Três textos
escritos por um sapateiro, um alfaiate e um farmacêutico mostram a produção
teatral anarquista brasileira, abertamente anti-intelectual
Fabiana Moraes
fmoraes@jc.com.br
Proudhon atestou
certa vez: a verdadeira arte é aquela que pode ser realizada pelo mais
simples dos indivíduos. Seguidores em diferentes níveis do teórico mais
famoso do anarquismo, três homens – um farmacêutico, um alfaiate e um
sapateiro – inculcaram a afirmativa e pensaram para além dos tipos
profissionais que encarnavam: tornaram-se dramaturgos, artistas que
escreveram sobre a corrupção e a dominação de seu tempo. Avelino Fóscolo,
que vivia entre fórmulas e escritos, Marino Spagnolo, ex-vidreiro também
voltado a confecção de ternos, e Pedro Catallo, italiano que, além de
sapateiro era poeta, não tiveram seus textos montados por nenhum grupo ou
diretor famoso no País, mas increveram-se na história da dramaturgia
nacional.
Suas obras O semeador, A bandeira proletária e Uma mulher
diferente foram algumas das primeiras peças escritas em solo nacional a ir
contra o teatro comercial, dando vazão àquilo que era produzido na esfera do
operariado. As três produções acabam de ser lançadas pela editora Martins
Fontes (preço médio, R$ 45), dentro da coleção Dramaturgos do Brasil, que já
contemplou obras de Oduvaldo Viana (Vianinha), João do Rio, Machado de
Assis, José de Alencar e o teatro romântico nacional.
Organizadora
da antologia, Maria Thereza Vargas escreve, já na introdução do livro, que
os textos “nada têm, em sua estrutura, de peças extraordinárias, nem de
obras concebidas em elevado grau de inspiração que tenham chamado a atenção
dos meios teatrais consagrados”. O que tornou relevante a reunião das peças
na coleção, defende, foi o “ineditismo das ideias e fidelidade à causa que
serviam que não se acham distantes daqueles poucos momentos em que a
dramaturgia soa como uma transposição fiel daquilo que os espectadores
pensam e dizem ou gostariam de dizer”.
De fato, a obra dos três autores
ressalta, antes de tudo, um período no qual o País, principalmente nas
regiões Sul e Sudeste, era tomado por imigrantes europeus que já traziam na
bagagem uma noção do anarquismo (intensamente pregado em cidades francesas e
italianas durante a segunda metade do século 19). Somavam-se a estes
imigrantes intelectuais brasileiros como Manuel de Mendonça (autor de
Regeneração) e o médico Fábio Luz, que escreveu Os emancipados, além do
grupo de fundou a revista Kurtur e a Universidade Popular em 1904 (Elísio de
Carvalho, o estudante de medicina J. Martins Fontes, Pedro do Couto, Rocha
Pombo, Pausilipode da Fonseca, João Gonçalves da Silva e Maximino Maciel).
Além de
escrever O semeador - que traz personagens como camponeses e um coronel,
entre outros –, Fóscolo ainda confeccionou três romances (O mestiço, O
caboclo e O vulcão), todos influenciados por teóricos como Elisée Reclus e
Jean Grave. Apesar do estofo teórico, ele identificou-se fácil com os
problemas sociais que assolavam um país que ainda engatinhava na república:
órfão, ele trabalhou, criança, ao lado de escravos nas minhas de Morro
Velho.
Em O semeador, onde cita as longas jornadas de trabalho dos
camponeses e a perseguição aos libertários (como Laura, a professora),
Fóscolo demonstra uma das mais caras bandeiras do movimento no Brasil: a má
vontade com os intelectuais, que já eram entendidos como uma “categoria”
sempre distante do povo. Nesse sentido, mais do que a experiência em salas
de aula, era a vivência nas ruas - aliás, nos campos – que determinavam o
caráter do homem. “O diploma não é prova de saber, os exames não são indício
de competência”, diz o autor em O semeador.
Marino
Spagnolo e Pedro Catallo não carregavam a bagagem cultural do colega
anarquista mineiro, mas, embalados com os movimentos sindicalistas que
passaram a pipocar no País, tiveram contato com textos que os impulsionaram
a também apontar o dedo para as problemáticas sociais de então. A estrutura
dos textos pode soar um tanto simplista, talvez ingênua, para os dias de
hoje, mas é preciso antes de tudo contextualizar o momento político do
Brasil. Em A bandeira proletária, por exemplo, Spagnolo personifica o mal na
figura do industrial, enquanto o operário Paulo profere frases como “Saúde?
Melhor não a ter! a saúde dá muita fome e eu não ganho para comer. Recorro
ao álcool para que me mate a saúde, porque com ela morre a fome”.
Catallo tem
uma contribuição particularmente interessante no teatro nacional,
ultrapassando inclusive a questão anárquica: criou, entre as décadas de 40 e
50, três peças que falavam sobre a condição feminina (A insensata, O coração
é um labririnto e Uma mulher diferente, esta presente na publicação). “Em
suas peças, é a mulher que, muito lúcida, cabe o raciocínio sobre os
acontecimentos e é ela quem dá a palavra final, saindo sempre vencedora”,
escreve Maria Thereza Vargas a respeito do trabalho do autor.
(©
JC Online)
Pérolas pela liberdade
Rosane Pavam
Um prático em farmácia, um sapateiro e um alfaiate, decepcionados com a
República brasileira, transformam suas ideias em peças teatrais. Estamos nos
primeiros anos do século XX e a arte propaga novos caminhos. Unidos pelo
lema anarquista, o farmacêutico de Sabará Avelino Fóscolo (1864-1944), o
alfaiate de origem hispânica Marino Spagnolo e o sapateiro-poeta
ítalo-argentino Pedro Catallo (1900-1963) enforcariam o último rei nas
tripas do último frade, se isto à época lhes coubesse fazer.
Mas a eles estava destinada a tarefa de escrever aos companheiros. Suas
peças se intitulavam O Semeador, A Bandeira Proletária e Uma Mulher
Diferente. E eram redigidas segundo o ideal anarquista de “dramaturgia
perfeita”. Maria Thereza Vargas, organizadora da Antologia do Teatro
Anarquista (Martins Fontes, 352 págs., R$ 45), no qual esses três
textos são reunidos pela primeira vez, explica que “perfeição” significava
reproduzir com palavras aquilo que os anarquistas entendiam por tecido da
vida.
Compor, fazer versos e escrever dramas eram consideradas tarefas essenciais
ao movimento. E os autores se dispunham à luta sem talento natural para as
letras. Fóscolo era o mais literário entre os três. Escrevera três romances
que retratavam “fotograficamente” problemas sociais provocados por uma
“sociedade retrógrada e injusta”, ele que fora menino órfão, trabalhara com
os escravos nas minas e delas fugira para viver de teatro como mambembe.
Casado, estabeleceu-se na farmácia do sogro e instruiu o povo.
Spagnolo e Catallo chegaram à América a partir da segunda metade do século
XIX destinados à lavoura e mais tarde à indústria. Em sua bagagem cabiam as
ideias de revolução aprendidas na Europa. Spagnolo, de quem pouco se sabe,
foi vidreiro, depois alfaiate no Belenzinho. Catallo trabalhava numa oficina
de “calçados Luís XV”, quando um companheiro o convidou a integrar o amador
Grupo Teatral da União dos Artífices em Calçados.
O Semeador, peça escrita entre 1905 e 1906, teve encenações
documentadas na capital paulista e no interior até pelo menos os anos 1920.
Ela mostra os proprietários das fazendas como predadores da natureza
inconformados com a Abolição da Escravatura. A Bandeira Proletária
não idealiza os cenários. Os ambientes são feios como os arredores das
fábricas. O personagem Paulo espera se casar com a lavadeira Rosa, mas o
industrial rico está de olho nela. Uma Mulher Diferente é comédia
dramática, a mais original entre as três, por pregar o amor livre na década
de 1940. “O matrimônio destrói a candidez e a beleza que envolve as almas
que se querem bem”, escreve Pedro Catallo, seu autor.
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Carta
Capital) |