Dois estudos investigam os sentidos social,
psicológico e cultural das cidades no Renascimento e no Século
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REGINA MEYER
ESPECIAL PARA A FOLHA
As cidades estão na ordem do dia, sobretudo as grandes
cidades. Qual será a explicação, ou melhor, as explicações para
esse protagonismo?
Uma hipótese, entre outras, é que as cidades possuem
atributos concretos por meio dos quais é possível avaliar as
fortes e abrangentes transformações que estão em andamento em
todas as esferas da organização da sociedade.
É no interior das cidades que estão se reorganizando as
atividades produtivas, cujas dimensões espaciais, sociais e
culturais ganham forma.
Seu caráter intrinsecamente ambivalente e material é,
justamente, o tema de dois livros que se situam no interior de
um grande arco de tempo que tem o ponto de partida no século 15
e o de chegada na primeira década do século 21.
Estão aí presentes cinco séculos decisivos para a história da
cidade.
Nos dois extremos desse percurso situam-se "A Cidade do
Primeiro Renascimento", de Donatella Calabi, arquiteta e
professora no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza,
e "Confiança e Medo na Cidade", do sociólogo Zigmunt Bauman.
Professor nas universidades de Leeds e Varsóvia, é um dos
mais profícuos autores da atualidade, com 17 livros já
publicados no Brasil.
Pontos distintos
Embora muito diferentes nas suas abordagens, ambos se situam
em pontos distintos de um processo marcado por mudanças no
quadro físico que as cidades experimentaram.
Numa ponta situa-se o período identificado como primeiro
Renascimento, patrocinado por príncipes que entenderam e
exerceram com energia o poder a partir da edificação de espaços
urbanos "mais organizados" no século 15.
Na outra, os espaços da cidade contemporânea, que Bauman
aponta como pós-moderna, regidos por príncipes multinacionais e
globalizados cujas manifestações iniciais ocorreram no final do
século 20.
Enquanto Calabi utiliza instrumentos de análise que destacam a
articulação entre os aspectos físicos e ideológicos das
operações urbanas praticadas no século 15 europeu, Bauman aponta
para a experiência desprovida de urbanidade que caracteriza a
vida na cidade contemporânea.
Entretanto, é indiscutível que ambos analisam de forma
distinta um mesmo tema: as relações entre cidade e a sociedade.
Nos dois casos fica evidente o acerto da análise de Manuel
Castells [sociólogo espanhol] quando diz que a cidade não pode
nunca ser vista como mero reflexo da sociedade, mas o seu
principal instrumento de realização.
Percorrendo os dois livros em sentido cronológico inverso,
isto é, do texto de Bauman para o de Calabi, somos obrigados a
constatar o malogro no modo de organização e de vida nas
cidades.
Os temas atuais abordados por Bauman -o medo, a dificuldade de
convívio entre indivíduos diferentes, a mixofobia, entre outros-
revelam o considerável fracasso do "modus convivendi" nas
cidades contemporâneas. Bauman apoia seus argumentos em
importantes contribuições teóricas que procuram apreender a
natureza da cidade contemporânea.
Ele apenas aflora conceitos centrais da vida urbana
contemporânea, elaborados por autores do porte de Manuel
Castells, Richard Sennett, Robert Castel, Peter Hall e muitos
outros, produzindo um inteligente texto ensaístico de
divulgação.
Calabi segue um modelo distinto para apresentar os elementos
que compõem a cidade e o ideário urbano e político utilizado no
século 15.
Ela descreve o remanejamento de velhas estruturas medievais e
as adaptações que inauguram as manifestações da cidade moderna.
Deixa bem claro, embora enfatize a dimensão urbana, o quanto
naquele momento a cidade foi "uma razão de Estado", como aponta
Walter Benjamin.
Comprometida com uma abordagem acadêmica, Calabi explora os
atributos físicos, espaciais, simbólicos e teóricos que
presidiram a construção da cidade da primeira fase da
Renascença.
Técnicas de construção
Acompanhamos no seu texto a história dos modos de utilização
das técnicas construtivas em favor da vida urbana.
No interior do perímetro das muralhas medievais, cuja função
se extinguiu com a invenção da pólvora, ganha força um conjunto
de transformações físicas que modificavam profundamente a
organização urbana.
Retificação e alargamento das tortuosas ruas medievais,
abertura de praças e edificação de pontes abrem espaço para a
vida coletiva, reorganizam o tecido urbano medieval, buscando
torná-lo mais representativo da organização pós-medieval. Isso
implicou a criação de uma monumentalidade que colocava toda a
cidade em evidência, deixando claro que ela não é apenas a
imagem da vontade do príncipe, mas um poderoso instrumento de
seu exercício de poder.
Ambivalência
Apesar dos poucos pontos em comum no que se refere ao método
de abordagem, nos dois textos há questões que os conduzem a um
mesmo objetivo: entender o sentido da urbanidade, concebida como
experiência social, psicológica e cultural que nasce dentro do
espaço concreto das cidades.
O caráter ambivalente da cidade grafado no título do livro de
Bauman nasce justamente da necessidade de colocar a grande
cidade no centro do debate sobre o mundo contemporâneo,
admitindo todos os seus problemas.
Afinal, a confiança nelas, como defende Bauman, nasce
justamente da possibilidade de reestruturá-las como ocorreu no
século 15, quando se organizaram as primeiras manifestações da
cidade moderna, almejando formas de convívio mais harmônicas.
REGINA PROSPERI MEYER é professora na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
A CIDADE DO PRIMEIRO RENASCIMENTO
Autora: Donatella Calabi (foto)
Tradução: Marisa Barda
Editora: Perspectiva (tel. 0/xx/11/3885-8388)
Quanto: R$ 46 (208 págs.)
CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE
Autor: Zygmunt Bauman
Tradução: Eliana Aguiar
Editora: Jorge Zahar (tel.0/xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 19,90 (96 págs.)
(©
Folha de S. Paulo)
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