Após filmar alguns dos clássicos do cinema, o
diretor italiano realizou trabalhos 'didáticos' para
a TV sobre grandes filósofos
Luiz Zanin Oricchio
Blaise Pascal é o mais novo "filósofo" de Roberto
Rossellini (1906-1977) lançado pela Versátil. Antes,
já haviam saído Sócrates, Descartes e Santo
Agostinho. São alguns dentre os filmes feitos para a
televisão italiana pelo cineasta, pai do
neorrealismo.
Dito assim parece coisa de nada. Mas a decisão de
Rossellini, ao abandonar o cinema tradicional e
dedicar-se a fazer filmes para a TV, causou muita
polêmica na época. Afinal, tem-se o cinema como
faceta mais nobre do amplo espectro do audiovisual.
É, por assim dizer, como a "alta costura" do
audiovisual, enquanto a televisão seria o
prêt-à-porter. O que então teria levado em direção à
TV o renomado mestre, autor de obras clássicas como
Roma Cidade Aberta, Paisà, Alemanha Ano Zero e
Viagem à Itália? O próprio Rossellini deu a resposta
a essa pergunta, em 1963, com uma frase provocativa:
"O cinema está morto". Morto? No início dos anos
1960, década dos grandes realizadores, de Federico
Fellini a Michelangelo Antonioni, sem falar do nosso
Glauber Rocha? A frase causou grande impacto.
Inclusive entre colegas que, melindrados, não
deixaram de criticá-lo. Um deles, o mais ilustre,
foi direto na jugular do italiano: "Acontece que é o
cinema de Rossellini que está morto", disse Alfred
Hitchcock. Resposta violenta de Hitchcock, que
muitos atribuem ao ciúme por causa de Ingrid
Bergman, atriz de vários dos seus filmes e que se
tornou mulher de Rossellini. Caso rumoroso, aliás,
pois a sueca era casada quando conheceu Rossellini e
passaram a ter um caso. Ingrid passou a trabalhar
com Rossellini e foi protagonista de filmes
marcantes como Stromboli (1950) e Viagem à Itália
(1954). Casaram-se, tiveram filhos, separaram-se.
Mas, enfim, a verdade é que Rossellini tinha lá suas
razões para se decepcionar com o cinema. Segundo
ele, a chamada sétima arte havia sido engolida pelo
excesso de glamour e exibicionismo em sua esfera
mais mundana, a do cinema comercial, hollywoodiano
ou não. E mesmo o cinema dito de arte não estava a
salvo, por ter sacralizado a figura do "autor",
invenção francesa que havia colocado os filmes num
patamar de culto, mas talvez pouco humano. Pelo
menos segundo a ótica do humanista que era
Rossellini.
Assim havia a televisão, que já tinha sido inventada
fazia algumas décadas e, àquela altura, havia se
transformado em meio de comunicação que atingia
grandes faixas da população. O cinema ainda era bem
popular, mas Rossellini já previa o papel dominante
que a televisão viria a ter. Antevia, com olhar nem
tanto de profeta, mas de utopista, imaginando que
aquele veículo rápido e democrático bem poderia ser
usado em benefício do povo, até mesmo como veículo
de instrução. Daí lhe parecer de máxima importância
dedicar-se a dirigir filmes didáticos. Foi assim que
dirigiu filmes históricos como A Tomada do Poder por
Luís XIV (1966) e A Era dos Médici (1973).
A série de filósofos entra nesse quadro geral. Vê-se
que são filmes ascéticos, em busca do rigor e da
simplicidade. Preocupam-se com os acontecimentos de
vida dos personagens, mas também com o que pensaram
e escreveram. Muitos dos diálogos são extraídos
diretamente de suas obras escritas. No caso de
Sócrates, modelo intelectual de Rossellini, que não
deixou livros, as frases são extraídas das obras de
Platão, seu discípulo, que a ele se refere com
frequência em seus Diálogos e na Apologia de
Sócrates.
Os filósofos escolhidos por Rossellini são homens
obstinados em sua busca do conhecimento e, de
maneira geral, em luta contra alguns elementos de
seu tempo. Blaise Pascal (1972), o mais recente
título lançado, mostra o rapaz inventivo, encarnando
a luta entre a ciência e a superstição. É
interessante ver o contraste entre o brilhante
matemático, inventor da calculadora, que assiste,
com horror e fascínio, ao julgamento de uma pobre
mulher acusada de bruxaria. Esse confronto expõe, em
linhas dramáticas, o combate, temerário e muitas
vezes dissimulado, entre a fé e a razão.
Embate também registrado em outro filme, Descartes
(1974), filósofo antecessor de Blaise Pascal na
afirmação da racionalidade e do método científico.
Rossellini extrai trechos inteiros de algumas das
obras fundamentais do pensador, como O Discurso do
Método (1637) e as Meditações Metafísicas (1641),
para compor as ações "dramáticas" do personagem. São
procedimentos teóricos de Descartes, cuja função
seria fundar a autonomia do pensamento racional
diante da fé. Vale dizer que, naquela época, toda
démarche racionalista tinha de ser, também, uma
negociação com a autoridade religiosa. Donde, nas
Meditações, Descartes precisar, primeiro, ocupar-se
das provas da existência de Deus, para apenas depois
afirmar que o Cogito (a Razão) se sustenta por si
só. "Eu sou, eu existo", deduz, pelo simples fato de
pensar. A conclusão entrou para a história do
conhecimento como a frase famosa "Penso, logo
existo".
Já a questão abordada em Santo Agostinho (1972) é
diferente, mesmo porque o momento histórico é outro
e a, para usarmos uma expressão moderna, "agenda"
filosófica da época pedia outras meditações que não
as cartesianas. Rossellini faz seu personagem
ocupar-se menos dos problemas de conversão religiosa
do que do embate político sobre o qual se vê
obrigado a tomar posição. Nascido no norte da
África, colonizada pelo império romano, Agostinho
converteu-se ao cristianismo e, como bispo de
Hipona, combateu heresias como o maniqueísmo e o
donatismo. A grande questão política que teve de
enfrentar foi o debate crucial com o paganismo.
Estes responsabilizavam o catolicismo e sua pregação
de não-violência pela queda de Roma diante dos
bárbaros. A polêmica entre Agostinho e os pagãos,
saudosos do imperador Juliano (que tentou, sem
sucesso, restituir Roma ao paganismo), ocupa boa
parte desse filme intelectual porém de ritmo
envolvente.
Mas talvez o mais emocionante perfil dessa série
seja o de Sócrates (1971), mesmo porque Rossellini
se identificava com o filósofo grego, que
considerava uma espécie de herói intelectual. Vemos,
ao longo do filme, Sócrates em ação, usando de sua
melhor arma, o diálogo, para instilar a dúvida em
adversários cheios de certeza. Uma longa sequência é
dedicada ao julgamento e execução de Sócrates,
acusado de vários delitos, entre os quais o de
impiedade, culto a novos deuses e corromper a
juventude. Sócrates poderia ter escapado à morte se
tivesse abjurado suas ideias ou aceitado o plano de
fuga dos amigos. Preferiu morrer, bebendo cicuta, a
trair a si mesmo ou renunciar à cidadania ateniense.
Essa postura, ética até o fim, fascinava Rossellini.
Talvez Sócrates tenha encarnado, de fato, o ofício
que Rossellini se atribuiu, no final da vida.
Decepcionado com o cinema e com os rumos que este
tomava, mesmo por gente que se dizia influenciada
por ele (como os diretores da nouvelle vague
francesa), escreveu, em seu Fragmento de uma
Autobiografia (Nova Fronteira, 1992), essa frase
surpreendente. "Eu não sou um cineasta". E
acrescentou que seu trabalho, na verdade, era outro.
Árduo, extenuante, exigindo dedicação cotidiana e
impossível de ser exercido com perfeição: o ofício
de ser um homem.
René Descartes (1596-1650)
Nasceu na França. Com ele, temos uma nova espécie de
filósofo, situado na base da revolução científica. O
francês Descartes propôs a fusão da geometria com a
álgebra, o que redundou na geometria analítica. Seus
principais livros - Regras para a Direção do
Espírito, Discurso do Método, O Mundo ou Tratado da
Luz e Meditações Metafísicas - estabelecem as bases
para o conhecimento da natureza, propondo algumas
das regras da moderna ciência: analisar, ou seja,
dividir as dificuldades em suas partes elementares
para melhor estudá-las, e depois reuni-las de novo
através da síntese. É considerado por muitos o
iniciador da filosofia moderna, além de pai do
racionalismo. Boa parte da filosofia escrita desde a
publicação de sua obra dialogou diretamente com as
ideias por ele propostas.
Santo Agostinho (354-430)
Nasceu no norte da África, na época parte do Império
Romano. Foi professor de retórica em Milão,
converteu-se ao cristianismo e tornou-se religioso.
Suas obras principais são A Cidade de Deus e
Confissões. Influenciado por Platão, fez a ponte
entre o pensamento grego e a doutrina cristã. A
influência do pensamento de Agostinho se estendeu
até a Idade Média. Respeitava a capacidade de
conhecimento do ser humano mas afirmava que a
revelação da fé era mais importante.
Sócrates (470-399 a.C.)
Grego, delimitou uma época da história da filosofia,
tanto assim que os autores anteriores a ele, como
Tales, Heráclito e outros, são chamados de
pré-socráticos. Denominava seu método de
"maiêutica", o parto de ideias, que, pelo diálogo,
colocava em crise as certezas dos interlocutores. A
frase que define sua postura diante da vida é "tudo
que sei é que nada sei". Foi condenado à morte pelos
tribunais de Atenas e obrigado a beber cicuta.
Blaise Pascal (1623-1662)
Francês, inventou a primeira máquina de calcular que
se conhece. Com tamanha paixão pela área de exatas,
é curioso que tenha popularizado a seguinte frase:
"O coração tem razões que a própria razão
desconhece". É também famosa a chamada "aposta de
Pascal", raciocínio utilitarista sobre a existência
de Deus. Quem acredita, tem tudo a ganhar, certo ou
não. Quem duvida, nada ganha se estiver certo e vai
para o Inferno se errado.
(©
UOL Notícias)
Atualização em 24.05.2009:
DVDs
- Crítica
Em
cinebiografia de Descartes, Rossellini fala para
iniciados
UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
"Penso, logo existo" é a frase mais famosa do
filósofo francês René Descartes (1596-1650), mas o
cineasta italiano Roberto Rossellini (1906-1977)
escolheu outra, bem menos difundida, para conduzir a
cinebiografia do pensador: "A ciência me impediu de
viver a vida".
A afirmação dramática, até
surpreendente para os que se acostumaram a associar
o cartesianismo à primazia da razão, faz parte da
sequência final de "Descartes" ("Cartesius", no
original), o quarto longa sobre filósofos que o
mestre do neorrealismo italiano filmou para a TV na
década de 70, no final da carreira (completam a
tetralogia "Sócrates", "Blaise Pascal" e "Agostinho
de Hipona").
O Descartes que Rossellini
apresentou ao público da Itália em 1974 chega agora
ao Brasil em um DVD essencial para os interessados
em filosofia.
Com base nas obras e na vasta correspondência do
filósofo, o filme mostra dois aspectos em geral
pouco abordados quando se fala desse pensador
francês: seu lado humano, com dúvidas, angústias,
medos e paixões, e o fato de ele ser um produto de
seu tempo.
Não que o brilhantismo individual de
Descartes não esteja lá. O filme "acompanha" três
décadas da vida do pensador e expõe sua genialidade
em diversas áreas -matemática, física, filosofia-,
assim como seu profundo interesse pelas novas
ciências, sua inquietação intelectual desde a
juventude e a admiração que sua inteligência
provocava nos interlocutores.
Mas o que Rossellini procura
enfatizar é o contexto em que Descartes viveu. Desde
a primeira cena, ele aparece rodeado de pessoas que
debatem as teses de Nicolau Copérnico (1473-1543) e
Galileu Galilei (1564-1642) acerca da mobilidade da
Terra e do heliocentrismo ou que fazem experiências
contrárias ao consenso "científico" da filosofia
aristotélica.
Com isso, vemos um Descartes
mundano, que acordava sempre depois do meio-dia,
temia publicar sua obra -sobretudo após a condenação
de Galileu pelo Tribunal do Santo Ofício, em 1633- e
gostava de viajar pela Europa em busca de suas
certezas racionais.
O resultado é uma ótima radiografia
do amadurecimento intelectual do pai da filosofia
moderna. Porém, se nisso reside o maior mérito do
filme, aí está também sua grande fraqueza: à força
de enfatizar o contexto da época e os conflitos
internos do personagem, Rossellini deixa de explicar
em detalhes a obra de Descartes.
Sem didatismo, os 162 minutos do
filme, quase todos com diálogos densos, são pouco
convidativos para quem não é familiarizado com o
assunto. É um preço alto que Rossellini paga por sua
escolha. No DVD, felizmente, os extras ajudam a
sanar o problema.
DESCARTES
Lançamento: Versátil
Quanto: R$ 45, em média
Classificação: livre
Avaliação: bom
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