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Fidedigna, minissérie pinta cotidiano do gênio italiano

22/08/2005

 

FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

   Preparada como minissérie para a TV italiana, "A Vida de Leonardo da Vinci" equilibra-se entre ficção e realidade. Em longos 325 minutos, que bem poderiam ter sido reduzidos na versão para DVD, o diretor e roteirista Renato Castellani apresenta o cotidiano do grande gênio do renascimento com uma narrativa um tanto novelesca sem, no entanto, inventar situações melodramáticas. Já é um grande mérito.

   Com fontes bastante fidedignas sobre Leonardo da Vinci (1452-1519), já que ele próprio deixou inúmeros escritos, e seu biógrafo, Vasari, outros tantos, a produção reforça aquilo que se sabe: a versatilidade do artista que também era grande pesquisador e cientista, sua dependência dos mecenas, e a criação de suas principais obras, entre elas "A Santa Ceia" e "Monalisa".

   Quanto a eventuais romances, silêncio, assim como nos escritos de Da Vinci, interpretado por Philippe Leroy. Apenas a constatação de sua próxima convivência com dois jovens italianos, Salay, a quem chamava "ladrão, obstinado, mentiroso e guloso", e o nobre Francesco Melzi, que foi seu testamenteiro.

Vida pública

   Passados 500 anos, não deixa de ser surpreendente como muito de sua vida envolve personagens conhecidos: a disputa por realizar uma escultura em mármore, perdida para Michelângelo (1475-1564), que criou "Davi" com a vitória, ou as disputas judiciais com o irmão, nas quais foi aconselhado por Nicolau Maquiavel (1469-1527). Da Vinci, além de gênio, sabia onde deveria estar. Talvez por isso fosse gênio.

A Vida de Leonardo da Vinci
   

Direção: Renato Castellani
Distribuidora: Versátil; R$ 60, em média

 (© Folha de S. Paulol)


“O código Da Vinci” em questão

Como foi o debate da crítica Walnice Nogueira Galvão e do teólogo Luiz Felipe Pondé sobre o best-seller

Por José Augusto Ribeiro

   Como romance de fundo histórico, "O código Da Vinci" peca pelas imprecisões factuais. Como thriller policial, tem desfecho "anticlimático". Como enigma esotérico ou religioso, opta por soluções "simplistas" e uma teologia "bem barata". Mas, como best-seller, o livro não erra: repete a fórmula do sucesso mercadológico, sem arriscar-se em experimentações formais. Por que então, com tantas deficiências, o título virou a coqueluche que é?

   Algumas respostas possíveis a essa pergunta foram aventadas em um debate a respeito do livro promovido por Trópico e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo dentro da série de encontros “Trópico na Pinacoteca”. Diante do auditório lotado da Pinacoteca, a crítica de literatura e cultura Walnice Nogueira Galvão e o teólogo Luiz Felipe Pondé analisaram a representação da Igreja Católica no livro do norte-americano Dan Brown que se tornou um fenômeno de vendas em todo o mundo.

   Primeiro, Walnice destrinchou o formato de best-seller comum aos livros de Brown, Paulo Coelho e J. K. Rowling, a autora da série "Harry Potter". Depois, Pondé se deteve ao exame das "questões teológicas" em que se enreda "O código Da Vinci". O resultado foi elucidativo e sem concessões.

   "A meu ver, o extraordinário sucesso mundial de ‘O código Da Vinci’ é resultado de uma estratégia de marketing. Nada encontrei neste livro, nem nos dois outros que li do mesmo autor (‘Anjos e demônios’ e ‘Deception point’), algo que justificasse tal sucesso. Sei que existem, inclusive, quatro ou cinco livros, de outros autores, discutindo ‘O código Da Vinci’", disparou Walnice Galvão, na abertura do encontro.

   Para corrigir, em vez de "quatro ou cinco", já são pelo menos 12 os títulos editados no Brasil que se dedicam a "quebrar", a "decodificar", a "revelar", a "desmascarar", a "decifrar" -e até mesmo a "cozinhar com"- "O código da Vinci". O sucesso internacional a que se referia a crítica literária pode ser medido pelos mais de 20 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Só no Brasil, onde a tiragem de um livro recente costuma ser de 3.000 cópias, em média, a obra vendeu 750 mil, em um ano. O resultado animou a editora responsável pela edição brasileira, que agora espera duplicar estes números até o final de 2005.

   Os produtos culturais que têm por trás um poderoso aparato de publicidade são vários. Contudo, nem todos dão certo como o "O código Da Vinci". Menor ainda é o número de lançamentos editoriais com uma liquidez tão estrondosa. Então, afora a "estratégia de marketing", o que caracteriza um best-seller? Walnice propõe uma definição:

   "Quando falo de best-seller, eu falo não de um livro que vendeu muito, mas de um livro que é escrito de acordo com uma receita prévia, destinada a vender muito e rapidamente. É um livro cujo valor como mercadoria precede o valor artístico ou estético. É um livro produzido não de maneira livre e desinteressada, se nós considerarmos os dois critérios para identificar a obra de arte, segundo (o filósofo Immanuel) Kant, mas de olho nas exigências do mercado".

   Para tanto, existe uma fórmula, segundo Walnice, reproduzida a seguir. Primeiro, a leitura do livro deve ser fácil e digestiva. Segundo, o autor deve se pautar pelo "mínimo denominador comum", até chegar a alguma coisa que seja acessível à maioria das pessoas. Terceiro, a escrita deve fingir que a forma não existe; "deve-se diluir a camada lingüística, para que ela se torne transparente e desapareça como fonte de beleza estética". Quarto, é obrigatório aferrar-se a clichês e evitar o experimentalismo. Quinto, recomenda-se eleger temas que mexam com emoções primárias e irracionais, como sexo, violência e, "como vemos ultimamente", esoterismo, religião e ocultismo.

   A sexta regra é, segundo a crítica, aquela em que menos se presta atenção: todo best-seller traz sempre idéias progressistas. "Veja que é muito raro encontrar um best-seller reacionário, e por quê? Porque cai bem com os leitores, já que as camadas sociais que lêem livros, em geral, têm idéias progressistas. Qual seria a idéia progressista central de ‘O código Da Vinci’? É a entronização da mulher e do feminino, que é algo da última moda e que está na linha de frente das idéias progressistas de nosso tempo. No livro, isso é escondido atrás de uma série de ficções a respeito de Maria Madalena."

   Personagem da Bíblia normalmente interpretada como prostituta que encontrou sua redenção em Cristo, Maria Madalena se insere na trama de "O código Da Vinci" como suposta esposa de Jesus Cristo e a mãe de um filho do filho de Deus. Passagens deste tipo levaram o Vaticano a recomendar a seus fiéis que não comprassem nem lessem nada da lavra de Dan Brown. O que, claro, só fez aumentar os índices de venda dos livros do autor americano.

   A sétima regra para um best-seller é "ter um saber, uma técnica, uma especialidade". A obra deve oferecer ao leitor essa especialidade porque a ideologia burguesa, para a qual "tempo é dinheiro", exige que haja um efeito de aprendizagem, “que o leitor se iluda pensando que não está perdendo seu tempo ao consagrar-se à leitura", nas palavras de Walnice.

   "Uma das maneiras de reconhecer o best-seller é até simples: seu autor publica um livro por ano ou a cada dois anos, no máximo. Nesse sentido, é bom lembrar os estudos do (sociólogo francês) Pierre Bourdieu, quando ele diz que a aceleração das coisas no nosso tempo é nefasta para as artes e para a cultura. Porque as artes e a cultura têm um tempo de maturação que leva anos, décadas e, às vezes, séculos. A boa literatura, portanto, é avessa à linha de montagem, que é o que ocorre com os autores de um livro por ano ou a cada dois anos", completou.

   Em seguida, Galvão deu início a um levantamento do que têm em comum e do que têm de diferente "O código Da Vinci", os livros de Paulo Coelho e os "Harry Potter". A análise começou pela escocesa J. K. Rowling. "No caso do ‘Harry Potter’, a autora acerta a mão. Ela executa um livro seguindo a receita do best-seller com grande felicidade. Aliás, este é um segredo que os britânicos têm para fazer livros para crianças", comentou a crítica literária, lembrando exemplos do passado, como o inglês Lewis Carrol ("Alice no país das maravilhas") e o escocês Robert Stevenson ("A ilha do tesouro").

   "Uma das razões desse grande acerto (dos britânicos com relação à literatura infanto-juvenil) pode ser buscada nas mitologias européias, dos povos bárbaros. Os nórdicos demoraram mais tempo a se romanizar, a se cristianizar, e conservaram um acervo enorme de lendas, mitos e narrativas em que pululam os seres sobrenaturais, como fadas, gigantes, trasgos, gnomos, duendes. Quando o Romantismo, na virada do século 18 para o 19, despertou um interesse muito grande pelas tradições populares, nós tivemos, em toda a parte da Europa, alguns escritores recolhendo essas narrativas orais e transformando-as em livro", explicou Walnice, citando como exemplo a obra clássica dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.

   "Harry Potter" seria, então, a revitalização do conto de fadas, ou sua versão contemporânea. "É como se a autora tivesse posto no liquidificador todas essas histórias anteriores, selecionado os ingredientes básicos e montado de novo o paradigma do conto de fadas." Basta comparar: o protagonista da série -que já foi adaptada para o cinema- é um órfão atormentado, mal-tratado por pais adotivos, convivendo com um primo que o persegue. Em meio a tantas dificuldades, ele descobre que é um bruxo. O personagem sabe que pertence a uma grande linhagem de magos e, assim, vai vencendo todas as tristezas, como na Branca de Neve.

   O escritor seguinte a ser alvo da reflexão foi Paulo Coelho, o primeiro autor brasileiro a se situar entre os 10 mais vendidos do planeta. Para a crítica de literatura, o autor de "O alquimista" é um precursor do gênero "auto-ajuda travestido de esotérico". "Ele (Coelho) estava lá no seu canto, escrevendo livros em que oferecia esoterismo, ocultismo, auto-ajuda, quando o mundo inteiro deu uma guinada nessa direção. Vamos dizer que o mundo é que foi ao encontro de Paulo Coelho. Como ele escreve dentro do mínimo denominador comum, isso o globaliza imediatamente. Ele pode ser lido em qualquer lugar." Até chefes de Estado, como os presidentes de França e Estados Unidos, declararam que leram livros do escritor brasileiro, que também é sucesso na China, no Iraque e no Leste europeu.

   E o que "O código Da Vinci" tem a ver com isso? Tudo, segundo Walnice. "Harry Potter, Paulo Coelho e ‘O código Da Vinci’, além de serem best-sellers, oferecem esoterismo, religiosidade, o oculto e a magia, que são, a meu ver, compensatórios do excesso de materialismo de nosso tempo, do fundamentalismo do mercado, do primado da mercadoria e da idolatria do consumo e seu templo, que é o shopping center", resumiu a professora de literatura comparada da Universidade de São Paulo e autora de “O império do Belo Monte”, sobre a Guerra de Canudos.

   "Nós temos (no livro de Dan Brown) um enigma esotérico que exige decifração, por isso o herói é um simbologista da Universidade Harvard, acolitado por uma criptógrafa. Segundo, nós temos segredos escandalosos da vida privada de Jesus Cristo e a história de seu casamento com Maria Madalena. Terceiro, é um thriller de detetive, de suspense, e eu penso que Dan Brown é bom de enigma, mas ruim de solução. Ele põe uma série de soluções, uma atrás da outra, e cada uma delas fica mais sem graça que a anterior, até que a última é realmente anti-climática."

   Para não ficar só em depreciações, Dan Brown garante, pelo menos, boas doses de humor, segundo Walnice. "O que é mais divertido no enigma do ‘Código’ é que o autor falsifica a fonte sem a menor cerimônia. Por exemplo, ele diz que o caso de Jesus Cristo e Maria Madalena é confirmado pelos manuscritos do Mar Morto. Acontece que os manuscritos do Mar Morto, que são anteriores a Jesus Cristo e ao cristianismo, nunca os mencionaram. O que os manuscritos do Mar Morto trazem são versões do Velho Testamento e documentos sobre a seita dos essênios, que foram aqueles que escreveram os manuscritos. Mas o leitor é facilmente enganado. Esse é um ponto de escândalo, na minha opinião."

   Outro "ponto de escândalo", para a crítica de literatura, é o tratamento dado no livro à lenda do Santo Graal. Ao contrário do que está em "O Código da Vinci", o Santo Graal nunca teve nada a ver com a Santa Ceia de Jesus Cristo nem com a famosa tela de Leonardo Da Vinci. Walnice Galvão lembrou que o Santo Graal é uma tradição literária que surge por volta do século 11 ou 12, na Europa, sem vínculo seja com a cultura romana, com a grega ou com a judaica.

   "A lenda do Santo Graal é uma daquelas que deram origem aos contos de fadas de que falei há pouco. É uma lenda dos povos bárbaros europeus, no caso, os celtas. É uma das mais importantes, se não a mais importante de todas, e faz parte da saga do rei Artur e da Távola Redonda. Segundo a tradição literária, o Santo Graal é o nome que se dá ao cálice com que José de Arimatéia recolheu o sangue de Jesus Cristo vertido na cruz, como está escrito nos Evangelhos. Não tem nada que ver com a Santa Ceia que Jesus Cristo ofereceu a seus discípulos, às vésperas de ser preso, martirizado e crucificado. Dan Brown diz que é o mesmo cálice, que o Santo Graal é o cálice que foi usado na ceia. Não foi, isso está errado tanto segundo a Bíblia quanto segundo a tradição literária da legenda do Santo Graal", disse Walnice, no debate realizado em 30 de abril.

   Dando sequência às comparações, o teólogo Luiz Felipe Pondé começou sua explanação colocando lado a lado "O código Da Vinci" e o filme "Paixão de Cristo", dirigido por Mel Gibson. "O livro está na dinâmica das representações artísticas do cristianismo e, nesse sentido, acho interessante fazer uma comparação com outro grande fenômeno de massa, que foi ‘A paixão de Cristo’. A posição da igreja em relação aos dois (romance e filme) foi muito diferente, porque você encontra gente de perfil progressista que aceita ‘O código Da Vinci’, mas não vai encontrar gente de perfil progressista que aceita a ‘A paixão de Cristo’".

   Uma das diferenças entre a obra de Mel Gibson e a de Dan Brown está nas vertentes de representação do cristianismo em que cada um busca inspiração. Assim, ao passo que "A paixão de Cristo" oferece uma imagem do chamado "Jesus desfigurado", na cruz, "prestes a se desmanchar", "O código Da Vinci" entra na polêmica da "busca do Jesus histórico".

   "Essa tradição da busca do ‘Jesus histórico’ data do final do século 18, dentro de uma tradição do protestantismo liberal alemão. O que eles querem saber é, afinal de contas, quem foi o Jesus histórico. Mais especificamente, acho que ‘O código Da Vinci’ entra numa questão que se preocupa em desvendar o que aconteceu com Jesus e que a igreja não nos deixaria saber. Não estou dizendo que o livro é um relato sobre esse ‘Jesus histórico’, mas ele se alimenta disso, do ponto de vista da pesquisa histórica", lançou Pondé.

   Segundo o professor do Departamento de Teologia da PUC-SP, esse clima de mistério em torno da Igreja Católica e de seus personagens gera idéias como a de que o Vaticano é ocupado por "três ou quatro caras tarados, que ficam manipulando as coisas dentro de uma sala fechada". Também abre portas para que um livro como o de Dan Brown circule tanto, e faz com que o leitor crente (no livro, não em religião) interpele os críticos de "O código da Vinci": "E aí, você prova que o que está lá não é verdade?".

   "A verdade possível, como disse Walnice, não está nos manuscritos do Mar Morto”, refletiu Pondé. “Ela está nos manuscritos de uma outra caverna, a de Nag Hammadi, no Egito. Os manuscritos de Nag Hammadi, que em português chamamos de ‘manuscritos apócrifos’, foram encontrados nos anos 1940 e trazem uma série de evangelhos que, do ponto de vista da datação, são contemporâneos dos sinóticos. Então, de fato, temos variações da história de Jesus. Há histórias que dizem que Jesus foi enforcado numa árvore; histórias que dizem que Jesus não morreu, porque ele não tinha corpo, era só um espírito que pairava no mundo; tem histórias que falam que Jesus tinha mulheres que eram suas discípulas; tem histórias que dizem que Maria Madalena era mais importante do que imaginamos hoje. Então é legítima a pergunta sobre o casamento de Jesus: ‘Afinal, ele casou ou não?’. Pode ser, vai saber."

   Para Luiz Pondé, levantar especulações desse tipo permite ao cristão idealizar um Jesus mais humano, mais identificado com o cotidiano de um homem casado, com filhos etc. "Uma pessoa massacrada pela falta de sentido da vida começa a achar que este Jesus ‘mais perto de mim’ faz parte da religião. Se for uma mulher pensando isso, fica ‘mais perto ainda’, porque Jesus teve a seu lado uma mulher que era fundamental. Eu acho que a teologia, com 50 aspas, que está em ‘O código Da Vinci’, é uma teologia bem barata, uma teologia que se alimenta também da dimensão espiritual das pessoas. Principalmente no mundo em que a gente vive, onde existe a forte tendência a achar que tudo se resolve no plano do humano", afirmou.

   O professor de teologia reagiu, em seguida, contra a "demonização da Igreja Católica", sobretudo a Opus Dei, uma das prelezias do cristianismo que mais ganha fiéis em todo o mundo. Integrante das facções "espiritualistas" do catolicismo, a Opus Dei é a vilã no livro de Dan Brown, ao ser representada por membros que se empenham na perseguição ao protagonista-mocinho, para que este não descubra segredos comprometedores da igreja.

   "Eu diria à pessoa que está interessada em compreender a Opus Dei que não construa seu repertório a partir de algo como ‘O código Da Vinci’, porque o livro dá uma imagem da facção que pertence ao senso comum. E, como tudo o que é da reprodutibilidade técnica, o livro acaba produzindo a tendência a pasteurizar e homogeneizar. Não devemos sair por aí dizendo que o livro fala historicamente verdades sobre o cristianismo", recomendou o teólogo.

   Outra sugestão de Pondé é que devemos tomar cuidado para não sair por aí dizendo que o Opus Dei é “um grupo de pessoas enlouquecidas que estão planejando comer criancinhas”. “Isso seria um problema não porque devamos construir a imagem de que uma facção como a Opus Dei é legal. O que eu quero dizer é que, quando construímos mitos em cima de fatos reais, ficamos cegos para o próprio fato real. O risco é que, num belo dia, a sua mulher ou seu marido ou seu filho entre para um negócio desses, e você não sabe nem que vocabulário deve usar para conversar com eles."

   O tema da representação de Jesus voltou à tona na explanação de Pondé, como problema estético:

   "Qual é a imagem que podemos passar de Jesus? Esta é uma questão que está na raiz do cristianismo. O cristianismo pensa como você deve narrar Deus ou deve representá-lo, do ponto de vista figurativo, desde sua origem. Por quê? Porque o cristianismo herdou um problema que é do judaísmo: Deus não tem nome, para os judeus, e assim está fora da representação. Não existe conceito para Deus, conceito sobre Deus é idolatria. Você não sabe o que Deus é e Seu nome são quatro letras em hebraico impronunciáveis, o tal do tetragrama. Isso já se desdobra na idéia de que você jamais vai representar Deus como ele é. Logo, a idéia de que você pode fazer uma figura de Deus ou narrar Deus, do ponto de vista literário, seria um absurdo. Mas, ao mesmo tempo, o judaísmo vai dizer que nós fomos feitos à imagem de Deus. Aí dá um nó, porque a gente não pode fazer a imagem de Deus, mas paradoxalmente somos a imagem de Deus.

   "Já para o cristianismo, Deus entrou no corpo de um ser humano e andou por aí. Não é que Deus não tem imagem, ele teve imagem histórica, chamou-se Jesus de Nazaré, um cara que andou por aí, falou coisas, e as pessoas saíram escrevendo o que ele falou, como ele viveu. Então, o cristianismo acaba sendo obrigado a fazer uma reflexão estética mais sólida do que o judaísmo. Porque ele é o fruto de um problema, que é a idéia da encarnação de Deus no corpo de um ser humano. Então, o primeiro objeto estético do qual teríamos numa reflexão religiosa de tradição cristã é o próprio homem. E é claro que, desta forma, há um retorno à reflexão platônica, porque é estético e moral ao mesmo tempo".

   Depois, Pondé relacionou o que considera alguns dos mais importantes momentos em que a teologia cristã "pensou" sua relação com a arte e com a representação de Jesus Cristo.

   A primeira etapa deste processo, na cronologia do teólogo, começa no século IV, com as idéias de Jesus como o logos do universo. Constrói-se aqui a imagem do Jesus "impassível, gigantesco, segurando alguma imagem que tem elementos de alfa a ômega". "É aquela idéia de que Jesus é o começo e o fim, é o dono da criação. Essa imagem de Jesus vai representar, no plano da reflexão, toda teologia racional dentro do cristianismo. Então, o homem que pensa entende Jesus, chega até Deus e entende o princípio das coisas", exemplificou.

   Outro desses "momentos importantes" da reflexão estética de tradição cristã ocorre por volta do século VI, a partir do teólogo conhecido como pseudo-Dionísio, autor de "uma reflexão muito poderosa sobre a imagem de Deus na hierarquia celeste da criação".

   "Pseudo-Dionísio tem o tratado mais curto da história da filosofia e da teologia, com seis páginas e meia. Chama-se ‘Teologia mística’. Esta obra vai organizar a recepção do neoplatonismo na tradição cristã. É um livro que problematiza o limite da representação e da imagem na relação com Deus e com Jesus. O autor traz para nós a idéia de que toda representação estética, assim como toda representação no campo da linguagem escrita ou visual, é sempre uma representação menor do que é possível representar Deus. Portanto, existe sempre uma coisa que não sabemos o que é, que está para fora da nossa capacidade de compreender ou de experimentar. Na verdade, o pseudo-Dionísio faz uma espécie de estética pedagógica e nos mostra que a tentativa de representação de Jesus Cristo ou de Deus, e o fracasso dessa tentativa, nos ensina como proceder na tentativa de compreendê-los."

   Eis que, entre o século 8 e 13, os teólogos João Damasceno, Boaventura e Tomás de Aquino organizam, cada um com sua contribuição, uma estética cristã que, em linhas gerais, diz "que somos fracos para entender o que Deus é", de acordo com Pondé.

   "Então Deus já encarnou no homem para facilitar as coisas, para ajudar-nos a descobrir como devemos agir. Por isso, a imagem e a literatura não são malignas em si. Elas podem ter uma dimensão teológica, uma dimensão pedagógica e evangelizadora. Nesse sentido, a reflexão dentro do cristianismo vai esbarrar num problema típico de hoje em dia, quando alguém diz: ‘Tudo bem, ‘O código Da Vinci’ pode ser ruim, mas será que o livro não é bom para quem não tem nenhum repertório além desse? Será que o livro não pode ajudar alguém a ser despertado para o que é o Jesus histórico ou para o que é o problema das várias representações de Jesus ao longo do tempo? Será que o leitor não pode ser despertado para o problema do lugar da mulher na tradição cristã?’”.

   Que pode, pode. O problema, segundo o teólogo, não é o leitor de "O código Da Vinci" ser despertado para estas questões a partir da trama. Problema é o leitor tomar como caminho de pensamento um livro atrelado às "demandas" do mercado, desmascarado por desvios e equívocos. "Do ponto de vista da própria igreja, há controvérsias com relação ao poder do livro de difundir idéias. Tem quem diga que não se deve falar mais de ‘O código Da Vinci’, que devemos deixar que a coqueluche acabe, que passe. Porque, sendo um fenômeno de mídia, ela pode passar", concluiu Pondé.

José Augusto Ribeiro
É jornalista, membro do conselho de editorial da revista "Número"

(© Trópico)

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