Crise tira US$ 1,4 milhões da mostra italiana, mas organizadores minimizam
efeitos
Semanas antes de o mundo da arte se concentrar nessa cidade de canais
deslumbrantes havia uma especulação considerável sobre que efeitos a crise
econômica teria na 53ª Bienal de Artes, aberta ao público no domingo. O
Giardino, que sediou a bienal por mais de um século, junto com Arsenale, antigo
estaleiro onde as frotas venezianas foram construídas, estavam notavelmente
menos lotados durante a prévia de quatro dias para colecionadores, diretores de
museus, curadores e executivos de leilões que vieram para ver e serem vistos.
Também houve menos festas impressionantes, menos desfiles de celebridades nos
pavilhões nacionais e uma ausência de instalações diferentes.
Os organizadores tentaram subestimar qualquer pressão financeira este ano,
mas admitiram que tinham US$ 1,4 milhões a menos em seu orçamento disponível do
que dois anos atrás. Para lidar com a redução, aumentaram o preço da entrada de
US$ 21,25 para US$ 25,50. Mesmo assim, todos queriam ser incluídos.
–Nenhum artista disse não – insistiu Daniel Birnbaum, diretor artístico deste
ano. – Todos os projetos foram executados.
Ainda assim, muitos artistas tinham de pagar por seus próprios projetos.
– É como ser convidado para uma festa e ter que levar a comida e a bebida –
resmungou um artista, sem se identificar.
Eccles, diretor do Bard Center for Curatorial Studies em Annandale-on-Hudson,
de Nova York, tenta olhar o outro lado da crise.
– Não há gigantismo, nem ostentações – aponta Eccles. – Mas há um lado bom.
Ao lidar com a crise, todos tinham de refletir mais e fazer escolhas.
Consequentemente, você precisa ter um pouco mais de cuidado.
Entre as exposições mais comentadas estava uma pesquisa de quatro décadas de
obras de Bruce Nauman no pavilhão americano, que ganhou o prêmio deste ano de
melhor pavilhão nacional.
O tema da exposição principal – Criando mundos – foi escolhido por Birnbaum
para refletir a globalização. A exposição inclui propositalmente muitos artistas
que não são tão conhecidos.
– Não é um relatório anual – observa Birnbaum. – Eu queria alargar o
horizonte do que é visto como canônico.
Uma das primeiras coisas que os visitantes veem no prédio principal é uma
sala toda branca com teias de aranha, do chão até o teto, feitas de cordas
elásticas negras. A obra do artista argentino Tomas Saraceno, que se inspirou no
arquiteto Buckminster Fuller, é tão arquitetônica quanto filosófica. A aranha,
cuja forma pode ser destruída facilmente, é a metáfora dele pela fragilidade do
mundo a nossa volta.
– É essa ideia da origem do nosso universo – teoriza Saraceno sobre a
instalação que propõe a interação com o público. – Tomara que as pessoas fiquem
enroladas nas cordas.
O número de países representados ainda está crescendo. Em 2005, a China fez
parte do evento pela primeira vez, seguida pelo pavilhão africano em 2007 e este
ano pelos Emirados Árabes, representados com uma exposição de artistas locais.
Enquanto os russos pareciam ter fugido do mercado de arte neste período, vários
oligarcas da ex-União Soviética estavam em Veneza esta semana, seus iates
gigantes ancoraram aqui. Entre aqueles vistos nas festas ou perambulando pelos
pavilhões estavam os russos Roman Abramovich e Oleg Baibakov, e o bilionário
ucraniano Victor Pinchuk, cuja fundação ajudou a financiar o pavilhão ucraniano.
Depois de um pouco de dificuldades, o Museu de Artes da Filadélfia foi capaz
de cobrir o custo de organizar a ambiciosa exposição de Nauman. A mostra,
organizada pelos curadores da Filadélfia Carlos Basualdo e Michael R. Taylor e
chamada Bruce Nauman: Topological gardens inclui escultura como mãos e cabeças
no pavilhão americano. As instalações e esculturas de néon estão em dois locais
na cidade: um na Università Iuav di Venezia em Tolentini e dois andares de um
palácio gótico do século 15 que abriga a Università Ca’Foscari.
Renata Lucas abre estrada em Veneza
Marcos
Augusto Gonçalves/Folha Imagem
Renata Lucas posa ao lado de sua obra: uma estrada feita abaixo do piso da
Bienal
Artista brasileira fez trechos de asfalto na Bienal depois de ter projetos
vetados
Mostra não autorizou fazer piscina em canal da cidade, mas pôs ideia em livro;
Renata optou então por pavimentar caminhos na área dos Giardini
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
ENVIADO ESPECIAL A VENEZA
O catálogo da 53ª Bienal de Veneza, aberta anteontem para o público, traz
imagens surpreendentes de obras de Renata Lucas, 38, brasileira que vem ganhando
cada vez mais reconhecimento no circuito internacional da arte contemporânea.
Numa das imagens, vê-se uma convidativa piscina construída dentro de um dos
canais da cidade. Em outra, duas comportas interrompem o fluxo de água, deixando
aparecer no fundo da laguna um insólito pedaço de estrada asfaltada.
Mas nenhuma dessas intervenções tornou-se realidade. Como outras propostas
apresentadas pela artista à Bienal, não puderam ser construídas. Não por que
fossem consideradas ruins pelos curadores da exposição, mas por parecerem caras
e de difícil realização.
Intervenções na arquitetura e no espaço público são marca registrada de Renata,
que na 27ª Bienal de São Paulo duplicou uma calçada numa rua da cidade, com
postes e arbustos.
Em Veneza, algumas de suas ideias não chegaram sequer às mesas das autoridades
que poderiam aprová-las: diante das restrições que cercam as construções da
cidade histórica, a própria direção da mostra tratou-as como inexequíveis.
"Trabalhei muito, mas nada podia ser levado adiante. Até coisas mais simples,
que pouco mexiam com o espaço público, foram recusadas", conta ela, que contesta
a idéia de que suas propostas são difíceis e podem alterar de maneira definitiva
os locais onde são realizadas. "Todos os meus projetos são reversíveis", diz a
artista.
Ainda que seja assim, o fato é que quando a Bienal foi fechar o catálogo da
exposição (em Veneza, diferentemente de São Paulo, ele pode ser adquirido na
abertura do evento), Renata ainda não tinha um trabalho definido. "Sugeri então
que publicassem no catálogo as imagens de todos os projetos que eu havia
proposto, e dei o nome à série de "Venice Suitcase" (mala de Veneza)."
Depois de uma negociação que classifica como "exaustivo", ela conseguiu, enfim,
sinal verde para uma obra de execução menos complexa do que uma piscina, mas de
resultado não menos interessante.
Estrada
Nos dois principais espaços da Bienal, os Giardini (jardins) e o Arsenale, a
artista instalou pedaços de uma estrada de asfalto sob o solo -ainda que a pouca
profundidade. No início, a autorização para a camada de asfalto no piso dos
Giardini (originalmente de terra e pedrisco) era para apenas 20 m2, mas a Bienal
conseguiu que chegasse a 90 m2. No Arsenale, são menores, com menos de 10 m2, e
ficam dentro do pavilhão.
"Grandes mostras como a Bienal de Veneza são quase sempre um quebra-cabeça, uma
negociação entre o desejo do artista e a realidade. Mas essas dificuldades
também têm um lado interessante. Tudo isso me fez lembrar um filme do Lars Von
Trier chamado "Five Obstructions", que tem como tema uma série de restrições ao
trabalho de um cineasta. Foi cansativo, mas no final fiquei satisfeita com o
resultado", diz Renata.
As instalações dão o que pensar. Uma das ideias que suscitam -da qual a artista
particularmente gosta- é a de se poder encontrar sob a superfície da velha
cidade não uma camada do passado, mas alguma coisa do futuro, uma estrada de
asfalto. "É como escrever a história ao contrário", diz.
Renata recebeu o convite para participar da Bienal em julho de 2008, quando
estava em Barcelona. Logo a seguir fez uma primeira visita à cidade, retornou em
novembro e, em janeiro, alugou um quarto para ficar. "Eu sou demorada, custo a
fazer, preciso de tempo para pensar", explica. Durante os meses em que se
defrontou com Veneza, descobriu um lugar labiríntico, histórico e, ao mesmo
tempo, artificial.
"As camadas que não podem ser mexidas nem sempre são tão históricas assim. Há
coisas que foram feitas há pouco tempo, mas são tratadas como se fossem muito
antigas. Embora tenha um lado muito legal, Veneza é uma cidade-souvenir, um
parque de diversões, e a Bienal, de certa forma, reflete tudo isso", diz.
Fechada a mala de Veneza, Renata vai passar um período em Berlim. Ela ganhou o
prêmio Ernest Young, que lhe oferece estadia na cidade e uma exposição na
Kunstwerk. Um outro prêmio, da Dena Foundation, vai resultar num livro, que deve
ser publicado em novembro.
(©
Folha de S. Paulo)
Brasileiro Cildo Meireles leva instalação "penetrável"
DO ENVIADO A VENEZA
A instalação que o artista brasileiro Cildo Meireles mostra na Bienal de
Veneza é uma espécie de "penetrável", conceito desenvolvido pelo também carioca
Hélio Oiticica (1937-1980) para seus ambientes -obras nas quais o espectador é
convidado a entrar.
No caso, trata-se de uma sequência em linha reta de seis salas interligadas,
pintadas com cores impactantes, que o visitante pode atravessar numa direção ou
noutra.
Em cada uma das salas, o artista, que não esteve presente na abertura do evento,
afixou uma tela de TV reproduzindo uma a uma as cores escolhidas: vermelho,
laranja, amarelo, verde, azul e violeta.
A instalação não faz parte do pavilhão brasileiro -é uma escolha da curadoria
geral da Bienal, assim como os trabalhos de Lygia Pape (1927-2004), Renata Lucas
e Sara Ramo, todos exibidos no Arsenale, um grande pavilhão que foi em outros
tempos um arsenal militar.
Ramo, artista brasileira de origem espanhola, tem duas obras no local. No
interior do pavilhão, ela exibe um vídeo (que foi mostrado na galeria Fortes
Vilaça, em São Paulo, no ano passado) intitulado "Quase Cheio, Quase Vazio".
Do lado de fora do prédio, criou uma casa-instalação inspirada na célebre
história infantil de João e Maria.
A artista, que vive e trabalha em Belo Horizonte, considera que esse é o "mais
narrativo" de seus trabalhos. "A ideia", diz Ramo, "é que as pessoas entrem
fisicamente na historia deles". (MAG)
(©
Folha de S. Paulo)
Crítica/Bienal de Veneza
Seleção de artistas evoca potência e fragilidade
Mostra principal tem conjunto de obras coeso, mas falha ao evitar
controvérsias
FABIO CYPRIANO
ENVIADO ESPECIAL A VENEZA
"T téia 1", de Lygia Pape, a obra que abre a mostra "Fazer Mundos", de Daniel
Birnbaum, na 53ª Bienal de Veneza, resume bem tudo o que se vai ver daí em
diante: uma seleção elegante, construída de forma frágil e ao mesmo tempo
potente.
A elegância da obra de Pape, com fios dourados que constroem pilares quadrados,
está também no vídeo da italiana Grazia Toderi, "Orbite Rosse" (órbitas
vermelhas), uma imagem ovalada com milhares de estrelas, que parece um mapa de
uma galáxia, mas que, vista de perto, são bombardeios de guerra, um dos
trabalhos mais fortes da mostra.
O argentino Tomas Saraceno, em operação semelhante, constrói uma das mais
surpreendentes instalações da Bienal, com fios que se transformam em globos, e
dificultam o caminhar dos visitantes.
"Fazer Mundos" -a mostra tem 47 línguas no título, para tratar a arte como forma
de tradução- se vale também da fragilidade, como os fios de Pape, o que faz com
que a ideia de desenho seja recorrente, como nas obras de Marjetica Potrc,
Öyvind Fahlström ou Richard Wentworth, entre outros.
A fragilidade/potência está também nas formas de expor, como nas fotos de vários
formatos, algumas coladas na parede com fita adesiva, na sala de Wolfgang
Tillmans, na invisibilidade da obra de Renata Lucas, ao asfaltar partes do chão
da exposição, por onde muitos caminharam sem perceber.
Mas a qualidade na seleção dos 77 artistas de Birnbaum, com o assistente Jochen
Volz, também se revela problemática: a delicadeza das obras evita controvérsias,
como se o fazer mundos na arte ocorresse num sentido paralelo ao seu contexto.
"Fazer Mundos" diagnostica bem a fragilidade que o mundo enfrenta, mas fica aí.
Brasil exótico
Já as representações nacionais seguem com disparidades gritantes. Por um lado,
pavilhões como o dos Estados Unidos, que merecidamente ganhou o Leão de Ouro com
Bruce Nauman, gastam milhões de dólares numa demonstração de poder -dessa vez,
os EUA além de seu próprio espaço ocuparam outros dois na cidade.
Por outro lado, alguns pavilhões se rendem a estereótipos, como aconteceu desta
vez com o Brasil, visto de forma exótica, por meio da produção de Delson Uchôa e
Luiz Braga, seleção a cargo de Ivo Mesquita.
Esse "Brasil profundo", por conta da temática regionalista e um tanto
folclórica, que parece propaganda governamental, tornou-se ainda mais arcaico
perto de escolhas radicais, como Teresa Margolles, no México, que abordou a
violência de execuções ligadas ao narcotráfico; Elmgreen & Dragset, artistas que
curaram o pavilhão nórdico e dinamarquês, recebendo menção honrosa do júri, com
uma abordagem sarcástica sobre colecionismo; ou Shaun Gladwell, na Austrália,
levando a cultura pop a um rigor formal impressionante.
Mesmo assim, a diversidade continua exercendo uma forma de oxigenação em Veneza.
E, felizmente, Renata Lucas, Sara Ramo, Cildo Meireles e Lygia Pape, apresentam
um Brasil muito mais complexo que o do pavilhão nacional.
Avaliação: bom
(©
Folha de S. Paulo)
PARALELA TEM ANTIGOS E MODERNOS
Em 2007, a mostra paralela mais falada da Bienal foi "Artempo: Quando o Tempo se
Transforma em Arte", no Palazzo Fortuny, organizada por Axel Vervoordt. Ele
volta a ocupar o mesmo espaço agora com uma exposição tão surpreendente quanto,
"In-finitum", que segue a mesma linha da anterior: ocupa o palácio gótico,
misturando os objetos de seus primeiros proprietários, criadores de tecido e
cenógrafos, com arte contemporânea, muitas vezes confundindo o visitante.
Bill
Viola, Anish Kapoor, James Turrel e mesmo o brasileiro Vik Muniz estão ao lado
de modernos como Pablo Picasso, Mark Rothko e Paul Cézanne. Um novo pavimento da
casa foi incorporado à mostra, com concepção do arquiteto Tatsuro Miki, que
criou o "Santuário do Silêncio", coberto com lama de lagoas venezianas.
(©
Folha de S. Paulo)
Museu de bilionário francês une arte e demonstração de poder
Alberto Pizzoli/France Presse
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Obras de Jeff Koon e Cindy Sherman no museu Punta della
Dogana, de François Pinault, que acaba de ser inaugurado em Veneza
DO ENVIADO A VENEZA
A arte contemporânea, cada vez mais, vem se tornando uma das formas de
exposição de poder e influência. Não por acaso, circulam pela Bienal de Veneza
bilionários como o norte-americano Paul Allen (32º mais rico do mundo segundo a
"Forbes") e o russo Roman Abramovich (51º). Mas quem ocupou o centro das
atenções foi o francês François Pinault (60º), com a inauguração de seu novo
espaço expositivo, na Punta della Dogana, projeto do arquiteto japonês Tadao
Ando.
Há dois anos, Pinault já havia inaugurado uma sede de sua fundação em Veneza, no
Palazzo Grassi, após romper com o governo francês. Sua intenção original era
criar um museu, projetado por Ando, em Paris, mas por conta dos altos impostos
cobrados pela França, o dono da Christie's foi a Veneza.
O novo local, um antigo armazém das docas, construído em 1631, com 5.000 m2, foi
totalmente remodelado por Ando, a um custo de 20 milhões (cerca de R$ 60
milhões) e inaugurado em quatro dias diferentes, na última semana, para os VIPs
de Veneza, com a mostra "Mapping the Studio".
Com obras da coleção de Pinault, a exposição, que ocorre também no Palazzo
Grassi, reúne praticamente todos os nomes com maior sucesso comercial na cena
contemporânea, como os japoneses Takashi Murakami e Hiroshi Sugimoto, o italiano
Maurizio Cattelan, os norte-americanos Jeff Koons, Richard Prince e Cindy
Sherman. Em arte contemporânea, difícil encontrar maior demonstração de poder.
(FC)
(©
Folha de S. Paulo)