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A literatura vista como resistência |
28/06/2009
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O escritor italiano Italo Calvino
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Textos de Assunto Encerrado formam autobiografia intelectual de Italo
Calvino
Ivo Barroso
Editados em livro na Itália em 1980 - cinco anos antes de sua morte -, estes
ensaios literários de Italo Calvino foram escritos e publicados em jornais e
revistas literárias entre 1955 e 1978. De temática muito variada, a seleção
obedeceu, segundo intenção do autor, ao desejo de formarem uma espécie de
autobiografia intelectual, em que digressões críticas e perfis de autores se
entremeiam com reflexões sobre a língua, o estilo e a arte de escrever.
Os apreciadores desse que foi seguramente um dos maiores escritores
italianos da atualidade, acostumados às suas incursões fantasistas, à sua
criatividade inesgotável e, principalmente, à sua astúcia de apresentar
temas que se desenvolvem ad infinitum, sem a estreiteza da limitação de
tempo e espaço, poderão estranhar de início o título Assunto Encerrado
(tradução de Roberta Barni), imaginando que o autor quisesse dizer que
expressou sobre esses temas as suas opiniões definitivas. O título é ainda
mais contundente no original, pois sugere que ele esteja botando uma pedra
sobre eles, decidido não mais a discuti-los. Algo como o famoso punto y
basta.
Mas quando o livro foi publicado na Itália, alguns críticos levantaram,
nesses estudos, questões que não pareciam isentas de discussão e que sobre
elas o autor ainda teria algo a dizer em apoio aos seus pontos de vista. Uma
das principais seria naturalmente a afirmativa de Calvino, numa entrevista,
de que considera Galileu o maior escritor da língua italiana. E quando Carlo
Cassola, o polêmico resenhista crítico do Corriere della Sera, se insurge
dizendo: "Eu pensava que fosse Dante", Calvino tangencia alegando que está
se referindo a um "escritor em prosa". A justificativa da escolha é uma das
mais brilhantes teses de defesa do indefensável, em que Calvino demonstra,
mais uma vez, sua formação científica e sua capacidade de transformar
ciência em literatura. "Galileu usa a linguagem não como um instrumento
neutro, mas com uma consciência literária, com uma ininterrupta participação
expressiva, imaginativa, e até lírica", argumenta Calvino. "Gosto de buscar
as passagens em que ele fala da Lua: é a primeira vez que ela se torna para
os homens um objeto real, descrita minuciosamente como uma coisa tangível."
O leitor se lembrará imediatamente de As Cosmicômicas, com seu personagem de
nome palindrômico e impronunciável, Qfwfq, que atravessou todas as eras
geológicas desde o momento inicial do big bang e se lembra de quando a
órbita da Lua passava tão rente à Terra que era possível ir até lá para
colher seu leite, como num piquenique. Esse livro, uma espécie de
science-fiction ao revés ou ainda uma projeção fantasiosa do passado, atesta
o interesse de Calvino pelas teorias evolutivas e sua consciência
cosmológica, a qual se manifesta até mesmo de maneira humorística quando
Qfwfq se apaixona por Ursula, e ambos se deslocam num mesmo plano infinito,
em duas paralelas que jamais se encontrarão. Talvez Calvino quisesse, com
esta escolha de Galileu como o maior escritor italiano, manifestar sua
preferência por um tipo de literatura menos voltada para o psicologismo e
mais consciente de uma participação cientificista.
O que torna este livro um acúmen na obra já em si toda crítica e analítica
de Calvino é que a escolha dos artigos coincide com épocas ou etapas bem
definidas sobre as quais ele, ao fazer um balanço de cada período, vai
apontando a evolução e as oscilações de sua própria investigação teórica, as
mudanças de rumo de suas conceituações, sensíveis ao impacto de sua sempre
crescente investigação cultural em função dos acontecimentos. Calvino não é
um literato contemplativo, embora a leitura tenha sido, segundo ele, uma de
suas razões de existir, ele é antes de tudo um homem profundamente
identificado com sua época, com um passado de ativista político e de atuação
partigiana; foi filiado ao PCI e escreveu inúmeros artigos de militância
política, só mudando de rumo depois da invasão de Praga pelos russos,
atitude seguida por vários de seus amigos escritores. Para ele, a literatura
sempre foi uma forma de resistência: "Acreditamos", diz em O Miolo do Leão -
seguramente um dos artigos mais esclarecedores sobre seus conceitos
literários neste livro - "que o engajamento político, o tomar partido, o
comprometer-se, seja, muito mais que um dever, uma necessidade natural do
escritor de hoje, e antes ainda do escritor, do homem moderno."
Mas vê com ceticismo a possibilidade de uma atuação literária se sobrepor ou
substituir a realidade: "Os fatos reais sempre são maiores, mais verdadeiros
e instrutivos que os narrados; e os militantes representados nos livros
continuam muito inferiores em evidência humana e em novidade histórica, se
comparados àqueles que, aos poucos e a muito custo, se formam na realidade.
(...) Um protagonista lírico-intelectual em contato com o proletariado
pareceu o caminho mais natural para testemunhar a Resistência, mas não
conseguiu representar com acentos de verdade nem o tormento interior dos
protagonistas nem aquele épico e coletivo do povo."
Grande espaço é concedido à discussão de conceitos literários, à atitude do
autor em face do público e de seu compromisso social, à análise de obras
fundamentais ou que tenham contribuído para o estabelecimento de uma
"verdade literária", como em Usos Políticos Certos e Errados da Literatura -
transcrição de uma conferência que Calvino pronunciou em inglês em 1976. A
morte de dois de seus mais caros amigos, Cesare Pavese e Elio Vittorini,
enseja comentários sobre o processo criativo e a personalidade literária de
ambos. E há ainda toques humorísticos, tal o retrato esquemático do ator
Groucho Marx, que Calvino associa, em sua saudade, a outro "grande cínico",
o escritor Vladimir Nabokov.
Ivo Barroso, poeta, ensaísta e tradutor, é autor, entre outros, de A Caça
Virtuale Outros Poemas
(©
Estadão)
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