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"Don Carlo" em tempos de guerra, ontem e hoje

27/08/2004

Evelson de Freitas/AE

Camisetas estampadas com o rosto de Che Guevara atrás da meio-soprano romena Mariana Cioromilla, e cachorros da PM em cena são elementos de modernização da cena

Ópera de Verdi volta ao Teatro Municipal em montagem polêmica do diretor mineiro Gabriel Villela

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

   Tinha tudo para dar certo: guerra, religião, incesto, homossexualidade, tragédia grega, Che Guevara e Guns 'n Roses, sem falar nos sete espetaculares pastores alemães da Polícia Militar. Tinha tudo para dar errado: guerra, religião, incesto, homossexualidade, tragédia grega, Che Guevara e Guns 'n Roses, sem falar nos sete espetaculares pastores alemães da Polícia Militar.

   No final das contas, foi uma mistura de acertos e desacertos a estréia do "Don Carlo" de Gabriel Villela, anteontem, no Teatro Municipal.

   Que este é o "Don Carlo" de Villela ninguém tem dúvida. A ópera de Verdi (1813-1901) foi reinventada mais uma vez, um século e meio depois de sua primeira apresentação, não só porque qualquer geração, sem fazer força, é autora daquilo que ouve, mas porque o diretor mineiro entrou nas águas líricas como um poderoso reagente, que tinge tudo de outra cor. Se a impressão que fica, depois, não é fácil de definir, talvez seja porque o resultado acaba se mostrando insuficiente comparado às ambições que a própria montagem criou.

   O que não seria justo é reclamar contra o princípio dessa montagem: ela tem de ser julgada segundo os seus critérios (não necessariamente os de quem critica). Não vale, por exemplo, reclamar contra a mistura de teatro grego -sugerido pela projeção de um anfiteatro na lateral do palco, pelas colunas e afrescos no fundo e pela armação das arquibancadas do coro- com o figurino de roqueiro-teatreiro dos soldados -capacetes, jaquetas de couro com a cara de Che Guevara na frente e o nome das bandas americanas atrás, saias quadriculadas (para homens e mulheres) e All Star vermelhos-, tudo isso para encenar uma história que se passa na Espanha barroca, recontada a pedido do gênio italiano pelos libretistas oitocentistas franceses, a partir da peça original do romântico alemão Friedrich Schiller.

   Tantos contrastes, reforçados pelo cromatismo do cenário (lilás com vermelho e verde, por exemplo), servem, antes de mais nada, para destruir qualquer fixação histórica da peça, atualizando a barbárie num contínuo que iguala um rei católico da Inquisição a um presidente americano atual, assim como aos facínoras que atacaram Tróia etc. Entendidos no contexto da encenação propriamente dita -um palco dentro do palco, um tablado à maneira do teatro mambembe-, eles têm ainda outro papel: contribuem para dinamitar qualquer vestígio de teatro realista e transformam a ópera num teatro do teatro.

   Só assim se pode aceitar, também, a encenação dos cantores-atores, engessados pelo diretor num registro quase hierático. Uma forma, quem sabe, de controlar os maneirismos de praxe, mas que, afinal, acaba criando outros maneirismos. Exceção feita ao rei Felipe do ótimo baixo búlgaro Julian Konstantinov, que já surge monolítico no palco e faz as almas delicadas correrem. Já no caso dos outros solistas, o tenor mexicano Don Carlo, a romena Mariana Cioromila e os brasileiros Laura de Souza (soprano) e Rodrigo Esteves (barítono, brilhante na quinta-feira), a balança natural continuava pendendo para o melodrama, sem que nenhum ficasse à vontade no papel de fazer um papel.

   E o incesto? Tecnicamente, é só adultério (platônico), entre o filho do rei e sua madrasta (que era sua antiga noiva). Villela não força a mão neste ponto, assim como passa quase batido pela amizade entre Carlo e Rodrigo, que qualquer leitor de hoje saberia enxergar também com outros olhos. Especialmente com outros ouvidos. Aqui se toca no ponto mais frágil: Villela parece pouco interessado nas nuances da música, para além da ordem narrativa.

   Coral Lírico, como sempre, muito bom; já a Sinfônica, regida por Ira Levin, fez uma estréia fraca (com destaque positivo para o lindo solo de violoncelo no ato 3). Quem estava bem era o coro de cães: sempre naturais, aprumados, calmos, mas latindo no fim com eloqüência; e, de longe, os mais bem vestidos da companhia.

(© Folha de S. Paulo)


Montagem de "Don Carlo" atualiza ópera de Verdi

Uma das principais e mais sombrias óperas do repertório italiano ganha roupagem moderna no Teatro Municipal de SP.

João Luiz Sampaio

   São Paulo - Uma daquelas grandes óperas do repertório mundial, Don Carlo, de Verdi, volta nesta quinta-feira após 80 anos ao palco do Teatro Municipal de São Paulo. Quando as cortinas subirem, porém, não espere ver retratada a Espanha do século 16, os salões imponentes do Escurial, um dos maiores palácios imperiais europeus, ou as sedas e o ouro da corte francesa. Na concepção do diretor teatral Gabriel Villela, que faz sua segunda incursão pela ópera, a trama de amor, traição e guerra é ambientada na Grécia antiga e ganha o adicional atualíssimo da crítica ao governo Bush e à guerra no Iraque. Parece estranho? Não é à toa que a volta do ´Don Carlo´ reacende a discussão sobre o estágio atual das montagens operísticas.

   "A ópera é uma arte estagnada no tempo", provoca o encenador. "Atualizá-la é uma obrigação, já que seu grau de inverossimilhança chegou a um nível insuportável." Villela também não poupa de críticas o sistema de produção do Municipal. "Fazemos tudo sem dinheiro, é inacreditável. Não devia ser assim. Está sendo uma das experiências mais difíceis da minha carreira."

   O enredo de Don Carlo é um emaranhado de tramas e histórias paralelas. O ponto de partida é o seguinte: em um acordo para que a paz seja selada, Elisabetta, filha do rei francês, é prometida a Carlo, filho do rei espanhol. Os dois se apaixonam mas Felipe II, na época o grande monarca europeu, resolve que é ele próprio quem deve se casar com Elisabetta. Daí em diante, a história se desenrola a partir das motivações de cada um dos protagonistas: Carlo (o tenor Octavio Arevalo), perdido entre a paixão pela madrasta e a decisão de lutar contra o exército do pai; Felipe II (o baixo Julian Konstantinov), um rei que descobre a solidão do poder e sua impotência perante a Igreja (encarnada na figura do Inquisidor, o baixo Luis Otavio Faria); Elisabetta (a soprano Laura de Sousa), dividida entre o amor e a honra; Eboli (a meio-soprano Mariana Cioromilla), princesa que apaixonada - e rejeitada - por Carlo, quase provoca sua morte; e o marquês de Posa (o barítono Rodrigo Esteves), amigo do príncipe, herói de guerra que defende o fim do conflito e um bando de idéias liberais.

   Até pela trama, tirada da peça de mesmo nome do alemão Friedrich Schiller, Don Carlo é uma das mais sombrias óperas do repertório italiano. Estreada em 1867, tem uma série de inovações musicais que mostram Verdi repensando a tradição italiana. Isso significa na prática, entre outras coisas, um maior poder dramático, que vem da relação mais direta da orquestra com o canto, ou seja, da música com o texto, como ressalta o maestro Ira Levin. Outro aspecto importante é a excelência como Verdi une dramas pessoais e suas conseqüências políticas.

   Verdi sempre se preocupou com o aspecto teatral, cênico, de suas obras. Don Carlo é símbolo dessa preocupação. E essa premissa está no centro da concepção de Gabriel Villela para a ópera. Se Verdi busca o teatro na concepção da peça, volta às origens do gênero - o teatro grego. Daí, portanto, o cenário de J.C. Serroni, que recria uma espécie de arena grega. E Bush, a guerra, onde entram? Felipe II promove conflitos e mortes em nome da Santa Igreja. "O homem de hoje rompeu com Deus, mas ainda usa seu nome como pretexto para guerrear", diz Villela. No papel, a idéia funciona. O que o público espera é ver como isso se traduz na prática do palco - no termômetro do ensaio geral de terça-feira, um misto de aplausos e vaias.

PRESTE ATENÇÃO

"...na ária Io l’ho perduta, de Carlo, no 1.º ato. Ela relembra ao público o que aconteceu antes do início da ópera: o dia em que Carlo e Elisabetta se conhecem e trocam juras de amor, antes da decisão de Felipe II de se casar, ele próprio, com ela. Ouça a ária.
 

...na primeira cena entre Carlo e Elisabetta. No dueto, a música, de caráter ora lírico ora exitante, realça dramaticamente a presença e a impossibilidade do amor dos dois. Repare também no outro dueto, no fim da ópera. A tensão aqui também é forte mas se resolve musicalmente, com uma das mais belas melodias escritas por Verdi, quando eles aceitam que devem seguir caminhos distintos e, um dia, se encontrar no céu, em “um mundo melhor”.

...na cena de confronto entre o rei e o marquês. Além de mostrar o talento de Verdi para escrever para vozes mais baixas, ao opor um baixo e um barítono, ela é significativa também dramaticamente: revela que o rei sente falta de alguém em quem confiar; e, ainda, o caráter libertário de Posa, que tanto vai influenciar a história. Clique para ouvir.
 

...nas árias de Eboli, que mostram musicalmente a evolução da personagem. Na primeira, Nei giardin del bello, exige-se da intérprete mais leveza, quando ela diverte com seu canto a corte. Na segunda, O don fatale!, o tom é mais pesado: após ser exilada, ela agora se pune por ter tramado contra o príncipe e a rainha.

...nas duas grandes árias Ella giammai m’amo, em que o rei descobre a solidão do poder pouco antes de ser confrontado pelo Inquisidor, e Tu che le vanità, o momento mais forte da soprano em toda a ópera, um grande desabafo de quem até então se manteve resignada em sua condição.

(© estadao.com.br)

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