Foto: ABarata
Os italianos que sonharam implantar no
Brasil uma colônia anarquista.
Por Isabele Felici
Tradução: Edilene T. Toledo
Revisão: Sergio S. Silva
A colônia Cecília, experiência que buscou pôr
em prática os princípios anarquistas e que
nasceu em 1890 no estado do Paraná, é o aspecto
mais conhecido do anarquismo italiano no Brasil
e sua primeira manifestação. Todavia, existem
muitas impressões falsas sobre essa
experiência, uma vez que a imagem da Cecília,
que transparece nas obras sobre o anarquismo e
nas obras de ficção que lhe foram consagradas,
deve-se mais à lenda do que à realidade.
Este artigo concentra-se, o mais precisamente
possível em função da documentação recolhida,
sobre a forma pela qual desenvolveu-se essa
experiência de comunismo anarquista e tem,
portanto, por objetivo estabelecer
definitivamente a distinção entre lenda e
realidade.
É muito provável que, se a lenda não se
tivesse apoderado da história da Cecília,
transmitindo uma versão desviada da verdade, a
experiência comunitária não teria impressionado
tanto as imaginações. De fato, apesar da
presença de alguns antigos colonos da Cecília no
movimento anarquista de São Paulo e na imprensa
anarquista no Brasil, nem a colônia, nem seu
fundador, Giovanni Rossi, deixaram traços
profundos na história do movimento operário, nem
italiano, nem brasileiro.
Em compensação, esqueceu-se freqüentemente
que a colônia Cecília é também fortemente ligada
à história da imigração italiana no Brasil,
porque, em muitos aspectos, a experiência dos
colonos da Cecília é muito próxima da de outros
emigrantes italianos do fim do século XIX. A
Cecília nasceu, aliás, no momento em que a vaga
de emigração italiana em direção ao Brasil era
mais forte.
A personagem do fundador da Cecília é
indissociável da história da colônia. Toda a sua
atividade política gira em torno de um projeto
de vida comunitária. Desde a sua adesão à
Internacional, em 1873, aos dezoito anos de
idade, Giovanni Rossi propôs um projeto de vida
comunitária na Polinésia. Os numerosos artigos
que ele apresentou na imprensa italiana,
anarquista e socialista, os apelos que ele
lançou às associações, federações, partidos,
suscetíveis, a seus olhos, de ajudá-lo, tinham
todos por objetivo expor seu projeto de
comunidade ou, após 1890, apoiar a experiência
em curso no Brasil. Com o mesmo objetivo de
propaganda, Rossi funda, além disso, seu próprio
jornal, Lo Sperimentale, em 1886. Ele desenvolve
igualmente seu projeto de comunidade em um
romance utópico, Un Comune Socialista, no qual a
personagem feminina tem por nome Cecília - que
teve cinco edições entre 1875 e 1891.
A atividade de Rossi é completamente marginal
no contexto político italiano da época1.
De fato, por mais que ele seja exposto, como
todos os membros da Internacional no último
quarto do século XIX, às repressões que
assolavam então a Itália, Giovanni Rossi fica à
margem do grande debate político que divide
socialistas e anarquistas e propõe uma terceira
via, científica esta, para resolver o problema
social, a do "socialismo experimental".
A posição de Rossi não atrai simpatizantes
nos meios políticos italianos. Nem socialistas,
nem anarquistas o apóiam verdadeiramente, tanto
durante os anos que ele passou na Itália, como
durante a experiência da Cecília. Filippo
Turati, uma figura importante do socialismo
italiano, escreve, em março de 1891, no jornal
Critica Sociale:
"Que alguns pioneiros vão longe, levados
pelas asas do desejo, em direção à ilha
encantada dos seus sonhos, Robinsons da idéia -
está bem, nós não vamos querer censurá-los, nós
desejamos a eles ventos propícios e tenacidade
na fé. Mas o nosso lugar, o lugar da grande
maioria dos lutadores é aqui, na velha
civilização, em meio às suas dores, às suas
vergonhas, às suas contradições, onde também
arde a febre de renovação..."
A opinião dos anarquistas é ainda mais
destacada. De seu exílio londrino, Errico
Malatesta manifesta sua desaprovação em uma
carta publicada, também em março de 1891, pelo
jornal La Rivendicazione, de Forlì. Em sua
crítica, ele engloba a experiência da Cecília no
processo mais vasto da emigração. Malatesta pede
aos anarquistas que lutem contra a emigração,
essa "válvula de escape que afasta a explosão
revolucionária":
"O dever dos revolucionários é o de fazer
todo esforço para fazer compreender aos
miseráveis que a miséria existe lá como aqui, e
que o remédio, se querem, podem encontrá-lo
ficando onde estão e rebelando-se contra o
governo e contra os patrões para tomar de
volta aquilo que eles mesmos produziram."
E se ele deplora a empresa de Rossi, é não
somente porque ela afasta os melhores
combatentes, mas também porque ela "oferece aos
oprimidos uma vã esperança de emancipar-se sem
precisar fazer a revolução" . Ele não acredita
que essa experiência possa ter sucesso, nem no
plano experimental, nem no econômico e ordena
aos revolucionários que não sigam Rossi se não
querem se tornar por sua vez desertores:
"De qualquer modo, se Rossi quer fazer o
experimento, que o faça; mas que deixe em paz os
socialistas, deixe em paz os revolucionários e
recolha os pobres trabalhadores, que ainda não
ouviram falar do socialismo. Que prefira os mais
degradados, os mais embrutecidos e faça a nobre
tentativa de elevá-los à dignidade humana, ou
melhor, de pô-los em condição de elevar-se de si
mesmos por meio do trabalho, da liberdade e do
bem-estar. (...) Que Rossi vá ao Brasil repetir
tardiamente, quando o problema social já se
tornou gigante e reclama solução urgente e
geral, os experimentos de diletante, com o qual
os precursores do socialismo encheram a primeira
metade deste século. Os revolucionários
permaneçam no seu posto de batalha. Quando a
fome pega pelo pescoço o proletariado, e a
revolução se apresenta como dilema de vida ou de
morte diante da humanidade, sair do jogo é coisa
de pusilânime. Parece-me que hoje quem parte,
deserta diante do inimigo no momento da
batalha."
Rossi não responde diretamente a essa
acusação de deserção. Ele diz simplesmente, no
balanço da experiência comunitária no Brasil que
ele redige em 1893, "Cecilia, comunità anarchica
sperimentale", que essa acusação não tem
fundamento, uma vez que, não pertencendo a
nenhum exército, não reconhecendo nem chefe nem
discípulo, os que escolheram a experiência
comunitária não podem ser considerados
desertores.
Antes de conseguir fundar uma colônia
anarquista no Brasil, Rossi lutou durante anos
para que seu projeto se realizasse na Itália.
Ele fez diversas tentativas, como a de Stagno
Lombardo, uma aldeia do norte da Itália, em uma
propriedade chamada Cittadella. Essa tentativa,
que durou cerca de dois anos, termina em
fracasso, em novembro de 1889. A decepção e a
impaciência de ver seu projeto de vida
comunitária enfim realizado, fazem com que Rossi
conceba a idéia de embarcar para o Novo Mundo.
Na edição de 1891 de seu romance Un Comune
Socialista, ele conta como lhe nasceu essa
idéia:
"Lá pelo fim de 1889, depois que um ensaio
imperfeito em Stagno Lombardo não tinha
correspondido às minhas esperanças, eu tinha me
decidido a ir para uma das duas colônias
coletivistas fundadas recentemente na América do
Norte - Kaweah na Califórnia ou Sinaloa no
México - quando Achille Dondelli de Brescia, em
seu nome e no de outros companheiros, me propôs
de ir fundar uma colônia na América do Sul. O
leitor entenderá logo que eu aceitei com todo
aquele entusiasmo que se tem no coração aos
trinta e quatro anos."
Quando ele considera a possibilidade de
partir para o Novo Mundo, não é no Brasil que
Giovanni Rossi pensa em se transferir em um
primeiro momento: em dezembro de 1889, ele
anuncia em L'Eco del Popolo, de Cremona, que
pretende partir para o Uruguai. Alessandro
Cerchiai afirma que "ele foi impedido pela
eterna revolução entre 'Blancos y Colorados'''.
Essa afirmação, que aparece em uma carta de
Cerchiai, publicada em 1936 por uma revista de
São Paulo, Quaderni della Libertà, não é
confirmada por nenhuma outra fonte. Quanto a
Rossi, ele não dá nenhuma explicação sobre essa
mudança de destino, e sua partida para o Brasil
é muito discreta.
Foto: Depto Cartográfico
A região, no Estado do Paraná, onde os
italianos tentaram realizar o sonho
socialista.
Pouco tempo se passa do momento em que ele
decide partir e quando parte efetivamente. Na
sua precipitação, Rossi não tem tempo de
anunciar sua partida na imprensa anarquista e
socialista italiana. Por isso, mais de dois
meses após ter deixado a Itália, alguns jornais,
como La Plebe de Cremona, anunciam ainda que ele
partiu para o Uruguai.
Quando os primeiros colonos da Cecília
souberam que iriam para o Brasil, eles não
conheciam ainda o lugar exato onde seria
implantada a colônia. De fato, um jornal
brasileiro de Curitiba, Quinze de Novembro,
anuncia no seu número de 20 de março de 1890 que
o Dr. Rossi deixou a Itália no dia 20 de
fevereiro para estudar a situação agrícola dos
estados da Bahia, Pará, Minas Gerais e decidir
sobre qual o melhor lugar onde instalar as
cinqüenta famílias que deveriam chegar em julho
de 18902.
É no dia 20 de fevereiro que o navio Città di
Roma deixa o porto de Gênova, levando a bordo
Giovanni Rossi e alguns camaradas. O Città di
Roma entra no porto do Rio de Janeiro no dia 18
de março de 1890. Rossi e seus companheiros são
abrigados na Hospedaria da Ilha das Flores, o
alojamento dos imigrantes no Rio de Janeiro. Uma
semana depois, eles partem novamente em direção
ao Rio Grande do Sul, para Porto Alegre, como
testemunha o registro número 40 das entradas na
Hospedaria dos Imigrantes, conservadas no
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Rossi decide
apresentar as primeiras notícias do grupo em um
jornal anarquista francês. Eis a carta que
publica em La Révolte em junho de 1890:
"Recebemos a seguinte carta:
Porto Alegre, 22 de março de 1890
Nós pretendemos constituir aqui uma colônia
anarquista, que possa dar à propaganda uma
demonstração prática de que nossas idéias são
justas e realizáveis, e à agitação
revolucionária na Europa auxílios financeiros.
Já faz alguns anos que nós discutimos na
Itália as vantagens e os perigos que uma tal
empresa poderia apresentar; e após ter estudado
a questão, nós nos decidimos. Nós partimos às
oito do dia 20 de fevereiro, e em Gibraltar uma
família de camponeses espanhóis se juntou a nós.
Nós partiremos amanhã para Porto Alegre para
procurar um terreno propício. Nós vos
informaremos do que ocorrerá. Se alguém desejar
nos ajudar, escreva para o seguinte endereço:
Dr. Giovanni Rossi, Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, Brasil."
A carta é datada 22 de março, quando Rossi e
seus companheiros estavam ainda no Rio de
Janeiro. A viagem é retomada no dia 26 de março
no navio Desterro, que faz escala em Paranaguá
(Paraná) no dia 28 de março. É lá que descem
nossos pioneiros. Na edição de 1891 de seu
romance Un Comune Socialista, Rossi explica que
é o mal de mar que decidiu finalmente sobre a
sorte da Cecília:
"Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas o mal de
mar fazia sofrer tanto dois dos nossos
companheiros, que decidimos poupá-los de outros
cinco ou seis dias de navegação e descer aqui,
para fundar a nossa colônia social em alguma
parte do Paraná, onde sabíamos que
encontraríamos um clima ameno e saudável."
A viagem continua então por terra, idêntica
em todos os aspectos à dos outros imigrantes. Os
pioneiros da Cecília fazem novas paradas no
alojamento dos imigrantes em Paranaguá e depois
em Curitiba, onde chegam de trem com outros
imigrantes italianos, quase todos acolhidos por
parentes e amigos. O escritório da Inspetoria de
Terra e Colonização encaminha-os em direção ao
distrito de São Mateus, banhado pelo rio Iguaçu.
No dia primeiro de abril, Giovanni Rossi e
Evangelista Benedetti partem para fazer o
reconhecimento do terreno. Eles percorrem cem
quilômetros em "um instrumento de tortura que
chamam diligência". A pequena cidade de
Palmeira, onde eles chegaram após dois dias de
viagem, agradou muito a Rossi, que recenseou
todas as vantagens que ela apresentava, da
igreja à agência de correio e telégrafo,
passando pelo clube literário e a sociedade de
teatro, e, sobretudo, "o que mais a torna
admirável, um grupo de pessoas notáveis, algumas
das quais fizeram seus estudos nos Estados
Unidos da América do Norte ou na Europa, mas que
demonstram todos muita inteligência e excelente
cortesia.3
Entre as pessoas notáveis, aparece o Dr.
Franco Grillo, o médico de Palmeira, que se
torna o amigo da Cecília e seu apoio no local.
Rossi e Benedetti se instalam finalmente em uma
velha cabana no bosque próximo a Santa Bárbara,
a dezoito quilômetros ao sul de Palmeira.
Passada uma semana, juntam-se a eles os
companheiros que haviam ficado em Curitiba. É
então que começa, nos primeiros dias de abril de
1890, a história da Cecília.
O número exato dos primeiros colonos não é
conhecido, porque as cifras antecipadas por
Rossi nos diferentes textos que ele redigiu - e
por Amilcare Cappellaro, que se junta à Cecília
no fim de 1892, e se torna então o
correspondente regular do jornal anarquista
francês La Révolte, - contradizem os registros
dos barcos aportados no Rio de Janeiro e os
registros das entradas na hospedaria dos
imigrantes. Na carta, já citada, que Rossi
enviou a La Révolte, quando tinha acabado de
desembarcar no Rio em março, ele informa que seu
grupo é constituído de oito pessoas, às quais se
juntou, durante a viagem, uma família espanhola.
Posteriormente ele não fez mais alusão a essa
família espanhola. Em contrapartida, em 1891, na
quinta edição de Un Comune Socialista, quando
Rossi dá os nomes dos companheiros que viajaram
com ele, ele não cita mais que cinco:
Evangelista Benedetti, Lorenzo Arrighini,
Giacomo Zanetti, Cattina e Achille Dondelli. No
registro consultado no Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro, os nomes de Achille e Cattina
Dondelli não aparecem entre os nomes dos
passageiros do Città di Roma, mas ali figura um
outro nome, o de Elisabetta Arrighini, não
mencionada por Rossi4. Amilcare
Cappellaro, fazendo para um número de outubro de
1892 do La Révolte, o histórico da Cecília,
escreve que "a colônia socialista Cecília foi
fundada pelo companheiro Rossi e três outros, no
mês de abril de 1890."
Cappellaro não leva em conta, em seus
cálculos, nem Cattina Dondelli, nem Elisabetta
Arrighini; entretanto, havia realmente uma
mulher no início da Cecília, uma vez que Rossi
nos diz que "a caixa social era confiada, por
pura formalidade, à única mulher da comunidade."
As fontes indicam, portanto, que os Dondelli
não viajaram no Città di Roma. Fora esse
detalhe, a viagem desse pequeno grupo
corresponde bem ao que diziam os relatos de
Rossi e Cappellaro: os pioneiros vêm preparar a
experiência e a vinda das cinqüenta famílias que
prometeram juntar-se a eles.
O seu procedimento não é aventureiro: eles já
estão informados sobre a geografia, as condições
climáticas, os hábitos no domínio da agricultura
do país que vai acolher a colônia e seguem o
itinerário habitual dos emigrantes que se
dirigem ao sul do Brasil. As páginas da edição
de 1891 de Un Comune Socialista, que Rossi
consagra à viagem dos pioneiros da Cecília,
poderiam ter sido escritas por qualquer pessoa
que emigrou para a América do Sul no fim do
século passado. Nelas, Giovanni Rossi conta a
viagem desde o porto de Gênova, o transporte de
barco até o Rio de Janeiro, as paradas nas
diferentes hospedarias para emigrantes nas quais
ele permaneceu com seus camaradas, os primeiros
passos para a obtenção de uma terra. O documento
é muito interessante porque ele é de uma grande
precisão. Rossi é um observador escrupuloso: ele
chega até mesmo a medir "conscienciosamente",
com a ajuda de seus companheiros, as salas
(refeitório, dormitórios) que acolhem os
emigrantes.
Na mesma edição, ele conta, em alguns
parágrafos, os primeiros meses de existência da
Cecília, de abril a dezembro de 1890. Ele se
refere com um tom alegre aos problemas
administrativos da comunidade nascente; descreve
com afeição os animais domésticos que
compartilham a vida da colônia e evoca, mas sem
se tornar pesado demais, os aspectos negativos
da vida na Cecília: essencialmente a pouca
variedade da alimentação e o excesso do
trabalho. Ele não se detém sobre o fato de que a
vida que ali se leva é muito rude, que as
refeições são frugais, os cobertores sempre
insuficientes, o trabalho difícil; ele fica
feliz de anunciar que a vida comunitária, apesar
de alguns "incidentes desagradáveis", das
querelas e do ciúme do marido da única mulher do
grupo, desenvolve-se de maneira satisfatória,
"sem regulamentos nem chefes".
Longas passagens desse texto são também
consagradas aos meios de transporte, à
agricultura, à criação de animais e ao problema
dos animais perigosos, tudo apresentado de
maneira muito positiva. Eis aqui como Rossi
conclui a passagem consagrada aos animais
perigosos que, segundo uma idéia falsa, seriam
muito numerosos nessas regiões distantes, quando
ele mesmo não os havia ali encontrado, devendo,
para redigir seu artigo, consultar um amigo
instalado há vários anos no Brasil:
Foto: Prefeitura de Palmeira
A colônia estaria localizada no atual
município de Palmeira.
"Da minha parte eu não saberia concluir
melhor esta assustadora enumeração de flagelos,
senão declarando que na nossa colônia vive-se
muito bem, tem-se um apetite de lobo e só se vê
em torno de nós gente sã e contente."
A publicação desse texto é um elemento da
campanha de propaganda à qual se dedica Rossi no
fim de 1890, quando ele volta para a Itália. Ele
desembarca em Gênova, no dia 25 de novembro de
1890, com a intenção de recrutar colonos
novamente, uma vez que as cinqüenta famílias que
haviam prometido alcançar os pioneiros em julho
de 1890 não mantiveram a palavra.
Pleno de detalhes concretos sobre o local que
acolhe sua colônia experimental, da qual ele
compartilhou a vida de abril a setembro ou
outubro de 1890, Giovanni Rossi põe todo o seu
esforço para obter apoio e recrutar novos
colonos nas cidades que ele atravessa: Pisa,
Cecina, Livorno, La Spezia, Turim, Milão,
Brescia.
A leitura desse relatório deixa,
especialmente na versão revisada que apareceu,
de maio a setembro de 1891, na revista La
Geografia per Tutti de Bergamo, uma impressão
muito próxima da que se teria lendo um texto de
propaganda sobre o Brasil e suas maravilhas,
distribuído pelo governo brasileiro da época ou
de alguma companhia de navegação ansiosa por
encher os seus navios de emigrantes. O desejo de
atrair e de seduzir novos participantes
influenciou Giovanni Rossi na sua redação, e o
incitou a adotar um tom entusiasta e
tranqüilizador.
Rossi é então convencido de que a experiência
está em boa via, visto que as notícias que o
alcançam da Cecília são as mais encorajadoras.
Dante Venturini, um colono originário de Cecina,
encanta-se com o que encontra chegando ao local
no dia 3 de abril de 1891 e conta isso em uma
carta que escreve a Rossi e que este publica
durante sua permanência na Itália, em anexo à
edição de 1891 de seu romance Un Comune
Socialista:
"Vocês não podem acreditar o quanto é boa a
nossa situação, que vai melhorando sempre mais.
Além do mais, temos uma água excelente, enfim,
tudo é melhor do que o Dr. Rossi nos havia
descrito. Quanto aos animais selvagens, nós
ainda não vimos nenhum, exceto
um pequeno macaco que foi morto por um dos
nossos companheiros. Por ora, os nossos
alimentos são: arroz, feijão, polenta, porco,
carne de vaca, salame, café, leite, tudo em
grande abundância.O pão é pouco, porque é
preciso comprá-lo, mas assim que nós
encontrarmos o material e a cal para fazer um
forno, então deixaremos de come polenta e
passaremos ao pão."
A propaganda levada por Rossi é eficaz e os
colonos que ele recruta na Itália chegam, como
Venturini, ao longo do ano de 1891. Eles começam
a deixar a Itália no início de 1891. Em
fevereiro, vários grupo embarcam em Gênova em
direção a Palmeira. Seis famílias originárias de
Livorno partem no dia 3 de fevereiro de 1891, no
navio Vittoria. Entre eles está Eugenio Lemmi.
Um segundo grupo, mais numeroso, dezesseis
famílias e alguns solteiros, originários de
Cecina, Gênova, Turim, Milão e Brescia, embarca
no dia 14 de fevereiro de 1891. No dia 10 de
março, é a vez de treze famílias e sete homens
solteiros de Florença, Poggibonsi, La Spezia e
Milão. Francesco e Argia Gattai, os avós de
Zélia Gattai, e suas crianças, fazem parte desse
grupo que viajou no dia 10 de março de 18915
- e, portanto, não partiram a bordo do Città di
Roma, contrariamente ao que ela diz em seu livro
de memórias, Anarquistas, Graças a Deus.
Essa observação não diminui em nada o valor
do testemunho de Zélia Gattai e a carga emotiva
que contém o relato, particularmente comovente,
que ela faz da viagem de seus avós: a última
criança da família Gattai, um recém-nascido,
morre de fome na chegada ao porto de Santos.
Outros pequenos grupos partem ainda no dia 28 de
março, no dia primeiro e 23 de abril. Cada grupo
parte com sementes, utensílios e instrumentos de
trabalhos, alguns dos quais provenientes do
Museo Civico, de Gênova, e do jardim botânico da
Universidade de Pisa. Levam também duas caixas
de "bons livros" coletados pelos socialistas de
Critica Sociale.
Os colonos recrutados por Rossi tinham sido
precedidos por algumas famílias de camponeses
chegados logo após a partida de Rossi. Ele é
informado por Grillo, que lhe escreve de
Palmeira em janeiro de 1891. A carta de Grillo
aparece também em anexo na edição de 1891 de Un
Comune Socialista:
"No dia 31 de dezembro, chegou aqui
repentinamente o companheiro Artusi com duas
famílias, esses também companheiros; entre
grandes e pequenos são treze pessoas: eu os fiz
conduzir à Colônia, onde eles se acomodaram o
melhor possível, enquanto se constroem novas
casas. As duas famílias de Roncadelle estão já
em Montevidéu, e esperamos que daqui a uns
quinze dias eles possam estar aqui." (continua
na parte II)
1 Sobre os primeiros passos de Giovanni Rossi
no contexto político italiano no último quarto
do século XIX, bem como sobre o conjunto do
período, ver minha tese de doutorado defendida
em 1994, na Université de la Sorbonne Nouvelle
Paris III, Les Italiens dans le mouvement
anarchiste au Brésil. 1890-1920.
2 Citado por Helena Isabel Mueller, em sua
tese em História intitulada Flores aos rebeldes
que falharam. Giovanni Rossi e a utopia
anarquista: colônia Cecília, defendida na
Universidade de São Paulo, em 1989.
3 ROSSI, Giovanni. "Al Paraná. Appunti di
viaggio e di colonizzazione". La Geografia per
Tutti, n.7, Bergamo, 15 de agosto de 1891. Na
continuação do texto, todas as informações
referentes à viagem de Rossi e aos inícios da
colônia Cecília são tiradas, salvo indicação
contrária, dos balanços que ele mesmo fez em
1891 e 1893, em Un Comune Socialista, Livorno,
Tip. E. Favillini, 1891; e Cecilia, Comunità
Anarchica Sperimentale: un episodio d'amore
nella colonia Cecilia, Livorno, Biblioteca del
Sempre Avanti, n.7, Tip. S. Belforte, 1893.
4 As fontes italianas confirmam esse ponto,
visto que não apresentam mais nenhum traço dos
Dondelli na nota do Ministério do Interior que
relaciona os socialistas que tinham embarcado no
"Città di Roma", no dia 20 de fevereiro de 1890.
Ministero dell'Interno. Direzione Generale della
Pubblica Sicurezza, Ministero degli Affari
Esteri, Roma, 27 de fevereiro de 1890. Archivio
Storico del Ministero degli Affari Esteri, Roma,
Serie Polizia Internazionale, pasta 47.
5 Cópia do interrogatório de Francesco Gattai
por um funcionário da polícia de Gênova, 27 de
novembro de 1902, Archivio Centrale dello Stato,
Roma, Casellario Politico Centrale, pasta 2307,
fascículo Francesco Gattai.
Para ler a sequência do
Artigo de Isabele Felici
(partes II, III e IV-Final), visite o site
Oriundi, nos seguintes endereços:
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