Autor de comédias ágeis e desinibidas, e crítico da sociedade italiana, Dino Risi morreu há uma semana
Sérgio Augusto
Houve um tempo em que o cinema não era apenas sinônimo de prazer, pleasure e plaisir, mas também de piacere. Dezenas de anos nos separam de uma convivência prazerosa e constante com os filmes italianos, que até nós chegavam quase sempre pela Art-Films. Como era gostoso o cinema italiano! Esqueçam Visconti, Fellini, Antonioni, mestres de outra dimensão, permanentes e acessíveis até em DVD. O cinema italiano a que me refiro é o que poderíamos comparar a uma trattoria: o cinema popular dos anos 1950, a réplica cômica ao sombrio neo-realismo do pós-guerra, o apogeu da chanchada (ou melhor, da cianciata), das comédias de costume, dos filmes de episódios - um cinema polpettone, rodado nos estúdios de Cinecittà e em grande parte produzido pela Titanus-Film, que, infelizmente, tornou-se inacessível, quase invisível, mais lembrança que relíquia de cinemateca e sessões nostalgia.
Totò, Vittorio De Sica, Vittorio Gassman, Alberto Sordi, Nino Manfredi, Ugo Tognazzi, Gina Lollobrigida, Silvana Mangano, Sophia Loren - essas estrelas ficaram. Mas quem ainda se lembra das belas e voluptuosas Silvana Pampanini, Sylva Koscina, Marisa Allasio (a Susanna tutta panna), Lucia Bosè, Anna Maria Ferrero, Antonella Lualdi, Rossana Podestà, Léa Massari, Virna Lisi, Liana Orfei e outras tantas moglie pericolose? E de Aldo Fabrizzi e Peppino de Filippo? E dos devassos irmãos Mario e Memmo Carotenuto? E daquele enxame de roteiristas nos créditos de cada filme de três, quatro, até 20 episódios (acrescidos do indefectível Cesare Zavattini)? E das buliçosas trilhas musicais de Armando Trovaioli e Riz Ortolani?
Como a nossa chanchada, aquele cinema foi desaparecendo aos pouquinhos, vítima, entre outros fatores, de uma elefantíase artificialmente estimulada pelo expansionismo hollywoodiano, que, se por um lado logrou manter funcionando os estúdios de Cinecittà, por outro acabou com a autonomia local. Atolada em dívidas, a Titanus fechou as portas em 1964.
Vez por outra, nas últimas décadas, um símbolo daquela época desaparecia, promovendo uma fugaz hora da saudade e íntimas indagações do tipo 'que fim levou' fulano ou fulana? A maioria ou morreu (relativamente jovem: La Mangano aos 59 anos, La Koscina aos 61), ou sumiu de cena (a gostosona Marisa Allasio trocou a tela por um conde riquíssimo em 1958), ou envelheceu e aderiu à teledramaturgia (casos de Lisi, Massari, Orfei).
Sábado passado, mais um símbolo daquela era fagueira se foi, sem nos dar susto (andava doente havia meses), apenas surpresa em quem já o acreditava morto. A seis meses de completar 92 anos, o lombardo Dino Risi viveu menos que os kinossauros Allan Dwan e Billy Wilder, que chegaram aos 96, mas já não filmavam desde os 75. Risi conseguiu trabalhar até os 85.
Vimos seu antepenúltimo filme, Jovens, Belos e Apaixonados (Giovani e Belli), rodado em 1996, fajuta gigolagem de Pobres Mas Belas (seu primeiro hit, lançado em 1957), e que ele só aceitou fazer porque precisava de dinheiro. Risi vinha de seis anos (1987-1992) e seis experiências na televisão (uma das quais a refilmagem do romance La Ciociora, de Alberto Moravia, também estrelada por Sophia Loren), e só faria depois um dos episódios de Esercizi di Stile (sobre o fim de uma história de amor contada em 14 estilos diferentes) e, em 2002, Le Ragazze di Miss Italia (sobre os bastidores do concurso Miss Itália), este para a TV, o mesmo veículo que na década anterior o trouxera a Paraty para a gravação de uma minissérie.
Mesmo na decadência, o epicurista Risi sempre procurou cercar-se de belas atrizes. Era, sob esse aspecto, um Walter Hugo Khouri milanês. À exceção de Gina Lollobrigida, todas as deusas do cinema italiano (de Pampanini a Monica Bellucci) foram dirigidas por ele. Sem contar as que lhe vieram de fora, geralmente em arreglo de co-produção, como as francesas Mylène Demongeot, Catherine Spaak, Michèle Mercier, Claudine Auger e Catherine Deneuve, as americanas Ann-Margret e Pamela Tiffin, a austríaca Senta Berger, a alemã Ingeborg Schõner e a finlandesa Anna Falchi.
Atrás das câmeras também se cercava do que de melhor o cinema italiano lhe podia oferecer. Sobretudo do primeiro time de comediantes (Totò, De Sica, Gassman, Sordi, Tognazzi, Manfredi) e de roteiristas habilidosos, com os quais colaborava estreitamente. Pelo menos um deles, Ettore Scola, consagrou-se depois como diretor. Risi adorava escrever. Foi crítico de cinema em Milão, Turim e Florença, no início da 2ª Guerra, e roteirista de Steno e Mario Monicelli, Alberto Lattuada e Mario Camerini. Dedicou-se, com igual volúpia, ao desenho - não como o fummetista Fellini, que recriava no papel os tipos, cenários e cenas de seus filmes, mas como um caricaturista de praça e calçada. Seu tema favorito era o mundo do cinema: dos críticos aos atores.
Já no título inequivocamente sacanas (Minha Esposa É Um Sucesso, Vejo Tudo Nu, Sexo Louco, Venha Dormir Lá em Casa Esta Noite, Sexualmente Falando), suas comédias eram ágeis e desinibidas, sem receio de tangenciar a pornografia, a caricatura e a escatologia, tirando fino do mau gosto e driblando o lugar-comum, mesclando o jocoso com a seriedade, a alegria de viver com a frustração e o desespero. Seus personagens riam até a beira do precipício. O riso de Risi era amargo.
Seu forte era a crítica de costumes, mais que a paródia ou a sátira escrachada, embora nestas tenha se exercitado algumas vezes, gozando a própria indústria cinematográfica, a televisão, e até a abulia dos personagens de Antonioni. Foi um dos observadores mais irônicos, implacáveis e cruéis da sociedade italiana pós-fascista. Sem uma gota de pedantismo; sem jamais descambar para o sermão ou apelar para a demagogia. O sentimentalismo fácil também o repugnava.
Ficou anos a fio sem conhecer um fracasso de bilheteria. A crítica o tratava com uma simpatia compatível com a que seus filmes, mesmo os de medíocre fatura, exalavam. Já em sua fase outonal, confidenciou: 'Fiz mais de 50 filmes porque tinha certeza de que ao menos uma obra-prima eu acabaria realizando.' E realizou. Em 1962. No momento certo.
Na virada para a década de 1960, quando o poder absoluto dos democristãos teve de abrir espaço para a coalização centro-esquerda, a Itália acordou no vórtice de um milagre econômico, de um tournant social. Surgiu ali a Itália da 'dolce vita', dos festivais musicais de San Remo, e do boom generalizado promovido pela abundância de mão-de-obra barata, pelo desemprego em declínio e a expansão industrial, pela desrepressão clerical e a efervescência editorial, pela sofisticação do gosto nos centros urbanos.
Aparentemente, o retrato de corpo inteiro dessa nova Itália já estaria traçado no cinema pós-neo-realista de Rossellini, Visconti, Antonioni e Fellini, nas brincadeiras de Monicelli com o picaresco lúmpen, nas sátiras de Pietro Germi ao moralismo e ao machismo sicilianos, na recuperação histórica do banditismo social feita por Francesco Rosi, nas crônicas sobre os anseios da juventude alinhavadas por Lattuada, Ugo Gregoretti e Francesco Maselli, nos desvios da câmera de Pasolini pela periferia romana, nas maliciosas patuscadas balneárias apinhadas de adúlteros, cornos, trambiqueiros, messalinas de laquê, e embaladas por canções de Domenico Modugno, Peppino di Capri e Ornella Vanoni. Até que Vittorio Gassman engrenou todas as marchas de sua Aurelia Sport branca, placa 329446, rompendo com o sossego do 'ferragosto' romano. Faltava um detalhe naquele retrato.
Faltava a tragicomédia - síntese que ultrapassasse os limites de todas as outras. Faltava juntar Antonioni e Godard, os dois pilares da modernidade, sem perder o rebolado. Com Aquele Que Sabe Viver (Il Sorpasso) Risi deu o pulo-do-gato; como já dera ao 'inventar', cinco ou seis anos antes, o modelo das desinibidas chanchadas que por um bom tempo sustentariam a indústria de filmes no país.
Em dois dias de febricitante aventura, flertes, twist, hully gully, pequenos golpes, reencontros nostálgicos e ziguezagues pela Itália, uma dupla contrastante (o extrovertido beat peninsular encarnado por Gassman e o introvertido estudante de direito interpretado por Jean-Louis Trintignant) completa o primeiro road movie do cinema moderno. Il Sorpasso (que já saiu em DVD no Brasil) é uma proeza: um ensaio em alta velocidade sobre os três temas básicos de Antonioni (a solidão, a incomunicabilidade e a alienação), com muito riso e muito siso; a obra-prima que o cineasta tinha certeza de que um dia faria.
Risi não foi o inventor da comédia de episódios, apenas um de seus primeiros artífices. Sua terceira experiência como diretor, Amor na Cidade (1953), já pertencia à espécie. Tinha sete episódios, dirigidos por Antonioni, Fellini, Lattuada, Carlo Lizzani, Maselli e Zavattini. O de Risi, Paradiso per 4 Ore, aborda com justa ternura os 240 minutos de felicidade que um baile dominical proporciona a um grupo de casais sem acesso a outras formas de lazer. Seu recorde foi Os Monstros (1963), com um total de 20 episódios, alguns durando menos de um minuto. Uma pândega para misantropo nenhum botar defeito.
Assim que concluiu sua participação em Amor na Cidade, Risi fez sua primeira viagem ao Brasil. Convidado por Luciano Salce e Fabio Carpi (roteirista de Sinhá Moça, Uma Pulga na Balança e Floradas na Serra), passou três meses nos estúdios da Vera Cruz. Sem ter o que fazer, voltou para a Itália ao cabo de três meses, para reiniciar uma carreira que muito teria honrado o cinema brasileiro.
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(©
Estadão)