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Michelangelo visto como cabalista

02/06/2009

Foto: Divulgação

 

Estudiosos norte-americanos investigam o simbolismo e as influências das pinturas da Capela Sistina

Luis S. Krausz

Os Segredos da Capela Sistina é um livro que se propõe a lançar uma nova luz sobre uma série de mensagens cifradas, de caráter religioso, mas também político, presentes na decoração da capela construída pelo papa Sisto IV (1414-1484), cujas obras começaram em 1475, e que se destinava a servir como metáfora do poderio da Igreja Católica e do esplendor do papado. Destacam-se, aí, os célebres afrescos que Michelangelo pintou, entre 1508 e 1512, para decorar os mais de 1 mil metros quadrados do teto da capela. Escrito por dois estudiosos norte-americanos - Benjamin Blech e Roy Doliner - o livro, que ostensivamente se dirige ao grande público, tem um estilo que se poderia denominar "jornalístico".

Os autores passam em revista a história italiana dos séculos 15 e 16 e apresentam uma bem detalhada investigação sobre a trajetória de Michelangelo, e em particular sobre os seus anos de formação na Florença dos Medici. E enfatizam as rivalidades entre Roma e Florença - esta, a sede do poder eclesiástico, ciosa da assim chamada pureza da fé e mandante da Inquisição; aquela, o berço do humanismo europeu, em que o livre pensamento, a tolerância religiosa, a admiração pelos valores da Antiguidade Clássica e o florescimento artístico caminhavam de mãos dadas. O zênite dessa rivalidade foi alcançado em 1478, quando Sisto IV, desejando tomar o controle de Florença, a capital da heresia, que questionava sua autoridade, organizou um complô para assassinar Lorenzo de Medici e todo seu clã. Malogrado, o assassinato acaba vitimando só o irmão de Lorenzo; ele consegue escapar, ferido, por um corredor secreto. O atentado provocou uma rebelião popular em Florença, e a execução dos conspiradores.

Como um sinal de reconciliação e de armistício, em 1480, Lorenzo enviaria seus melhores artistas para decorar a Capela Sistina - monumento religioso construído exatamente nas mesmas dimensões do santuário interno do Templo de Salomão, descrito no segundo livro bíblico de Reis, para demonstrar que a religião católica substituía o judaísmo, obsoleto, e que Roma substituía Jerusalém. Artistas florentinos como Botticelli, Perugino, Ghirlandaio, Rosselli e outros se incumbiram da decoração das paredes e dos assoalhos da Sisitina, mas esse presente, conforme mostram os autores, foi um cavalo de Troia: Botticelli, por exemplo, conseguiu introduzir, nos painéis que retratam a fuga de Moisés do Egito, uma série de alusões ao triunfo de Florença sobre Roma, assim como insultos cifrados ao papa, à sua família e à própria Igreja. Já o piso da Capela Sistina, em mosaico, ostenta uma série de símbolos da Cabala, como as esferas da Árvore da Vida, os caminhos da alma, e elementos da doutrina de Fílon de Alexandria, filosofo e místico judeu neoplatônico, que viveu em Alexandria no século 1º, e cujas ideias eram cultuadas pelos humanistas florentinos. Aí estão presentes as estrelas de David, que se tornaram, com o passar dos séculos, emblema do judaísmo.

Uma geração depois, Michelangelo, filho de uma família humilde que fora criado no palácio dos Medici, e recebera a mesma educação humanística dos príncipes, foi encarregado pelo sobrinho e sucessor de Sisto IV, o papa Júlio II, de decorar o teto da capela, trabalho que realizou entre 1508 e 1512. Chama a atenção o fato de que, nos afrescos de Michelangelo, não exista uma única imagem cristã: as figuras representadas pertencem à tradição da Bíblia Hebraica, em 95% dos casos, e ao imaginário pagão greco-latino, nos restantes 5%. Essa circunstância atesta a fidelidade de Michelangelo aos princípios dos Medici que, segundo os autores, incluíram em sua formação doutrinas cabalísticas e metafísicas, amalgamadas por Marsílio Ficino, tradutor e comentador da filosofia platônica. Michelangelo seria, ainda, conhecedor do Midrash, aquele corpo de lendas judaicas criadas em torno das narrativas bíblicas, e que complementam e preenchem as lacunas narrativas da Bíblia Hebraica. A comprovar o conhecimento das doutrinas judaicas está, por exemplo, a representação do Éden de Michelangelo, em que a árvore do conhecimento é uma figueira - suposição expressa no Midrash e não na Vulgata -, bem como uma longa série de alusões às doutrinas da Cabala, cultuadas pela comunidade judaica florentina. Segundo os autores, até mesmo as figuras bíblicas representadas no grande afresco de Michelangelo seriam inspiradas nos judeus que o artista viu e conheceu.

Mas não faltam ao livro, além do caráter sensacionalista, uma série de imprecisões. Na página 88, por exemplo, lê-se que "no século IV a.C., a palavra malum aparece na tradução da Vulgata latina...", quando a Vulgata data de 800 anos mais tarde. Há, também, conclusões apressadas: por exemplo, se Ficino era conhecedor do Midrash, e Michelangelo era conhecedor de Ficino, isso não necessariamente significa que Michelangelo era conhecedor do Midrash. Não faltam aquelas comparações insustentáveis que tomam os Estados Unidos como paradigma para todas as realidades: os autores comparam Lorenzo de Medici a Edward Kennedy e Savonarola ao Aiatolá Khomeini. Aproximar o conteúdo do livro da realidade de seus supostos leitores, com o objetivo torná-lo um best seller, acaba comprometendo uma obra de pesquisa que parece séria, mas é expressa de maneira frequentemente inadequada. Um tratamento mais rigoroso do tema poderia beneficiar o trabalho. Mas lógica do mercado e erudição, como se sabe, nem sempre caminham de mãos dadas.

Luis S. Krausz, doutor em Literatura e Cultura Judaica pela USP, é autor de ituais Crepusculares: Joseph Roth e a Nostalgia Austro-Judaica (Edusp)  

(© Estadão)

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