Ópera de Verdi volta ao Teatro Municipal em montagem
polêmica do diretor mineiro Gabriel Villela
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Tinha tudo para dar certo:
guerra, religião, incesto, homossexualidade, tragédia grega, Che Guevara
e Guns 'n Roses, sem falar nos sete espetaculares pastores alemães da
Polícia Militar. Tinha tudo para dar errado: guerra, religião, incesto,
homossexualidade, tragédia grega, Che Guevara e Guns 'n Roses, sem falar
nos sete espetaculares pastores alemães da Polícia Militar.
No final das contas, foi uma
mistura de acertos e desacertos a estréia do "Don Carlo" de Gabriel
Villela, anteontem, no Teatro Municipal.
Que este é o "Don Carlo" de
Villela ninguém tem dúvida. A ópera de Verdi (1813-1901) foi reinventada
mais uma vez, um século e meio depois de sua primeira apresentação, não
só porque qualquer geração, sem fazer força, é autora daquilo que ouve,
mas porque o diretor mineiro entrou nas águas líricas como um poderoso
reagente, que tinge tudo de outra cor. Se a impressão que fica, depois,
não é fácil de definir, talvez seja porque o resultado acaba se
mostrando insuficiente comparado às ambições que a própria montagem
criou.
O que não seria justo é
reclamar contra o princípio dessa montagem: ela tem de ser julgada
segundo os seus critérios (não necessariamente os de quem critica). Não
vale, por exemplo, reclamar contra a mistura de teatro grego -sugerido
pela projeção de um anfiteatro na lateral do palco, pelas colunas e
afrescos no fundo e pela armação das arquibancadas do coro- com o
figurino de roqueiro-teatreiro dos soldados -capacetes, jaquetas de
couro com a cara de Che Guevara na frente e o nome das bandas americanas
atrás, saias quadriculadas (para homens e mulheres) e All Star
vermelhos-, tudo isso para encenar uma história que se passa na Espanha
barroca, recontada a pedido do gênio italiano pelos libretistas
oitocentistas franceses, a partir da peça original do romântico alemão
Friedrich Schiller.
Tantos contrastes, reforçados
pelo cromatismo do cenário (lilás com vermelho e verde, por exemplo),
servem, antes de mais nada, para destruir qualquer fixação histórica da
peça, atualizando a barbárie num contínuo que iguala um rei católico da
Inquisição a um presidente americano atual, assim como aos facínoras que
atacaram Tróia etc. Entendidos no contexto da encenação propriamente
dita -um palco dentro do palco, um tablado à maneira do teatro
mambembe-, eles têm ainda outro papel: contribuem para dinamitar
qualquer vestígio de teatro realista e transformam a ópera num teatro do
teatro.
Só assim se pode aceitar,
também, a encenação dos cantores-atores, engessados pelo diretor num
registro quase hierático. Uma forma, quem sabe, de controlar os
maneirismos de praxe, mas que, afinal, acaba criando outros maneirismos.
Exceção feita ao rei Felipe do ótimo baixo búlgaro Julian Konstantinov,
que já surge monolítico no palco e faz as almas delicadas correrem. Já
no caso dos outros solistas, o tenor mexicano Don Carlo, a romena
Mariana Cioromila e os brasileiros Laura de Souza (soprano) e Rodrigo
Esteves (barítono, brilhante na quinta-feira), a balança natural
continuava pendendo para o melodrama, sem que nenhum ficasse à vontade
no papel de fazer um papel.
E o incesto? Tecnicamente, é
só adultério (platônico), entre o filho do rei e sua madrasta (que era
sua antiga noiva). Villela não força a mão neste ponto, assim como passa
quase batido pela amizade entre Carlo e Rodrigo, que qualquer leitor de
hoje saberia enxergar também com outros olhos. Especialmente com outros
ouvidos. Aqui se toca no ponto mais frágil: Villela parece pouco
interessado nas nuances da música, para além da ordem narrativa.
Coral Lírico, como sempre,
muito bom; já a Sinfônica, regida por Ira Levin, fez uma estréia fraca
(com destaque positivo para o lindo solo de violoncelo no ato 3). Quem
estava bem era o coro de cães: sempre naturais, aprumados, calmos, mas
latindo no fim com eloqüência; e, de longe, os mais bem vestidos da
companhia.
(© Folha
de S. Paulo)
Montagem de "Don Carlo" atualiza
ópera de Verdi
Uma das principais e mais sombrias óperas
do repertório italiano ganha roupagem moderna no Teatro Municipal de SP.
João Luiz Sampaio
São
Paulo - Uma daquelas grandes óperas do
repertório mundial, Don Carlo, de Verdi, volta nesta quinta-feira
após 80 anos ao palco do Teatro Municipal de São Paulo. Quando as
cortinas subirem, porém, não espere ver retratada a Espanha do século
16, os salões imponentes do Escurial, um dos maiores palácios imperiais
europeus, ou as sedas e o ouro da corte francesa. Na concepção do
diretor teatral Gabriel Villela, que faz sua segunda incursão pela
ópera, a trama de amor, traição e guerra é ambientada na Grécia antiga e
ganha o adicional atualíssimo da crítica ao governo Bush e à guerra no
Iraque. Parece estranho? Não é à toa que a volta do ´Don Carlo´ reacende
a discussão sobre o estágio atual das montagens operísticas.
"A ópera é uma arte
estagnada no tempo", provoca o encenador. "Atualizá-la é uma obrigação,
já que seu grau de inverossimilhança chegou a um nível insuportável."
Villela também não poupa de críticas o sistema de produção do Municipal.
"Fazemos tudo sem dinheiro, é inacreditável. Não devia ser assim. Está
sendo uma das experiências mais difíceis da minha carreira."
O enredo de Don
Carlo é um emaranhado de tramas e histórias paralelas. O ponto de
partida é o seguinte: em um acordo para que a paz seja selada,
Elisabetta, filha do rei francês, é prometida a Carlo, filho do rei
espanhol. Os dois se apaixonam mas Felipe II, na época o grande monarca
europeu, resolve que é ele próprio quem deve se casar com Elisabetta.
Daí em diante, a história se desenrola a partir das motivações de cada
um dos protagonistas: Carlo (o tenor Octavio Arevalo), perdido entre a
paixão pela madrasta e a decisão de lutar contra o exército do pai;
Felipe II (o baixo Julian Konstantinov), um rei que descobre a solidão
do poder e sua impotência perante a Igreja (encarnada na figura do
Inquisidor, o baixo Luis Otavio Faria); Elisabetta (a soprano Laura de
Sousa), dividida entre o amor e a honra; Eboli (a meio-soprano Mariana
Cioromilla), princesa que apaixonada - e rejeitada - por Carlo, quase
provoca sua morte; e o marquês de Posa (o barítono Rodrigo Esteves),
amigo do príncipe, herói de guerra que defende o fim do conflito e um
bando de idéias liberais.
Até pela trama, tirada
da peça de mesmo nome do alemão Friedrich Schiller, Don Carlo é
uma das mais sombrias óperas do repertório italiano. Estreada em 1867,
tem uma série de inovações musicais que mostram Verdi repensando a
tradição italiana. Isso significa na prática, entre outras coisas, um
maior poder dramático, que vem da relação mais direta da orquestra com o
canto, ou seja, da música com o texto, como ressalta o maestro Ira
Levin. Outro aspecto importante é a excelência como Verdi une dramas
pessoais e suas conseqüências políticas.
Verdi sempre se
preocupou com o aspecto teatral, cênico, de suas obras. Don Carlo
é símbolo dessa preocupação. E essa premissa está no centro da concepção
de Gabriel Villela para a ópera. Se Verdi busca o teatro na concepção da
peça, volta às origens do gênero - o teatro grego. Daí, portanto, o
cenário de J.C. Serroni, que recria uma espécie de arena grega. E Bush,
a guerra, onde entram? Felipe II promove conflitos e mortes em nome da
Santa Igreja. "O homem de hoje rompeu com Deus, mas ainda usa seu nome
como pretexto para guerrear", diz Villela. No papel, a idéia funciona. O
que o público espera é ver como isso se traduz na prática do palco - no
termômetro do ensaio geral de terça-feira, um misto de aplausos e vaias.
PRESTE ATENÇÃO
"...na ária Io l’ho perduta, de Carlo, no 1.º ato. Ela
relembra ao público o que aconteceu antes do início da ópera: o dia em
que Carlo e Elisabetta se conhecem e trocam juras de amor, antes da
decisão de Felipe II de se casar, ele próprio, com ela.
Ouça a ária.
...na primeira cena entre Carlo e Elisabetta. No
dueto, a música, de
caráter ora lírico ora exitante, realça dramaticamente a presença e a
impossibilidade do amor dos dois. Repare também no
outro dueto, no fim da
ópera. A tensão aqui também é forte mas se resolve musicalmente, com uma
das mais belas melodias escritas por Verdi, quando eles aceitam que
devem seguir caminhos distintos e, um dia, se encontrar no céu, em “um
mundo melhor”.
...na cena de confronto entre o rei e o marquês. Além de mostrar o
talento de Verdi para escrever para vozes mais baixas, ao opor um baixo
e um barítono, ela é significativa também dramaticamente: revela que o
rei sente falta de alguém em quem confiar; e, ainda, o caráter
libertário de Posa, que tanto vai influenciar a história.
Clique para ouvir.
...nas árias de Eboli, que mostram musicalmente a evolução da
personagem. Na primeira,
Nei giardin del bello,
exige-se da intérprete mais leveza, quando ela diverte com seu canto a
corte. Na segunda,
O don fatale!, o tom é
mais pesado: após ser exilada, ela agora se pune por ter tramado contra
o príncipe e a rainha.
...nas duas grandes árias
Ella giammai m’amo, em que
o rei descobre a solidão do poder pouco antes de ser confrontado pelo
Inquisidor, e
Tu che le vanità, o
momento mais forte da soprano em toda a ópera, um grande desabafo de
quem até então se manteve resignada em sua condição.