Edição luxuosa da obra de Visconti tem DVD só de
extras
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Em edição de luxo, lançada
pela Versátil, "O Leopardo" chega finalmente ao Brasil em sua versão
original italiana (de 185 minutos, 20 minutos mais longa que a versão da
Fox, que circulava até então). Nela, o clássico de Luchino Visconti
retoma suas cores originais (mais crepusculares do que as da edição
americana), restauradas pelas mãos habilidosas de Giuseppe Rotunno,
diretor de fotografia do filme.
Em entrevista que vem de
bônus, um minucioso Rotunno explica todo o processo de restauração do
filme. Além dessa aula particular e de vasto material de arquivo, os
extras do lançamento, que compõem um DVD à parte, trazem entrevistas com
o produtor Gofredo Lombardo e as estrelas (Alain Delon, Claudia
Cardinale) remanescentes da produção. Lombardo nos conta como teve de
mentir para fazer com que Visconti aceitasse Burt Lancaster como
protagonista do filme.
No material de arquivo,
encontramos duas imagens que provam o quão bem-sucedidas foram as
artimanhas de Lombardo: Lancaster, o astro hollywoodiano que desembarca
de um avião estampando seu famoso sorriso de gato de Alice e um grande
topete no início da produção, reaparece bem diferente, nos bastidores da
filmagem, ao lado de Visconti e igualzinho a ele: de óculos escuros e
cigarrilha, taciturno e elegante.
Lancaster, como chegou a
confessar, mimetizou Visconti (a começar pelas sobrancelhas) para
interpretar o príncipe de Salina, dom Fabrizio, herói do romance
homônimo de Tomasi di Lampedusa, ele próprio um príncipe decadente.
Muito porque Visconti, como se sabe, era também de linhagem nobre, um
esteta aristocrata, mas comunista, contradição que se resolve,
sublimemente, em "O Leopardo".
História
Na Sicília de 1861, a
revolução garibaldina chega anunciando a unificação da Itália e o fim,
para a aristocracia local, de toda uma era. Sobrinho dileto de dom
Fabrizio, Tancredi (Alain Delon) se engaja espertamente na revolução,
legando ao tio o lema: "É preciso mudar para que tudo continue como
está". Legado que cabe, hoje, a todo o século 20 e suas revoluções, mas
que Visconti aplicava, mais especificamente, à Itália de sua época, em
que a ascensão de um governo de centro-esquerda não garantira a mudança
das relações sociais.
"O mal histórico italiano",
dizia ele, "se chama transformismo". Em "O Leopardo", a consciência
histórica de Visconti passa pela sensibilidade e o desencanto (meio
tchekhovianos) de dom Fabrizio. Isto é, por sua índole aristocrática.
Pelos olhos de dom Fabrizio, testemunha ocular da decadência de sua
classe, Visconti faz o inventário cenográfico da aristocracia:
palacetes, roupas, móveis, modas. Visconti, o esteta, nunca deixa de
buscar no belo a transcendência de suas imagens.
O inventário comprova que,
partindo de Lampedusa, Visconti queria chegar a Proust. Daí a
importância da seqüência final do baile (que Visconti levou quatro
semanas para executar), seqüência em que dom Fabrizio, em busca do tempo
perdido, chega à plena compreensão deste que é o sentimento mais
recorrente nos filmes de Visconti, a sensação de que já é tarde demais.
No grande baile aristocrata, rito fúnebre de uma classe moribunda,
Tancredi consuma seus ditames, anunciando seu casamento com a bela filha
(Cardinale) de um burguês emergente. Visconti reencontrava ali a
história do casamento de seus pais e, junto a ela, um pouco de seu tempo
perdido.
O Leopardo
Il Gattopardo
Produção: Itália, 1963
Direção: Luchino Visconti
Com: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale
Lançamento: Versátil
(© Folha de S. Paulo)
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Luchino Visconti:
comunista de origem aristocrática |
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Elegância e decadência
DVD |
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Coleção Luchino Visconti e edição
especial de
O leopardo revelam o estilo operístico do diretor |
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Ivan
Claudio |
Luchino Visconti (1906-1976)
realizou grandes filmes centrados na miséria da classe operária, entre
eles Obsessão e Rocco e seus irmãos. Mas foi
retratando a decadência de sua própria classe, a aristocracia, que o
cineasta italiano encontrou seu tema por excelência. Somente o fausto
dos enredos crepusculares se adequava à sua visão operística da
realidade, sempre arruinada pelas forças determinantes dos eventos
históricos. Uma parcela desta fase magnífica sai agora em DVD na Coleção
Luchino Visconti, da Versátil Home Video, reunindo os filmes Sedução
da carne (1954), Noites brancas (1957), Violência e
paixão (1974) e O inocente (1976). Paralelamente, a mesma
Versátil coloca no mercado a edição especial de O leopardo
(1963), trazendo a versão integral da fita – com 3h05 de duração –
falada em italiano, pois até 1983, fora da Itália, só se conhecia a
versão em inglês. Um disco extra ainda reúne 2h30 de material especial,
com depoimentos de atores e técnicos.
Originário de uma nobre
família milanesa da qual herdou o título de conde, Visconti era um
comunista convicto, o que explica não apenas a sua atração pelos enredos
neorealistas do início de carreira como a progressiva investida nas
tramas decadentes de obras posteriores. Deste último grupo, dois filmes
ganham lugar de destaque ao abordar o mesmo momento histórico, a
unificação italiana, ocorrida no final do século XIX. Centrado nas lutas
de libertação do Vêneto, no Norte do país, ocupado pela Áustria,
Sedução da carne mostra o amor proibido entre a condessa Serpieri
(Alida Valli) e o desertor austríaco Franz Mahler (Farley Granger).
Embora seja um esplêndido melodrama histórico, o filme parece um ensaio
para o grande épico O leopardo, sobre a revolução na Sicília.
No melhor papel de sua carreira, Burt Lancaster encarna o cético
príncipe siciliano Fabrizio Salina, que se vê obrigado a se aliar à
burguesia ascendente, fazendo valer o mote do filme – é preciso que tudo
mude para que as coisas fiquem como estão.
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Berger e Lancaster em Violência e paixão:
valores em conflito |
O mesmo espírito desencantado
de quem assiste à agonia de seus valores reaparecerá mais tarde em
Violência e paixão – com cópia original falada em inglês –, apesar
de a ação estar centrada no terrorismo dos anos 1970. Não à toa, o
protagonista é vivido pelo mesmo Lancaster. Ele encarna um solitário
professor cuja vida passa por uma reviravolta ao alugar o andar superior
de seu apartamento para o ex-ativista de esquerda Konrad (Helmut
Berger), agora amante de uma marquesa. Saído de um derrame que
imobilizara o lado esquerdo de seu corpo, Visconti quis fazer um filme
com poucos personagens e rodado
entre quatro paredes. Mais tarde, mesmo na cadeira de rodas, enveredou
pelos espaços suntuosos de O inocente – seu último filme –
sobre um nobre do século XIX que mata o filho de sua mulher com um
amante. Foi o brilho derradeiro de uma obra que o filósofo francês
Gilles Deleuze comparou, com toda propriedade, a um cristal em
decomposição.
(©
Revista ISTO É)