Estudiosos norte-americanos investigam o
simbolismo e as influências das pinturas da
Capela Sistina
Luis S. Krausz
Os Segredos da Capela Sistina é um livro que se
propõe a lançar uma nova luz sobre uma série de
mensagens cifradas, de caráter religioso, mas
também político, presentes na decoração da
capela construída pelo papa Sisto IV
(1414-1484), cujas obras começaram em 1475, e
que se destinava a servir como metáfora do
poderio da Igreja Católica e do esplendor do
papado. Destacam-se, aí, os célebres afrescos
que Michelangelo pintou, entre 1508 e 1512, para
decorar os mais de 1 mil metros quadrados do
teto da capela. Escrito por dois estudiosos
norte-americanos - Benjamin Blech e Roy Doliner
- o livro, que ostensivamente se dirige ao
grande público, tem um estilo que se poderia
denominar "jornalístico".
Os autores passam em
revista a história italiana dos séculos 15 e 16
e apresentam uma bem detalhada investigação
sobre a trajetória de Michelangelo, e em
particular sobre os seus anos de formação na
Florença dos Medici. E enfatizam as rivalidades
entre Roma e Florença - esta, a sede do poder
eclesiástico, ciosa da assim chamada pureza da
fé e mandante da Inquisição; aquela, o berço do
humanismo europeu, em que o livre pensamento, a
tolerância religiosa, a admiração pelos valores
da Antiguidade Clássica e o florescimento
artístico caminhavam de mãos dadas. O zênite
dessa rivalidade foi alcançado em 1478, quando
Sisto IV, desejando tomar o controle de
Florença, a capital da heresia, que questionava
sua autoridade, organizou um complô para
assassinar Lorenzo de Medici e todo seu clã.
Malogrado, o assassinato acaba vitimando só o
irmão de Lorenzo; ele consegue escapar, ferido,
por um corredor secreto. O atentado provocou uma
rebelião popular em Florença, e a execução dos
conspiradores.
Como um sinal de reconciliação e de armistício,
em 1480, Lorenzo enviaria seus melhores artistas
para decorar a Capela Sistina - monumento
religioso construído exatamente nas mesmas
dimensões do santuário interno do Templo de
Salomão, descrito no segundo livro bíblico de
Reis, para demonstrar que a religião católica
substituía o judaísmo, obsoleto, e que Roma
substituía Jerusalém. Artistas florentinos como
Botticelli, Perugino, Ghirlandaio, Rosselli e
outros se incumbiram da decoração das paredes e
dos assoalhos da Sisitina, mas esse presente,
conforme mostram os autores, foi um cavalo de
Troia: Botticelli, por exemplo, conseguiu
introduzir, nos painéis que retratam a fuga de
Moisés do Egito, uma série de alusões ao triunfo
de Florença sobre Roma, assim como insultos
cifrados ao papa, à sua família e à própria
Igreja. Já o piso da Capela Sistina, em mosaico,
ostenta uma série de símbolos da Cabala, como as
esferas da Árvore da Vida, os caminhos da alma,
e elementos da doutrina de Fílon de Alexandria,
filosofo e místico judeu neoplatônico, que viveu
em Alexandria no século 1º, e cujas ideias eram
cultuadas pelos humanistas florentinos. Aí estão
presentes as estrelas de David, que se tornaram,
com o passar dos séculos, emblema do judaísmo.
Uma geração depois, Michelangelo, filho de uma
família humilde que fora criado no palácio dos
Medici, e recebera a mesma educação humanística
dos príncipes, foi encarregado pelo sobrinho e
sucessor de Sisto IV, o papa Júlio II, de
decorar o teto da capela, trabalho que realizou
entre 1508 e 1512. Chama a atenção o fato de
que, nos afrescos de Michelangelo, não exista
uma única imagem cristã: as figuras
representadas pertencem à tradição da Bíblia
Hebraica, em 95% dos casos, e ao imaginário
pagão greco-latino, nos restantes 5%. Essa
circunstância atesta a fidelidade de
Michelangelo aos princípios dos Medici que,
segundo os autores, incluíram em sua formação
doutrinas cabalísticas e metafísicas,
amalgamadas por Marsílio Ficino, tradutor e
comentador da filosofia platônica. Michelangelo
seria, ainda, conhecedor do Midrash, aquele
corpo de lendas judaicas criadas em torno das
narrativas bíblicas, e que complementam e
preenchem as lacunas narrativas da Bíblia
Hebraica. A comprovar o conhecimento das
doutrinas judaicas está, por exemplo, a
representação do Éden de Michelangelo, em que a
árvore do conhecimento é uma figueira -
suposição expressa no Midrash e não na Vulgata
-, bem como uma longa série de alusões às
doutrinas da Cabala, cultuadas pela comunidade
judaica florentina. Segundo os autores, até
mesmo as figuras bíblicas representadas no
grande afresco de Michelangelo seriam inspiradas
nos judeus que o artista viu e conheceu.
Mas não faltam ao livro, além do caráter
sensacionalista, uma série de imprecisões. Na
página 88, por exemplo, lê-se que "no século IV
a.C., a palavra malum aparece na tradução da
Vulgata latina...", quando a Vulgata data de 800
anos mais tarde. Há, também, conclusões
apressadas: por exemplo, se Ficino era
conhecedor do Midrash, e Michelangelo era
conhecedor de Ficino, isso não necessariamente
significa que Michelangelo era conhecedor do
Midrash. Não faltam aquelas comparações
insustentáveis que tomam os Estados Unidos como
paradigma para todas as realidades: os autores
comparam Lorenzo de Medici a Edward Kennedy e
Savonarola ao Aiatolá Khomeini. Aproximar o
conteúdo do livro da realidade de seus supostos
leitores, com o objetivo torná-lo um best
seller, acaba comprometendo uma obra de pesquisa
que parece séria, mas é expressa de maneira
frequentemente inadequada. Um tratamento mais
rigoroso do tema poderia beneficiar o trabalho.
Mas lógica do mercado e erudição, como se sabe,
nem sempre caminham de mãos dadas.
Luis S. Krausz, doutor em Literatura e
Cultura Judaica pela USP, é autor de ituais
Crepusculares: Joseph Roth e a Nostalgia
Austro-Judaica (Edusp)
(©
Estadão)
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