que a última é
realmente anti-climática."
Para não ficar só em depreciações, Dan Brown garante, pelo menos,
boas doses de humor, segundo Walnice. "O que é mais divertido no
enigma do ‘Código’ é que o autor falsifica a fonte sem a menor
cerimônia. Por exemplo, ele diz que o caso de Jesus Cristo e Maria
Madalena é confirmado pelos manuscritos do Mar Morto. Acontece que
os manuscritos do Mar Morto, que são anteriores a Jesus Cristo e ao
cristianismo, nunca os mencionaram. O que os manuscritos do Mar
Morto trazem são versões do Velho Testamento e documentos sobre a
seita dos essênios, que foram aqueles que escreveram os manuscritos.
Mas o leitor é facilmente enganado. Esse é um ponto de escândalo, na
minha opinião."
Outro "ponto de escândalo", para a crítica de literatura, é o
tratamento dado no livro à lenda do Santo Graal. Ao contrário do que
está em "O Código da Vinci", o Santo Graal nunca teve nada a ver com
a Santa Ceia de Jesus Cristo nem com a famosa tela de Leonardo Da
Vinci. Walnice Galvão lembrou que o Santo Graal é uma tradição
literária que surge por volta do século 11 ou 12, na Europa, sem
vínculo seja com a cultura romana, com a grega ou com a judaica.
"A lenda do Santo Graal é uma daquelas que deram origem aos
contos de fadas de que falei há pouco. É uma lenda dos povos
bárbaros europeus, no caso, os celtas. É uma das mais importantes,
se não a mais importante de todas, e faz parte da saga do rei Artur
e da Távola Redonda. Segundo a tradição literária, o Santo Graal é o
nome que se dá ao cálice com que José de Arimatéia recolheu o sangue
de Jesus Cristo vertido na cruz, como está escrito nos Evangelhos.
Não tem nada que ver com a Santa Ceia que Jesus Cristo ofereceu a
seus discípulos, às vésperas de ser preso, martirizado e
crucificado. Dan Brown diz que é o mesmo cálice, que o Santo Graal é
o cálice que foi usado na ceia. Não foi, isso está errado tanto
segundo a Bíblia quanto segundo a tradição literária da legenda do
Santo Graal", disse Walnice, no debate realizado em 30 de abril.
Dando sequência às comparações, o teólogo Luiz Felipe Pondé
começou sua explanação colocando lado a lado "O código Da Vinci" e o
filme "Paixão de Cristo", dirigido por Mel Gibson. "O livro está na
dinâmica das representações artísticas do cristianismo e, nesse
sentido, acho interessante fazer uma comparação com outro grande
fenômeno de massa, que foi ‘A paixão de Cristo’. A posição da igreja
em relação aos dois (romance e filme) foi muito diferente, porque
você encontra gente de perfil progressista que aceita ‘O código Da
Vinci’, mas não vai encontrar gente de perfil progressista que
aceita a ‘A paixão de Cristo’".
Uma das diferenças entre a
obra de Mel Gibson e a de Dan Brown está nas vertentes de
representação do cristianismo em que cada um busca inspiração.
Assim, ao passo que "A paixão de Cristo" oferece uma imagem do
chamado "Jesus desfigurado", na cruz, "prestes a se desmanchar", "O
código Da Vinci" entra na polêmica da "busca do Jesus histórico".
"Essa tradição da busca do ‘Jesus histórico’ data do final do século
18, dentro de uma tradição do protestantismo liberal alemão. O que eles
querem saber é, afinal de contas, quem foi o Jesus histórico. Mais
especificamente, acho que ‘O código Da Vinci’ entra numa questão que se
preocupa em desvendar o que aconteceu com Jesus e que a igreja não nos
deixaria saber. Não estou dizendo que o livro é um relato sobre esse
‘Jesus histórico’, mas ele se alimenta disso, do ponto de vista da
pesquisa histórica", lançou Pondé.
Segundo o professor do Departamento de Teologia da PUC-SP, esse clima
de mistério em torno da Igreja Católica e de seus personagens gera
idéias como a de que o Vaticano é ocupado por "três ou quatro caras
tarados, que ficam manipulando as coisas dentro de uma sala fechada".
Também abre portas para que um livro como o de Dan Brown circule tanto,
e faz com que o leitor crente (no livro, não em religião) interpele os
críticos de "O código da Vinci": "E aí, você prova que o que está lá não
é verdade?".
"A verdade possível, como disse Walnice, não está nos manuscritos do
Mar Morto”, refletiu Pondé. “Ela está nos manuscritos de uma outra
caverna, a de Nag Hammadi, no Egito. Os manuscritos de Nag Hammadi, que
em português chamamos de ‘manuscritos apócrifos’, foram encontrados nos
anos 1940 e trazem uma série de evangelhos que, do ponto de vista da
datação, são contemporâneos dos sinóticos. Então, de fato, temos
variações da história de Jesus. Há histórias que dizem que Jesus foi
enforcado numa árvore; histórias que dizem que Jesus não morreu, porque
ele não tinha corpo, era só um espírito que pairava no mundo; tem
histórias que falam que Jesus tinha mulheres que eram suas discípulas;
tem histórias que dizem que Maria Madalena era mais importante do que
imaginamos hoje. Então é legítima a pergunta sobre o casamento de Jesus:
‘Afinal, ele casou ou não?’. Pode ser, vai saber."
Para Luiz Pondé, levantar especulações desse tipo permite ao cristão
idealizar um Jesus mais humano, mais identificado com o cotidiano de um
homem casado, com filhos etc. "Uma pessoa massacrada pela falta de
sentido da vida começa a achar que este Jesus ‘mais perto de mim’ faz
parte da religião. Se for uma mulher pensando isso, fica ‘mais perto
ainda’, porque Jesus teve a seu lado uma mulher que era fundamental. Eu
acho que a teologia, com 50 aspas, que está em ‘O código Da Vinci’, é
uma teologia bem barata, uma teologia que se alimenta também da dimensão
espiritual das pessoas. Principalmente no mundo em que a gente vive,
onde existe a forte tendência a achar que tudo se resolve no plano do
humano", afirmou.
O professor de teologia reagiu, em seguida, contra a "demonização da
Igreja Católica", sobretudo a Opus Dei, uma das prelezias do
cristianismo que mais ganha fiéis em todo o mundo. Integrante das
facções "espiritualistas" do catolicismo, a Opus Dei é a vilã no livro
de Dan Brown, ao ser representada por membros que se empenham na
perseguição ao protagonista-mocinho, para que este não descubra segredos
comprometedores da igreja.
"Eu diria à pessoa que está interessada em compreender a Opus Dei que
não construa seu repertório a partir de algo como ‘O código Da Vinci’,
porque o livro dá uma imagem da facção que pertence ao senso comum. E,
como tudo o que é da reprodutibilidade técnica, o livro acaba produzindo
a tendência a pasteurizar e homogeneizar. Não devemos sair por aí
dizendo que o livro fala historicamente verdades sobre o cristianismo",
recomendou o teólogo.
Outra sugestão de Pondé é que devemos tomar cuidado para não sair por
aí dizendo que o Opus Dei é “um grupo de pessoas enlouquecidas que estão
planejando comer criancinhas”. “Isso seria um problema não porque
devamos construir a imagem de que uma facção como a Opus Dei é legal. O
que eu quero dizer é que, quando construímos mitos em cima de fatos
reais, ficamos cegos para o próprio fato real. O risco é que, num belo
dia, a sua mulher ou seu marido ou seu filho entre para um negócio
desses, e você não sabe nem que vocabulário deve usar para conversar com
eles."
O tema da representação de Jesus voltou à tona na explanação de
Pondé, como problema estético:
"Qual é a imagem que podemos passar de Jesus? Esta é uma questão que
está na raiz do cristianismo. O cristianismo pensa como você deve narrar
Deus ou deve representá-lo, do ponto de vista figurativo, desde sua
origem. Por quê? Porque o cristianismo herdou um problema que é do
judaísmo: Deus não tem nome, para os judeus, e assim está fora da
representação. Não existe conceito para Deus, conceito sobre Deus é
idolatria. Você não sabe o que Deus é e Seu nome são quatro letras em
hebraico impronunciáveis, o tal do tetragrama. Isso já se desdobra na
idéia de que você jamais vai representar Deus como ele é. Logo, a idéia
de que você pode fazer uma figura de Deus ou narrar Deus, do ponto de
vista literário, seria um absurdo. Mas, ao mesmo tempo, o judaísmo vai
dizer que nós fomos feitos à imagem de Deus. Aí dá um nó, porque a gente
não pode fazer a imagem de Deus, mas paradoxalmente somos a imagem de
Deus.
"Já para o cristianismo, Deus entrou no corpo de um ser humano e
andou por aí. Não é que Deus não tem imagem, ele teve imagem histórica,
chamou-se Jesus de Nazaré, um cara que andou por aí, falou coisas, e as
pessoas saíram escrevendo o que ele falou, como ele viveu. Então, o
cristianismo acaba sendo obrigado a fazer uma reflexão estética mais
sólida do que o judaísmo. Porque ele é o fruto de um problema, que é a
idéia da encarnação de Deus no corpo de um ser humano. Então, o primeiro
objeto estético do qual teríamos numa reflexão religiosa de tradição
cristã é o próprio homem. E é claro que, desta forma, há um retorno à
reflexão platônica, porque é estético e moral ao mesmo tempo".
Depois, Pondé relacionou o que considera alguns dos mais importantes
momentos em que a teologia cristã "pensou" sua relação com a arte e com
a representação de Jesus Cristo.
A primeira etapa deste processo, na cronologia do teólogo, começa no
século IV, com as idéias de Jesus como o logos do universo.
Constrói-se aqui a imagem do Jesus "impassível, gigantesco, segurando
alguma imagem que tem elementos de alfa a ômega". "É aquela idéia de que
Jesus é o começo e o fim, é o dono da criação. Essa imagem de Jesus vai
representar, no plano da reflexão, toda teologia racional dentro do
cristianismo. Então, o homem que pensa entende Jesus, chega até Deus e
entende o princípio das coisas", exemplificou.
Outro desses "momentos importantes" da reflexão estética de tradição
cristã ocorre por volta do século VI, a partir do teólogo conhecido como
pseudo-Dionísio, autor de "uma reflexão muito poderosa sobre a imagem de
Deus na hierarquia celeste da criação".
"Pseudo-Dionísio tem o tratado mais curto da história da filosofia e
da teologia, com seis páginas e meia. Chama-se ‘Teologia mística’. Esta
obra vai organizar a recepção do neoplatonismo na tradição cristã. É um
livro que problematiza o limite da representação e da imagem na relação
com Deus e com Jesus. O autor traz para nós a idéia de que toda
representação estética, assim como toda representação no campo da
linguagem escrita ou visual, é sempre uma representação menor do que é
possível representar Deus. Portanto, existe sempre uma coisa que não
sabemos o que é, que está para fora da nossa capacidade de compreender
ou de experimentar. Na verdade, o pseudo-Dionísio faz uma espécie de
estética pedagógica e nos mostra que a tentativa de representação de
Jesus Cristo ou de Deus, e o fracasso dessa tentativa, nos ensina como
proceder na tentativa de compreendê-los."
Eis que, entre o século 8 e 13, os teólogos João Damasceno,
Boaventura e Tomás de Aquino organizam, cada um com sua contribuição,
uma estética cristã que, em linhas gerais, diz "que somos fracos para
entender o que Deus é", de acordo com Pondé.
"Então Deus já encarnou no homem para facilitar as coisas, para
ajudar-nos a descobrir como devemos agir. Por isso, a imagem e a
literatura não são malignas em si. Elas podem ter uma dimensão
teológica, uma dimensão pedagógica e evangelizadora. Nesse sentido, a
reflexão dentro do cristianismo vai esbarrar num problema típico de hoje
em dia, quando alguém diz: ‘Tudo bem, ‘O código Da Vinci’ pode ser ruim,
mas será que o livro não é bom para quem não tem nenhum repertório além
desse? Será que o livro não pode ajudar alguém a ser despertado para o
que é o Jesus histórico ou para o que é o problema das várias
representações de Jesus ao longo do tempo? Será que o leitor não pode
ser despertado para o problema do lugar da mulher na tradição cristã?’”.
Que pode, pode. O problema, segundo o teólogo, não é o leitor de "O
código Da Vinci" ser despertado para estas questões a partir da trama.
Problema é o leitor tomar como caminho de pensamento um livro atrelado
às "demandas" do mercado, desmascarado por desvios e equívocos. "Do
ponto de vista da própria igreja, há controvérsias com relação ao poder
do livro de difundir idéias. Tem quem diga que não se deve falar mais de
‘O código Da Vinci’, que devemos deixar que a coqueluche acabe, que
passe. Porque, sendo um fenômeno de mídia, ela pode passar", concluiu
Pondé.
José Augusto Ribeiro
É jornalista, membro do conselho de editorial da revista "Número"