Roberto Saviano (centro), cercado por policiais que o acompanham 24 horas, caminha em rua de Nápoles
COM 80 CLÃS, MAIS DE 3.000 FILIADOS
ARMADOS E UMA REDE EXTENSA DE
COLABORADORES, A CAMORRA SE TORNOU "O
SISTEMA", DIZ O ESCRITOR QUE SE
TRANSFORMOU EM SÍMBOLO MUNDIAL DA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
MIGUEL MORA
Não sei se estou meio morto ou meio
vivo. O que sei é que a ameaça dos
Casaleses [clã mafioso] me converteu em
uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais
egoísta. Sinto ódio dos amigos que me
abandonaram quando o livro saiu, entre
uma partida de Playstation e uma da Liga
Fantástica. Apenas saio de casa. Não
posso usar cartão de crédito. Vivo sob
escolta 24 horas por dia. Deixei de ser
um homem -virei uma equipe. Os rapazes
são ótimos, são napolitanos como eu.
Praticamos esportes juntos, lutamos boxe
no ginásio... Mas sinto falta de
Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem
na estação...
O tempo se deformou, os minutos são
estranhos, cada movimento banal requer
um dia inteiro. E não posso mais fazer
as coisas mais simples: passear, tomar
uma bebida num bar, comprar uma
geladeira.
Ontem fomos ao supermercado, e foi
patético. Os "carabinieri" [policiais
militares] em torno do carrinho, todos
opinando sobre a pasta que eu devia
comprar. As pessoas se assustaram; nos
abriram um espaço no caixa para que
fôssemos embora logo. Quando saímos, eu
disse aos rapazes: "Não vamos voltar"."
Assim é a vida de Roberto Saviano.
Uma vida que não é vida, uma vida-morte,
uma espécie de morte em vida.
O sucesso de "Gomorra" [ed. Bertrand
Brasil], um dos maiores fenômenos da
história italiana, converteu-se numa
maldição para seu autor.
Reconhecimento, prêmios e elogios,
fama, dinheiro e viagens, nada disso
compensa o outro lado da moeda: Saviano
foi difamado, cuspido e insultado pelos
jovens de sua própria terra, abandonado
por seus amigos, condenado à morte.
E hoje vive agachado, rodeado de
armas e de policiais, em alta velocidade
e à meia-voz.
O Sistema
Tem apenas 29 anos,
mas percebe-se que já não é mais aquele
rapaz que gostava de contar piadas e que
ia conquistar o mundo quando formou-se
em filosofia pela Universidade Federico
2º, em Nápoles.
Foi naquela época que Saviano começou a
escrever seu primeiro relato real,
intitulado "La Terra Padre" [A Terra
Pai]. Naturalmente, o tema era a
Camorra.
Conforme descrita por Saviano, a
máfia napolitana, ou, melhor, da região
da Campanha, deixou de ser o que era aos
olhos de muitas pessoas -um grupo de
bandidos dirigidos por tipos mais ou
menos honrados que traficam e
assassinam, mas que, no fundo, protegem
uma população abandonada à própria sorte
(embora esta última parte continue sendo
verdade).
Ela passou a ser O Sistema, uma
poderosa holding criminal que, de acordo
com o último censo feito pelo chefe dos
"carabinieri" de Nápoles, o general
Gaetano Maruccia [leia entrevista na
pág. 6], responsável pela segurança de
Saviano, "tem pelo menos 80 clãs e mais
de 3.000 filiados armados, aos quais se
soma uma extensa rede de colaboradores".
Quando Saviano começou a escrever,
era um jovem feliz, embora trabalhasse
sem parar.
"Eu tinha quatro ou cinco trabalhos:
numa pizzaria, dando aulas de reforço
para crianças à tarde, como pedreiro
ocasional no campo de Caserta, bolsista
de doutorado em história contemporânea e
colaborador de periódicos e sites."
Levou apenas alguns meses para juntar
os 11 relatos verídicos que formam
"Gomorra".
Pouco depois, o manuscrito se
converteu em livro, graças ao faro dos
editores da Mondadori. "Publicaram meu
primeiro relato na revista "Nuovi
Argumenti" (em abril de 2005), e depois
fecharam comigo um contrato de promessa
jovem. Me deram 5.000 de adiantamento
por 5.000 cópias", recorda Saviano.
Logo depois esse contrato deu lugar a
outro, com valores estelares. "Em maio
de 2006, quando o livro finalmente saiu
nas livrarias, eu era o cara mais feliz
do mundo. Vivi os cinco melhores meses
de minha vida. Eu era um homem livre.
Ganhei o Prêmio Viareggio, comecei a
escrever no "La Repubblica" e no
"Espresso", a falar na televisão... E,
de repente, tudo parou. Tudo o que
aconteceu desde então eu não vivi."
Chegaram as primeiras ameaças dos
Casaleses, o clã do povoado onde Saviano
cresceu, Casal di Principe. E eram
inequívocas. Ele teria que morrer. Não
apenas sabia demais e tinha contado o
que sabia, dando nomes e sobrenomes,
relacionando cada informação com sua
fonte, como também, e sobretudo, o livro
havia chegado a pessoas demais.
A Camorra estava na boca de todos. Já
não era o tradicional mal menor
napolitano (fisiológico, à margem da
lei). Era um câncer internacional.
Os juízes antimáfia levaram a
advertência a sério. Era preciso
protegê-lo, e rápido. No dia 13 de
outubro de 2006, o ministro do Interior,
Giuliano Amato, decidiu que Saviano
deveria viver escoltado.
"Lembro-me do dia em que os policiais
militares vieram me buscar em casa para
me levar ao quartel. Os vizinhos
brincavam: "Robbè, finalmente estão
prendendo você!". Amato foi de uma
sensibilidade extraordinária. Disse que
o Estado tinha que me proteger, porque
por mim defendia a liberdade de
expressão, um princípio constitucional.
Isso me converteu em símbolo da
liberdade de expressão. Sempre o
agradecerei por isso."
Dois anos e quatro meses se passaram.
Seus velhos amigos se afastaram dele.
Sua antiga namorada o deixou. Sua
família se dispersou ainda mais do que
já estava dispersa (seus pais se
separaram em pouco tempo).
E Saviano se culpa por tudo isso. Diz
que lamenta por "ter destruído meu mundo
por um livro e ter feito mal a todos os
que me queriam bem".
Sua vida está "suspensa, cancelada,
detida". É um destino quase
irreversível.
Por questões de segurança, foram
necessárias semanas para marcar o
encontro para esta entrevista. A
primeira tentativa foi adiada porque os
níveis de alerta dispararam.
Um primo de Sandokan [líder mafioso]
chamado Carmine Schiavone e colaborador
com a Justiça (um "pentito", ou
arrependido), revelou que a Camorra
tinha plano e data marcada. Iam matar
Saviano antes do fim do ano, colocando
uma bomba no caminho que ele percorreria
na rodovia A1, que liga Roma a Nápoles.
Mas o nível de alerta diminuiu.
Schiavone -que, mais do que um
arrependido, parece ser o porta-voz da
Camorra- declarou que seus ex-comparsas
tinham decidido esperar que os holofotes
fossem um pouco apagados antes de
matá-lo. Com mais calma.
Finalmente pudemos marcar o encontro.
"Vão acabar comigo"
Com a ajuda de sua amabilíssima
assistente, Manuela, programamos ir
juntos a Nápoles, fazer uma refeição com
Saviano e conhecer seu amigo, o general
Maruccia, chefe do Comando Provincial
dos Carabinieri de Nápoles.
É 16 de janeiro, a manhã é bela e
gelada, e os dois carros blindados
chegam pontuais e muito juntos,
deslizando com elegância italiana.
Saviano está sentado no primeiro
carro, no banco de trás, à direita. As
sirenes deixam de tocar, e os carros
param. Cinco policiais descem e
vasculham a rua com seus óculos escuros
e seus "walkie-talkies". Saviano
continua sentado dentro do Lancia cinza.
Nos cumprimentamos e o fotógrafo
começa a fazer imagens. Os guardas
permanecem impassíveis. Estão
acostumados. A esta altura, já foram
fotografados 2.000 vezes e sabem que a
Camorra conhece seus rostos
milimetricamente. Mesmo assim, suas
expressões não traem medo algum.
Saviano faz um apanhado do armamento:
os Casaleses têm cem quilos de TNT e um
arsenal de metralhadoras e pistolas.
"Sei que vão acabar comigo. Cedo ou
tarde, vão fazê-lo."
AUTOR MERGULHOU NOS "INFERNOS
LITERÁRIOS" PARA ENTENDER SUA SITUAÇÃO E
REVELA QUE ENTRA EM CONTATO COM SEUS
LEITORES APENAS PELO FACEBOOK
Leia a seguir entrevista com Roberto
Saviano.
PERGUNTA - Quer dizer que é
assim sua vida atual?
ROBERTO SAVIANO - É assim. Eles
vão aos lugares antes de mim. Chegam
primeiro, controlam tudo, e depois eu
vou. Para qualquer coisa. Se é preciso
comprar uma geladeira, por exemplo, eles
vão na frente, depois eu vou, a olho,
escolho o modelo, e então vamos a outra
loja diferente para comprá-la. Nunca
voltamos ao mesmo lugar.
PERGUNTA - O sr. sempre teve
cinco guardas?
SAVIANO - Comecei com dois,
depois passaram a ser cinco.
PERGUNTA - O sr. muda muito de
casa?
SAVIANO - Sempre que observamos
algum detalhe diferente. Por exemplo, se
há uma obra em andamento num edifício
próximo e sabemos que há pessoas de
Nápoles trabalhando ali que já foram
julgadas, eles me mudam de casa. Basta
algo assim.
PERGUNTA - Eles o escoltam
também dentro de casa?
SAVIANO - Não, normalmente não
entram em casa. Esperam atrás da porta.
Vinte e quatro horas por dia.
PERGUNTA - Parecem tranquilos.
SAVIANO - Têm muitos anos de
experiência no combate à máfia. Já
protegeram personalidades, juízes e
"supertestemunhas". Maruccia os
escolheu.
PERGUNTA - Com tanto contato,
vocês já devem ter virado amigos.
SAVIANO - Claro, são magníficos.
E isso me obriga a seguir adiante, a não
desistir. Devo isso a eles, que me
defendem.
PERGUNTA - O sr. encontra
amigos em casa?
SAVIANO - Poucas vezes. Muitos
de meus amigos se afastaram desde que o
livro saiu. Foi muito doloroso entender
isso. É natural, porque você desaparece,
vira invisível e se torna outra pessoa.
Você fica desconfiado, vive nervoso, com
a cabeça em outro lugar, e nada nem
ninguém parece estar à altura trágica de
sua situação...
PERGUNTA - A normalidade se
torna absurda.
SAVIANO - Sim, as propostas das
pessoas normais, falar de coisas bobas,
sair para tomar uma cerveja, bater papos
superficiais, no início eu não
suportava. Eu estava mergulhado num
turbilhão no qual existia apenas meu
trabalho, minha situação, e procurava
respostas nos livros. Fiz uma espécie de
descida aos infernos literários para
entender quem, antes de mim, em
situações mais graves, conseguiu
sobreviver.
PERGUNTA - E quais autores o
ajudaram?
SAVIANO - Os perseguidos pelos
soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960],
Varlam Shalamov [1907-82]... e, mais
recentemente, Anna Politkovskaia
[1958-2006], que acabou de forma
trágica, mas sempre enfrentou as
difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco
me esqueço das cartas e dos diários do
juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que
ele escreveu e publicou, porque resistiu
a ataques cotidianos, parecidos com os
que eu sofro.
PERGUNTA - E, tantas vezes, com
a cumplicidade do governo.
SAVIANO - Sim. Estou convencido
de que, na Itália, quando se luta contra
determinados poderes, o destino das
pessoas está selado. Não necessariamente
de forma trágica, embora muitas vezes
seja assim.
PERGUNTA - Deixando o sr. fora
do circuito?
SAVIANO - Eles o caluniam, dizem
que você está se exibindo, que está
procurando publicidade. É isso que é
incrível, porque se cria um círculo
vicioso que impede que você tenha a
palavra. E o que as máfias temem é
justamente isso: a atenção.
PERGUNTA - Quando o sr.
escreveu o livro, imaginou que
aconteceria algo assim?
SAVIANO - Eu era um sujeito
jovem que lia, discutia e escrevia. De
repente me vi no meio desta guerra.
Pensava que teria problemas, mas não tão
graves. Agora não posso pôr os pés em
Nápoles. Esta viagem é a primeira que
faço em um mês. Todas as cidades me
convidam, menos a minha. Apesar de
"Gomorra" ser o livro mais vendido da
história da cidade.
PERGUNTA - Soa irônico, é
verdade.
SAVIANO - Restam poucos focos de
resistência ali, poucas forças sadias.
Uma delas é Marotta, o filósofo; outra,
o cardeal Sepe. E o bispo Raffaele
Nogaro, em Caserta, que leva adiante o
trabalho do dom Peppino Diana, o padre
de Casal di Principe que foi
assassinado. É curioso que as
instituições religiosas façam o trabalho
do Estado. Esse é o drama do sul da
Itália.
PERGUNTA - A crise econômica
vai agravar a situação?
SAVIANO - Com certeza. E isso
vai permitir ao dinheiro do crime entrar
em todo lugar. [Devemos estar por volta
do quilômetro 80. Faltam 150 para
Nápoles. Não há muito tráfego na estrada
e o automóvel voa, como os dos
videogames. Os que andam pela esquerda
nos acompanham em alta velocidade.
"Vamos levar pouco mais de uma hora",
informa Saviano. "Se os "carabinieri"
nos pararem, vamos sorrir." É a primeira
piada da viagem.] [Parece estar de humor
melhor do que estava alguns meses atrás,
quando disse que deixaria o país. Mas, à
medida que nos aproximamos de Nápoles,
vai ficando mais tenso]
PERGUNTA - Na realidade, o sr.
vive uma espécie de vida virtual. Como
um super-herói ao avesso.
SAVIANO - Uma vida virtual e
blindada. As pessoas me visitam como se
eu fosse um doente, me trazem água e
açúcar, como dizemos na Itália. O que me
dá satisfação são coisas virtuais, como
o Facebook -recebo milhares de mensagens
de jovens. Isso é precioso. Neste país
ainda há pessoas que têm vontade de se
expressar.
PERGUNTA - O sr. sente mais
esse apoio que o da classe intelectual?
SAVIANO - O papel do escritor
mudou de repente, e alguns se sentiram
assediados. Muitas pessoas exigem que os
escritores se pronunciem. Antes achavam
que os livros não podiam mudar as
coisas; hoje já não se pode afirmar
isso. Talvez se possa dizer que alguns
escrevem palavras que não mudam as
coisas e que outros escrevem palavras
que permitem que as pessoas tenham
instrumentos para mudar as coisas. O
poder enorme que tem o leitor que
escolhe ler um livro... Talvez ele não
se dê conta disso. Eu, sim. Os leitores,
e não o livro, são a chave de minha
história. Se ninguém tivesse lido meu
livro, a Camorra teria se importado
muito menos com ele.
PERGUNTA - A jornalista do "Il
Mattino" Rosaria Capacchione, autora de
"L'Oro della Camorra" [O Ouro da
Camorra], também vive sob escolta.
SAVIANO - Sim, é um caso
parecido com o meu. A diferença é que
ela ainda vive e trabalha em Nápoles.
Consideram-me um palhaço porque escrevo
fora da cidade. Já ela é respeitada.
PERGUNTA - [O jogador de
futebol] Cannavaro já disse que essas
coisas da máfia é melhor não espalhar...
SAVIANO - A máfia faz todo mundo
sentir-se culpado. Alguns se sentem
culpados porque sabem pouco, outros,
porque pensam muito. Cannavaro se
equivoca em uma coisa. Não é um problema
local, é global: eles investem em todo
lugar.
PERGUNTA - Muitos napolitanos
pensam como ele.
SAVIANO - Sim, um dia um
advogado gritou para mim: "Sou eu quem
paga sua escolta!". E os vizinhos de um
apartamento que tive se organizaram e
pagaram vários meses de meu aluguel
adiantados, para não me terem ali.
[Nápoles aparece no horizonte, grande e
belíssima. "Você vê Nápoles e depois
morre", reza o ditado. Uma frase que não
parece oportuno citar quando o carro
estaciona no quartel da polícia. Por
sorte a pizzaria fica perto dali, na rua
de Toledo.]
[Os livros são a grande paixão de
Saviano, desde pequeno. Seu rosto só se
ilumina quando fala de literatura e
quando chega a pizza fumegante,
verdadeiramente napolitana: mussarela de
búfala, tomates cereja, crocante e
macia.]
[Saviano a corta em triângulos e sopra
por cima, fazendo círculos, como um
menino. Então conta que tirou de
"Soldados de Salamina", de Javier
Cercas, a inspiração para escrever seu
"relato real". E que gostaria de
encontrar Mario Vargas Llosa.] É um
escritor fabuloso, e, como Cervantes,
conhece a alma napolitana. Eu o
escolheria como padrinho de meu retorno
público.
Seria maravilhoso se Marotta organizasse
sua vinda aqui no Instituto, porque foi
essa grande tradição laica e civil de
Nápoles que me ajudou a escrever o
livro. Os mestres dos revolucionários
franceses eram napolitanos. Aqui
nasceram as ideias de liberdade na
Europa.
E não foi por acaso que Giordano Bruno
morreu na fogueira, e sim porque tentou
retornar a Nápoles. Tinha a
hospitalidade do mundo inteiro, mas
preferiu voltar. Foi detido em Veneza e
o queimaram.
Alguns me dizem: "Fale da grande
cultura, e não da vida ruim". Caravaggio
é a beleza, e essa beleza me dá forças
para relatar o mal. Se não existisse
essa beleza, não haveria esperança de
sair. Mas, se usamos a beleza para
encobrir o mal, ela se converte em
disfarce.
Estive com Salman Rushdie em Nova York.
Cheguei com a escolta, ele se aproximou
com Ian McEwan, cada um me pegou por um
braço e eles me levaram ao carro. Eu mal
conseguia acreditar.
Salman me disse o que eu sinto. Que
muitas pessoas pensam que, para um
escritor, viver ameaçado é algo
glamouroso. Que ninguém vai me entender,
exceto algum político (ele diz que
apenas Margaret Thatcher o entendia).
Que ninguém vai acreditar que o que você
mais deseja é tomar um café num bar. Que
a única forma de reconquistar sua
liberdade é decidir fazê-lo. Que o
importante é manter sua cabeça livre e
saber quando você quer voltar a ser
livre. Que eu devo procurar um bom
exílio...
Mas isso é algo que preciso pensar bem,
porque começar do zero é difícil.
[Estamos de volta a Roma. Saviano
escapuliu na metade da tarde de
sexta-feira para passar o fim de semana
com sua "mamma" (versão oficial) e hoje
ficamos na sede de sua editora, a
Mondadori. Finalmente, a boa notícia:
Saviano está escrevendo outra vez. Tem
dois projetos em andamento. Um é um
relato verídico sobre o crime organizado
internacional. O outro falará dele
próprio, do homem solitário. Será quase
uma vendeta.]
["Tenho que canalizar de alguma maneira
o rancor que sinto pelos amigos que me
abandonaram quando escrevi "Gomorra".
Sinto ódio por eles. Entendo que a
vendeta não é uma arte nobre, mas me
deixaram no chão quando eu mais
precisava deles. E a amizade é o
contrário disso, não?"]
PERGUNTA - Com sua família as
coisas vão melhor?
SAVIANO - Quando meus pais se
separaram, meu irmão e eu ficamos com
nossa mãe, que é química e vivia
viajando a congressos. Estudamos num
colégio de Caserta. Víamos meu pai, que
é o médico da cidade, nos finais de
semana.
Arruinei a vida de todos que me eram
próximos. Meu irmão foi trabalhar no
norte. E não tenho relações com meu pai.
PERGUNTA - Dizem que tudo vem
da infância. O que o sr. se recorda da
Camorra daquela época?
SAVIANO - Meu pai me levava para
visitar doentes nos povoados rurais de
Caserta. Muitas vezes víamos cenas
apocalípticas. Eu me lembro das búfalas
mortas boiando no rio Volturno. Quando
ficavam velhas, jogavam-nas na água,
para economizar balas.
Lembro que pescávamos percas marinhas no
rio, porque, de tanto a Camorra roubar a
areia do rio para fazer cimento, em vez
de o rio desembocar no mar, a água
salgada penetrava em seu leito.
Meu pai sempre teve medo da Camorra, mas
nunca se rebelou. Via os carros luxuosos
deles e sentia raiva. Mas não dizia
nada, nunca.
Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal,
mas ninguém podia fazer nada. Sempre foi
assim. "Se você é "furbo" (malandro),
pode aproveitar", diziam. Se você pensa
que pode mudar alguma coisa, é um louco.
A Camorra sabe que só tem problemas
quando mata demais. Ela ajuda as
famílias com filhos deficientes.
PERGUNTA - Quer dizer que não é
apenas um Estado, mas um Estado de
Bem-Estar Social.
SAVIANO - Mas o bem-estar social
da Camorra não é um direito, é um
privilégio. Eles podem tirá-lo de você.
PERGUNTA - Quando decidiu ser
escritor?
SAVIANO - Aos 14 ou 15 anos. Eu
sempre lia; adorava os clássicos. Nascer
na terra da Camorra não supõe apenas
viver entre morte e sangue -você também
vive rodeado das melhores ruínas da
Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os
personagens de minha infância. Meu avô e
meu tio sempre me contavam histórias de
Espártaco.
A cultura é o que realmente salva nossa
vida; minha terra me deu isso de
presente. A "Anábasis" de Xenofonte se
parece comigo.
Para escrevê-la, ele se tornou
mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu
também. Ele se fez tatuar com a figura
de um javali. Consideravam-no um
reacionário. Mas no livro, dizia: "Não
confia em quem escreve sobre coisas não
vividas".
PERGUNTA - Mas, para o sr.,
esse livro apenas estragou sua vida.
SAVIANO - Agora vivo encerrado
em ambientes fechados; ando de um cômodo
a outro, às vezes dou socos nas paredes.
É uma meia morte, ou uma meia vida.
PERGUNTA - Ela acabará um
dia...
SAVIANO - Quem sabe minha
libertação chegue e eu possa passear
novamente na praça do Plebiscito quando
eu for velho, ou usando uma peruca
loira.
Mas não acredito. Nápoles não só não
esquece como sente rancor. "Gomorra"
arrancou a tampa que fechava tantos
silêncios. Não me perdoarão nunca.
Dizem: "Você está ganhando dinheiro com
a "monnezza" (o lixo), hein?", ou "pare
de escrever porcaria, 'buffone'".
Os guarda-costas se indignam mais do que
eu, e tenho que dizer a eles que têm que
me defender dos ataques físicos, não dos
espirituais.
PERGUNTA - Orhan Pamuk deixou a
Turquia.
SAVIANO - A Europa e o México
são hoje os lugares onde os escritores
correm mais risco. Mataram com um tiro
na cabeça o autor [Georgi Stoev] de "BG
Godfather" [Chefão Búlgaro]. Também
mataram Politkovskaia e a jornalista que
retomou seu trabalho... Dá medo neles o
autor que consegue fazer sua mensagem
extrapolar seu território.
PERGUNTA - O sr. pensa muito em
sua própria morte?
SAVIANO - Bastante. Me dizem que
o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo
de balas. Sei que me farão pagar -está
escrito.
Convivo tanto com isso que já não me
assusta mais. Quando chegarem, porque
chegarão, será dentro de algum tempo. A
tensão me defenderá por alguns anos.
Enquanto isso, eles, seus 200 mil
seguidores e tantos políticos que tentam
minimizar o que acontece, dizendo que é
exagero, continuarão com a difamação.
Dirão que copiei, que sou um palhaço.
Diziam isso a Falcone. E ele disse uma
coisa muito importante a sua irmã. Disse
que não se defendia das calúnias porque
elas se defendem sozinhas, e que a máfia
lhe faria um favor matando-o, porque
assim ficaria claro que não era
arrivista e que dizia a verdade.
PERGUNTA - Não podemos terminar
assim. Suas armas são a palavra e a
verdade, e são mais poderosas que as
balas.
SAVIANO - Contar a verdade me
ajudou a afastar as sombras que eu
carregava por dentro e que se projetavam
sobre mim. Eles venceram em parte, por
me fazerem viver assim.
Mas, por outro lado, perderam. Hoje no
Facebook há milhares de jovens
discutindo a Camorra. Destruíram minha
vida, mas, quanto a mim, o que fiz já
não é meu. É das crianças.
A íntegra deste texto
saiu no "El País". Tradução de Clara
Allain
Tomamos um café napolitano,
delicioso, e vamos rapidamente conhecer
um dos melhores amigos de Saviano: o
general Gaetano Maruccia, homem afável,
culto e cortês.
PERGUNTA - Por que o livro de
Saviano foi tão importante?
GAETANO MARUCCIA - Porque chamou
a atenção do grande público para a
Camorra e tornou mais compreensível seu
potencial criminal.
Antes as pessoas pensavam que eram meros
gângsteres urbanos, e não criminosos
organizados, como a Cosa Nostra [na
Sicília] ou a Ndrangheta [na Calábria].
Pareciam os parentes pobres das máfias,
e não é verdade.
São um poder armado e horizontal, com
diversas estruturas e uma hierarquia
pouco clara, composta de grupos
autônomos, que às vezes se enfrentam
entre si.
E em vários níveis. Os pequenos bandos
locais, que vivem sobretudo da extorsão
de dinheiro para "proteção" e do tráfico
local de drogas, são responsáveis pelo
gangsterismo urbano e, às vezes,
trabalham para quadrilhas que não ficam
a dever em nada às "endrine" calabresas
ou às "famílias" sicilianas.
PERGUNTA - O sr. teme pela vida
de Saviano?
MARUCCIA - O dispositivo é
adequado ao nível de risco. Obviamente,
é preciso manter a guarda alta sempre e
agir com extrema prudência.
PERGUNTA - O sr. já o conhece
faz anos. Poderia defini-lo em poucas
linhas?
MARUCCIA - Isso não se pergunta
a um amigo, e menos ainda se ele está à
sua frente. É um jovem brilhante,
inteligentíssimo, sabe manejar as
informações com enorme visão, analisando
o presente e prevendo o futuro.
Seu grande talento para escrever lhe
permitiu fazer esse livro, baseado no
estudo analítico do fenômeno e em seu
grande conhecimento do terreno. Sabe
enxergar coisas que escapam a outros.
PERGUNTA - Saviano vai acabar
se exilando?
MARUCCIA - Acredito que suas
declarações sobre uma possível mudança
ao exterior foram apenas um momento de
desmoralização de um jovem que se viu de
repente no centro da fama e de uma rede
muito complexa de responsabilidades e
tarefas.
Se isso acontecesse, não seria coerente
com sua forma de ser, nem com sua
mensagem de compromisso social.
Mas, conhecendo-o, estou certo de que
isso não vai acontecer.
PERGUNTA - Vocês vão vencer
esta guerra?
MARUCCIA - Estou convencido
disso, não lutamos sozinhos. Não existem
tempos; é uma batalha diária.
É preciso, essencialmente, reforçar as
intervenções sociais, dar oportunidades
para que se possa sair do circuito
criminal perverso.
Com repressão, apenas, não iremos a
lugar algum. Precisamos de todos os
recursos -cultura, trabalho, educação,
paciência e tempo, escritores,
jornalistas. Trata-se de erradicar a
violência como conceito de vida.
Desde 1979, a Camorra comete em média
um assassinato a cada 2,5 dias. Tem
faturamento de bilhões de euros anuais,
controla parte do tráfico de cocaína na
Europa, domina o negócio da extorsão, da
agiotagem, da coleta de lixo e do
transporte de dejetos tóxicos.
Ela controla crianças de 11 anos, que
atuam como sentinelas, abocanha grandes
contratos públicos para os quais são
feitas licitações na região da Campanha
-onde fica Nápoles.
A Camorra também lava dinheiro no setor
da construção civil da Espanha, compra
políticos, faz prefeitos, administra
direta ou indiretamente 40% do comércio
de Nápoles, fabrica roupas no mercado
negro para grandes empresas, dirige a
importação e distribuição de mercadorias
falsificadas vindas da China e domina o
porto da cidade.
Isto é "Gomorra"
DA REDAÇÃO
O livro "Gomorra", publicado na
Itália pela editora Mondadori, vendeu
mais de 2 milhões de exemplares em seu
país e foi traduzido para mais de 30
línguas. Lançado no Brasil no final do
ano passado pela Bertrand Brasil (trad.
Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39), já
vendeu no país 37 mil exemplares.
A adaptação cinematográfica, dirigida
por Matteo Garrone, recebeu o Grande
Prêmio em Cannes em 2008 e foi vista por
65 mil pessoas nos cinemas brasileiros.
Está disponível nas locadoras (Paris
Filmes)
Terremoto em Abruzzo
criou nova frente para mafiosos, diz
Saviano
DA
REDAÇÃO
O terremoto de 6 de abril, que matou
cerca de 300 pessoas na região de
Abruzzo, na Itália, pode ser uma nova
frente de corrupção. A interpretação é
defendida por Roberto Saviano e
investigadores locais.
"Quanto mais danos são averiguados, mais
dinheiro, mais contratos e subcontratos
são gerados, e a circulação de cimento,
o transporte de terra, as escavações e a
edificação irão atrair a vanguarda da
edificação por subcontrato na Itália, ou
seja, os clãs, a máfia, a Camorra e as
famílias da Ndrangheta", escreveu
Saviano no "La Repubblica".
Na quinta, o premiê italiano, Silvio
Berlusconi, propôs ao G8 trocar a cidade
que sediará a reunião do grupo de países
em julho: o governo italiano argumenta
que Áquila, cidade mais atingida pelo
tremor, precisa mais dos investimentos
em estrutura do que La Maddalena, na
Sardenha.