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A delirante provocação de Dario Fo |
04/04/2009
Foto: Divulgação
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Débora Duboc é a protagonista que produz um vídeo antes de tentar suicídio
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Jefferson Del Rios
A despedida de um suicida tem sempre algo de
sinistro. Em determinada circunstância faz
história, como no caso da Carta Testamento de
Getúlio Vargas, em 1954, e as proclamações
finais dos presidentes chilenos José Manuel
Balmaceda (1886-91) e Salvador Allende (1973).
É, também, um repositório de dados
psicanalíticos; e, surpreendentemente, pode ter
algo de tragicomédia, como Nelson Rodrigues
demonstrou em Toda Nudez Será Castigada.
Os italianos Dario Fo e Franca Rame, no entanto,
tomaram o assunto para uma delirante provocação
teatral chamada Uma Giornata Qualunque - aqui
traduzida para Um Dia (Quase Igual) aos Outros.
Neste enredo, uma mulher resolve deixar ao
marido não a velha carta folhetinesca, mas um
vídeo antes de cometer o que a crônica policial
antiga definia com "tresloucado gesto".
A descontrolada senhora arma-se de uma
parafernália eletrônica para registrar em
imagens uma lista de cobranças. Evidentemente,
sendo Fo e Rame, um casal de artistas críticos,
nada vai dar certo. Sobrará, isto sim, uma
saraivada de ironias para a paranoia
contemporânea, expressa em hábitos de consumo,
gestos sociais vazios, alienação, enfim. Os
autores recuperam os versos do malicioso samba
Jornal da Morte, de Miguel Gustavo:
"Tresloucada, seminua/ Jogou-se do oitavo andar/
Porque o noivo não comprava/ Maconha pra ela
fumar."
Nossa suicida se mete numa filmagem complicada
enquanto atende a telefonemas.
Vai-se divertir. Nesse "dia quase igual", tudo
conspira para a quase vítima ser ridicularizada
pelo seu despautério. Chegam telefonemas
carregados de cotidiano externo normal e
imprevistos esdrúxulos para que ela se sinta
risível em seus pequenos problemas. Para
arrematar o caos, não faltará um assalto
absurdo.
A que, afinal leva tudo isso? À banalidade de
uma vida sem projeto existencial. A peça é, por
esse viés, sutilmente filosófica, freudiana e
politicamente anárquica. Típica provocação
ideológica de autores que fazem a reinvenção da
comédia popular italiana (a commédia dell?arte).
Obra de difícil transposição geográfica e,
sobretudo, cultural, porque construída com a
linguagem italiana das ruas, repleta de
invenções dialetais e gírias, tudo em um ritmo
circense que pede intérpretes realmente afinados
como esse estilo. Por sorte, a tradução e
direção ficaram nas mãos de Neyde Veneziano,
talvez a maior conhecedora brasileira do teatro
da imponente atriz Franca Rama e seu marido, o
múltiplo Dário Fo, autor, intérprete, agitador
cultural e político (prêmio Nobel de Literatura
de 1997). Especialista em teatro musical e de
revista, ela conhece a dupla. Esteve com eles na
Itália e realizou, na Unicamp, uma tese de
doutorado sobre sua arte. Neyde é uma mulher
apaixonada pelo que faz, perfeccionista,
obstinada e sabe escolher com quem trabalhar. O
resultado é uma "comédia para se pensar",
absolutamente maluca, que confirma o sábio
humorista Barão de Itararé (1895-1971): "O mundo
está ficando louco, e eu também."
O espetáculo é conduzido por Débora Duboc, uma
das melhores atrizes da sua geração, aqui
submetida a um teste bem duro: o de praticamente
não ter parceiros com os quais contracenar
(exceto a cena dos assaltantes). É quase
doloroso para um intérprete, sozinho no palco,
ter de se comunicar com vozes, imagens
projetadas numa tela, efeitos que desviam sua
energia e dão pouco em troca. O desafio é maior
quando essas vozes e figuras virtuais são de
artistas tarimbados em comédia (Cláudia Mello,
Eliana Rocha, Marcelo Médici, Elias Andreatto e
Grace Gianoukas, entre outros). Pois Débora se
sai bem mesmo com a concorrência de vozes
cômicas e aparelhos de som, imagem e luz (que
podem até, eventualmente, falhar). Há ainda um
solo bem engraçado dos meliantes interpretados
pelos ótimos Thiago Adorno e Fernando Fecchio
dentro do jargão "mano-periferia".
Não é todo dia que se tem humor sustentado na
inteligência. Satirizar fraquezas humanas é uma
forma de ajudar os que se atrapalham na vida.
Pode-se interpretar esse gesto como
solidariedade.
(©
Estadão)
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