Famoso por restaurar a Pietà, de Michelangelo, Deoclecio Redig de Campos
morreu há 20 anos Daniel Piza
Ele morava na famosa Praça da Espanha, em Roma, vizinho ao amigo e pintor
Giorgio De Chirico. Trabalhava à mesa que tinha sido do escultor Antonio Canova,
no Museu do Vaticano. Desenhava e pintava nas horas de folga, depois de
abandonar o sonho juvenil de ser artista. Escrevia livros e artigos sobre o
Renascimento. Coordenava empreitadas como as restaurações de duas das maiores
obras de arte da história, a Pietà de Michelangelo e A Escola de Atenas de
Rafael. E era brasileiro. Seu nome: Deoclecio Redig de Campos (1905-1989).
O curador brasileiro que ocupou o cargo mais alto já ocupado por um compatriota
da mesma carreira não foi lembrado em seu centenário de nascimento, há quatro
anos. Tampouco foi lembrado agora, 20 anos depois de sua morte, no dia 6 de
abril. Mas o trabalho que fez pela arte italiana, assim como o livro
Considerações sobre a Gênese da Renascença na Pintura Italiana (único lançado no
Brasil, pelo MEC em 1958), é parte irremovível da história. E ele, Deoclecio,
está muito vivo na memória de seus familiares, como a filha, Daniela, que mora
em Roma, e os sobrinhos, Joaquim e Maria Clara, no Rio de Janeiro, que
conversaram por telefone com o Estado.
Com a figura semelhante à do líder egípcio Nasser, com nariz adunco, bigode e
pele morena, Deoclecio era um homem elegante, sempre de terno e com um cachimbo
à mão ou à boca. Nascido em Belém (PA), morou no Brasil apenas até os 5 anos.
Seu pai, também Deoclecio, era diplomata e foi enviado para Alemanha, Suíça e
Itália sucessivamente. Foi em Roma que o filho se formou em Filosofia e História
da Arte, sob orientação do respeitado Adolfo Venturi, e, apaixonado pela obra de
Michelangelo, decidiu ficar para sempre.
Um curso de restauração, em 1933, colocou Deoclecio dentro do Vaticano, onde
faria carreira até se aposentar em 1978. Ali foi conservador-chefe e depois
diretor. "Professore De Campo", assim o chamavam os funcionários; Deoclecio não
gostava, porque jamais deu aula. No mesmo ano em que entrou para o laboratório
do museu, ele se casou com a abonada italiana Virginia Kambo, com quem teria
Daniela e Manuel. "Meu pai era um homem gentilíssimo", diz a filha. "Ele sempre
nos apoiava e estimulava, como se fosse um amigo."
Joaquim e Maria Clara o descrevem como um homem ao mesmo tempo muito culto e
muito simples, um poliglota e esteta afável e conversador, que não tinha traço
professoral algum. Era também um tio atencioso, que perguntava sempre sobre a
vida e os trabalhos dos parentes. Vinha pouco ao Brasil, mas era sempre visitado
pelos sobrinhos na Itália. "Ele não falava mal de ninguém", diz Maria Clara,
arquiteta, filha de outro arquiteto, Olavo Redig de Campos (1906-1984), com obra
importante no modernismo brasileiro.
"A gente andava com ele por Roma e ele nos mostrava obras nas praças com a maior
simplicidade. Também estive com ele em Florença, Veneza e Assis. Foi
maravilhoso", relembra Maria Clara. Joaquim, designer, diz que testemunhou
"vivamente" tais qualidades do "tio Deoclecinho" durante uma visita em 1969, aos
23 anos, ouvindo as explicações "claras, visíveis, didáticas e reveladoras"
durante algumas horas, "entrando e saindo de salas e salões, passando por
infindáveis portas, algumas fechadas, às vezes até subindo em andaimes para ver
os trabalhos de restauração".
Rigoroso, Deoclecio chegava a refazer dezenas de vezes a mesma peça de restauro,
até atingir o que desejava. Único dos quatro irmãos a não voltar ao Brasil, foi
também adido cultural no Vaticano por mais de 30 anos. Sua vida teve outros
momentos marcantes como os dois anos durante a 2ª Guerra Mundial em que precisou
se refugiar em aposentos do museu, pois o Brasil tinha passado para o lado dos
aliados contra a Itália de Mussolini.
Outro momento foi o de 1972, quando um húngaro martelou o nariz da Pietà, a qual
seria restaurada pela equipe de Deoclecio. À imprensa, declarou que era como ver
"um parente gravemente ferido, e um parente muito amado". À família, contou que
teve uma conversa com o agressor, Laszlo Toth, mas que ele só dizia em inglês
"Eu sou Jesus Cristo". Por causa da restauração, Deoclecio ganhou uma eminência
que não tinha tido até então, inclusive no Brasil, aonde veio dar conferência
sobre o trabalho em 1973, no Masp.
Recebeu inúmeras homenagens da Itália, onde viveu 71 dos seus 84 anos, e algumas
do Brasil, onde chegou a ser consultado para uma reforma dos profetas de
Aleijadinho. Nos últimos anos de vida, sofreu do Mal de Parkinson. Numa carta
para o Itamaraty em 1975, dissera estar feliz em ser considerado "um estudioso
brasileiro" e acrescentou em latim, "ubique Patriae memor" - em qualquer lugar,
a memória da pátria. Que ainda lhe deve uma memória.
(©
Estadão)
|