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Ianelli além da abstração

04/08/2004

Arcangelo Ianelli, ao lado da mulher, Dirce

Exposição que será inaugurada hoje na Faap, em São Paulo, revela a fase figurativa do pintor Arcangelo Ianelli em 82 obras, muitas da coleção particular do artista, incluindo 50 quadros que nunca haviam sido mostrados ao público

Elaine Bittencourt

   SÃO PAULO - Aclamado desde os anos 60 por sua pintura abstrata, Arcangelo Ianelli, hoje com 82 anos, sempre teve um apreço especial pelo desenho. Gostava tanto de desenhar que, quando menino, pouco se dedicava aos estudos, absorvido pelo ''prazer de copiar'', segundo suas próprias palavras, ''tudo o que lhe aparecia pela frente''. Não causa espanto, pois, que o início de sua carreira tenha sido pelos caminhos da arte figurativa, nos idos dos anos 40. Ainda assim, não deixa de ser surpreendente o fato de que, enquanto tantos de seus colegas aderiam à arte abstrata, ele permanecesse absolutamente fiel a um gênero que muitos julgavam ultrapassado.

   Imperturbável diante dos modismos, Ianelli permaneceu figurativo por 18 anos, período que resultou numa produção extensa, mas poucas vezes é exibida ao público, que a conhece apenas por poucos quadros exibidos em retrospectivas. Ainda que não muito valorizada pela crítica, essa foi uma época fundamental para a formação do artista. Considerando este fato, a família de Ianelli decidiiu montar uma exposição que destacasse justamente esta fase, na qual o pintor, com a tranqüilidade que sempre o caracterizou, lançou as bases do trabalho que o consagraria no futuro como um grande abstrato.

   A mostra, chamada sugestivamente de Ianelli, os caminhos da figuração, está no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). O título, escolhido com cuidado por Katia e Rubens Ianelli, filhos do pintor e curadores da ex-posição, resume a proposta do projeto, ao sugerir que a observação do conjunto exibido permite perceber os sucessivos processos desenvolvidos pelo pintor durante esta fase. Eles acreditam que esta será a primeira vez que o público poderá observar passo a passo a longa caminhada de Ianelli.

   Nunca antes foi exibido um conjunto tão grande de telas produzidas antes que ele, definitivamente, optasse pela abstração. Ao todo, são 82 obras do acervo do artista, quase todas da coleção particular do pintor, com exceção de duas telas. Há, inclusive, cerca de 50 quadros que estão sendo mostrados pela primeira vez.

   O ineditismo das obras e sua importância na trajetória do artista tornam esta exposição um evento especial. As pinturas de Ianelli, mesmo as mais antigas, revelam sua aclamada elegância, o gosto apurado e o apreço pela técnica.

   Apesar da sólida formação, Arcangelo Ianelli não teve estudos formais de arte, como muitos colegas de sua geração. Houve um breve período de aprendizado no ateliê de Waldemar da Costa, mas o conhecimento veio, sobretudo, da prática e do contato com outros artistas. Sua trajetória, nestes primeiros anos, em muito se assemelha à carreira dos pintores do Grupo Santa Helena, imigrantes de origens proletárias, que se uniram nos anos 30 e 40 para dividir despesas e trocar experiências. Ianelli tinha contato com vários artistas do grupo, como Alfredo Volpi (1896-1988) e Mario Zanini (1907-1971).

   A exemplo do que faziam estes artistas, Ianelli costumava sair pela cidade e seus arredores para captar imagens urbanas ou de paisagens rurais. As duas primeiras salas da exposição mostram estes exercícios, em telas que retratam cemitérios, as ruas de São Paulo e também a cidade de São José dos Campos, lugar onde costumava passar as férias com a família.

   As obras desse período, por sinal, são registros históricos importantes de São Paulo, a partir da visão de um pintor que observava bairros proletários e seus casarios amontoados, figuras que, anos depois, transformadas em simples quadrados e retângulos, pontuam o início da abstração no seu trabalho.

   Como complemento à formação, ele freqüentava à noite um reduto de acadêmicos na Associação Paulista de Belas Artes e, com os colegas, dividia o aluguel de modelos. Ali, Ianelli produzia nus, retratos, paisagens e naturezas-mortas, fazendo o que ele define como um ''serviço militar em desenho''. Neste início de carreira, o artista plástico se submetia ainda ao enfoque acadêmico, mas, mesmo nesse período, o estilo pessoal começava a se manifestar, prenunciando o rompimento com as antigas regras da pintura.

(© JB Online)


Artista deu virada conceitual

   Um exemplo clássico e bastante conhecido é a tela Leitora, de 1944, em que uma figura feminina, vestida de vermelho e envolta pela penumbra, está alheia ao mundo, absorvida por um livro. A pintura reflete o apego inicial às lições acadêmicas, e as camadas de tintas são bastante densas. A despeito do academicismo, algumas das qualidades futuras começavam a ser delineadas naquele momento.

   Estas primeiras obras evidenciam o gosto do artista pelas cores sóbrias. Mas, ao contrário da densidade da cor de telas como Leitora, a maioria dos quadros da exposição mostra que as camadas tornam-se mais leves, às vezes parecendo aquareladas. Tons suaves, como o azul, são predominantes, e irão se repetir também ao longo de toda a produção do artista. Curiosamente, as cores vibrantes e fortes retornam à produção de Ianelli nos seus trabalhos mais recentes, em que a forma, subjacente, cede espaço para a intensidade da cor.

   A rebeldia contra o conservadorismo encontrou eco no Grupo Guanabara, do qual é um dos fundadores e que é composto sobretudo por artistas da colônia japonesa. O grupo existiu entre 1950 e 1959 e foi formado por nomes como Tomie Ohtake e Tikashi Fukushima, este último dono da molduraria onde todos se reuniam e que ficava localizada no largo cujo nome acabou por batizar o grupo. Com forte espírito de rejeição aos padrões da escola de belas artes, entre eles cada um tinha liberdade para se expressar da forma que melhor lhe conviesse. Não havia líderes, apenas uma constante e rica troca de experiências.

   Exemplos da produção deste período são as pinturas que retratam o interior de seu primeiro ateliê, na Rua Joaquim Távora, no bairro Vila Mariana. A exposição exibe quatro deles, obras que mostram seus filhos envolvidos no seu dia a dia de pintor, principalmente Katia - que, ao contrário do irmão, tinha paciência para ficar horas e horas posando para o pai.

   As telas do ateliê evidenciam o estudo que Ianelli fazia da luz, pois cada uma delas apresenta diferentes graus de luminosidade, desde o dia sombrio de O menino pintor (1952) à claridade de Katia e seus brinquedos (1955). Foi a partir dos muitos quadros que realizou tendo a filha Katia como modelo, que o artista começa a demonstrar com maior clareza o interesse pela abstração, seu destino final. A exposição destaca, não por acaso, a intensa produção de Ianelli neste gênero. Dos retratos de Katia, há cinco exemplos, um dos quais é o preferido do pintor, uma obra de 1956, em que as linhas são simplificadas ao máximo e os traços do rosto são quase transparentes, apenas velados.

   Os anos 60 são um marco na sua trajetória, mas isso não significa que, muito antes dessa data, o pintor não houvesse realizado telas que demonstrassem certo interesse pelas formas simples e geométricas. Há provas disso representadas na mostra em quadros como Cristo e no único trabalho de inspiração cubista de Ianelli, Descida da cruz.

   A exposição na Faap deixa para os últimos módulos as naturezas-mortas, pinturas dos anos 60, pelas quais Ianelli possui um especial apreço, certamente porque elas representam mais que tudo o que produzira antes, um rompimento definitivo com a longa fase figurativa. Nessa época, ele finalmente é aclamado pela crítica e vence, em 1964, o Prêmio de Viagem ao Exterior, do Salão Nacional de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, que o levaria a uma temporada de dois anos na Europa. Diante do movimentado cenário artístico, o artista ampliaria seus horizontes e sua arte e de novo seguiria por outros rumos. (E.B.)

(© JB Online)


Mostra traça o caminho da arte de Arcangelo Ianelli

Exposição na Faap reúne obras, em sua maioria inéditas, que mostram o caminho do artista de 82 anos em direção à pintura abstrata

Camila Molina

   São Paulo - Mais da metade das 82 obras da exposição Os Caminhos da Figuração de Arcangelo Ianelli, que será inaugurada hoje na Faap, nunca foram vistas pelo público. Isso porque quase todos os quadros realizados entre 1942 e 1960 pertencem à coleção pessoal do artista, representam algo muito precioso para ele e revela muito do processo de amadurecimento de um dos nossos mais importantes pintores. A mostra, com curadoria assinada por seus filhos, Katia e Rubens, resgata os 18 anos de figuração de forma cronológica. "Nunca um número tão significativo de obras figurativas de sua autoria foi exposto", diz Katia.

   Na grande sala estão desde as primeiras telas que Ianelli, hoje com 82 anos, realizou – suas primeiras experiências acadêmicas – até aquelas em que a geometria quase domina as figuras; obras em que o artista está a um passo da abstração pura, com a qual sua obra é muitas vezes identificada. "Pensamos numa exposição cronológica para mostrar como é coerente seu trabalho", analisa a filha do artista.

   As obras revelam muito da intimidade de Ianelli. No início de sua produção, Ianelli freqüentou ateliê de acadêmicos na Associação Paulista de Belas Artes. Suas primeiras obras foram feitas a partir da observação de modelos vivos, de composições montadas. Nas primeiras telas, as texturas são visíveis, as camadas de tinta são espessas. Essa fase não dura muito. Ianelli queria seguir seu próprio caminho. Com cavalete saía para pintar a campo. Casarios das ruas de São Paulo, lugares que nem existem mais como a Antiga Cervejaria Brahma estão nesse bloco. É na década de 50 que o artista integra o Grupo Guanabara, juntamente com Fukushima, Manabu Mabe e Tanaka, entre outros.

   Vê-se que a tinta vai ficando mais escassa ao longo do tempo, as camadas de tinta cada vez mais suaves. Há uma série de retratos, depois, juntam-se as marinhas, os bambuzais, as telas que representam mastros dos veleiros. "Muitos ele fazia no ateliê, de imaginação", conta Katia. Mas vários outros nasceram em viagens pela Represa de Guarapiranga, por Santos, onde Ianelli ficava nas vilas de pescadores, ou Itanhaém, onde ele ia com Mário Zanini. Por fim, a exposição termina com um conjunto de naturezas-mortas. É uma época de transição para a abstração, toma conta delas a total geometrização, "o sentido da esquematização, da síntese", como escreveu o crítico Paulo Mendes de Almeida.

Arcangelo Ianelli - Museu de Arte Brasileira da Faap. Rua Alagoas, 903, Pacaembu, 3662-7198. Das 10 às 21 horas (última entrada às 20 horas); sábados, domingos e feriados, das 13 às 18 horas (última entrada às 17 horas). Grátis. Até 19/9.

(© estadao.com.br)

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