Autor do best-seller "O Nome da Rosa", Umberto Eco ataca o papa Bento 16 e Silvio Berlusconi e alerta que o excesso de informações está matando a memória
JUAN CRUZ Umberto Eco é um homem quase feliz.
Um professor que desfruta a companhia de seus alunos e que agora, aos 76 anos, aposentado de suas múltiplas ocupações acadêmicas [desde 2007, na Universidade de Bolonha], continua a trabalhar "ainda mais do que antes", dando aulas doutorais, escrevendo livros ("nem meia palavra sobre o livro que estou escrevendo agora!", exclamou, colocando o dedo sobre os lábios), participando de congressos, lendo histórias em quadrinhos ("hoje são intelectuais demais") e rindo como um garoto.
Quando o fotógrafo lhe pediu que posasse com um "borsalino", o tipo de chapéu que tornou mundialmente conhecida sua cidade natal, Alexandria, Eco se divertiu como se tivesse voltado ao quintal da casa de sua família, ao lugar que está cada vez mais próximo de sua memória, como se a idade o fizesse recuperar os sabores perdidos da adolescência.
Vive numa casa belíssima, repleta de livros e exemplares antigos, muitos dos quais consegue numa livraria perto dali, na via Rovello, em Milão.
Todas as tardes, quando está na cidade e não viajando, esse homem, que já se queixa de que tiram o sal de sua comida e afugenta os doces como se fossem uma tentação maldita, vai até essa livraria e sebo para vasculhar catálogos e procedências, antes de ir tomar seu aperitivo num café onde é conhecido como "il professore".
Perto da livraria fica a barbearia de Antonio, que colocou um retrato de Eco com seu borsalino na porta de vidro; assim, Eco se vê retratado enquanto Antonio lhe faz a barba. Barba que já tem os fios brancos de um homem que se diz velho, mas que conserva o ritmo de vida que o tornou legendário entre os acadêmicos de todo o mundo, por sua atividade e a diversidade de gostos.
Umberto Eco continua sendo esse homem feliz ("quase feliz -quem se diz totalmente feliz é um cretino!") que canta, recita, conhece citações inteiras de memória, que se interessou antes dos outros pelas novas tecnologias, que as utilizou em seus trabalhos -o mais recente é "Quase a Mesma Coisa", sobre tradução-, embora mantenha o celular quase sempre desligado.
No entanto usa o e-mail obsessivamente, como se fosse um prolongamento natural das conversas.
Quando bate papo, ainda é aquele homem tímido que teme cometer alguma gafe -"se falo demais, é para preencher os momentos de silêncio"-, mas, quando surge um assunto que o diverte, sua gargalhada enche o cenário.
Escreveu "O Nome da Rosa", sucesso mundial absoluto, e abriu as portas da fama como ensaísta com "Apocalípticos e Integrados", mas continua a acreditar que a comunicação só é digerida se aquele que a emite é capaz de colocar-se na altura daquele que o ouve.
Por isso, tanto ao conversar quanto em seus livros sempre entremeia suas reflexões ou apologias com piadas.
Eco continua a estudar; quando o deixamos, ele ia para sua casa, talvez para ocupar-se de Carlos Magno ("Diga Carlos Magno, assim vão pensar que escreverei sobre ele em meu próximo livro, e começará o boca-a-boca"). Sempre divertido e sempre quase feliz.
FOLHA - Há uma cena em sua vida, quando toca trompete para os "partigiani" [movimento antifascista], aos 13 anos, na praça de Alexandria, que transmite felicidade... O sr. sempre parece estar tão feliz!
UMBERTO ECO - Aqui há duas coisas: aquele garoto e a felicidade. São diferentes, não podem coincidir. Não acredito na felicidade -estou lhe dizendo a verdade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou feliz por completo -sempre preciso fazer outra coisa.
Mas admito que na vida existem felicidades que duram dez segundos ou meia hora, como quando nasceu meu primeiro filho -naquele instante, eu estava feliz. Mas são momentos muito breves. Alguém que é feliz a vida toda é um cretino. Por isso, antes de ser feliz, prefiro ser inquieto.
Aquele menino é o que irá aparecer em "O Pêndulo de Foucault", e aquele foi um momento feliz, sem dúvida, mas não estou certo se o foi realmente naquele momento ou no momento em que o estava narrando. Existem momentos de felicidade quando você consegue expressar alguma coisa que o deixa contente.
Além disso, enquanto contava sobre aquele menino, eu estava feliz porque -sei bem que é uma afirmação muito reacionária- acredito que a vida serve apenas para recordar nossa própria infância.
PERGUNTA - Aí entra a literatura.
ECO - É o que dizem. Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de minha infância é um momento de felicidade, mas isso não quer dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade.
A infância e a adolescência são períodos muito tristes. As crianças são seres muito infelizes. Talvez eu, enquanto tocava trompete, com medo de que fosse a última vez em que tocaria aquele instrumento, tenha sido um menino infeliz.
Sinto-me feliz agora, ao lembrar disso, e talvez seja essa a razão pela qual escrevo, para encontrar esses momentos muito breves de felicidade que consistem em relembrar momentos da própria infância. Sim, é por isso que escrevo.
PERGUNTA - E é para isso que se envelhece...
ECO - Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de uma multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas.
Noutro dia me veio à mente o nome de meu dentista de quando eu tinha oito ou nove anos. Não apenas me lembrei do dentista, mas também do técnico que o ajudava. Eram o doutor Correggia e o senhor Romagnoli. Não sei, mas estava contentíssimo em voltar a pensar em meu dentista, de quem tinha me esquecido completamente. Por isso, vou ao encontro de minha velhice com muito otimismo, porque, quanto mais envelheço, mais recordações tenho de minha infância.
Foi minha avó materna que me iniciou na literatura; era uma mulher sem cultura, mas tinha paixão pela leitura
|
PERGUNTA - E a cada dia o sr. chega mais perto de Alexandria, daquela sua família?
ECO - Meu pai era o mais velho de 13 irmãos. Era uma família enorme. Houve um primo que morreu aos 20 anos e que não conheci. Faça o cálculo: se cada irmão teve dois filhos, eram 26 primos, de modo que era difícil ter uma relação com todos.
Minha relação mais estreita foi com minha avó materna, que foi quem me iniciou na literatura. Era uma mulher sem cultura nenhuma -acho que fez apenas os cinco anos da escola primária-, mas tinha paixão pela leitura.
Ela era cadastrada numa biblioteca, de modo que trazia um montão de livros para casa. Lia de forma desordenada. Um dia podia ler Balzac e, logo depois, um romance de quatro vinténs, e gostava dos dois. E assim fez comigo: ela me dava, aos 12 anos de idade, um romance de Balzac e uma história de amor de qualidade ínfima. Mas me transmitiu o gosto pela leitura.
PERGUNTA - Além de sua avó, quem foram seus outros mestres?
ECO - O professor da escola primária aparece em meu romance "A Misteriosa Chama da Rainha Loana". Era um fascista que batia em seus alunos mais pobres. E, embora sempre tenha se comportado bem comigo, não era uma boa pessoa.
Em contrapartida, tive uma educadora fabulosa, embora por apenas um ano.
Era a senhorita Bellini, que ainda vive. Tem 91 anos, e, cada vez que sai um livro meu, envio um exemplar a ela. Era uma grande educadora, nos estimulava a escrever, a contar, a sermos espontâneos, e foi uma das pessoas que mais exerceram influência sobre minha vida.
PERGUNTA - Raramente se fala do sr. como professor. O que aprendeu para ensinar?
ECO - Antes de mais nada, continuo a aprender. O primeiro curso que dei como professor foi sobre a poética de James Joyce, que aparece em "Obra Aberta". Eu conhecia o argumento, mas, ao começar a dar aula, me dei conta de que não sabia nada sobre o tema.
Aprendi e continuo aprendendo. Quando se escreve um livro, pode-se dar a impressão de saber muito, mas em sala de aula é diferente. O que fiz desde aquela primeira experiência foi falar a partir dos livros que iria escrever, não dos que já havia escrito. Quero dizer que minha relação com os alunos sempre foi uma relação de aprendizagem, porque, ensinando, eu também aprendia.
PERGUNTA - Uma relação de ida e volta.
ECO - Uma relação erótica, porque a relação de um professor com um aluno é como a relação de um ator com seu público: quando você aparece em cena, é como se o estivesse fazendo pela primeira vez, e você tem a sensação de que, se não tiver conquistado o público nos primeiros cinco minutos, o terá perdido. É isso o que eu chamo de uma relação erótica, no sentido platônico do termo. Além disso, há uma relação canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência.
Há pessoas infelizes que passam os primeiros anos de sua vida com pessoas mais jovens, para poder dominá-las, e, quando envelhecem, estão com pessoas mais velhas.
Comigo aconteceu o contrário: quando eu era jovem, estava com pessoas mais velhas que eu, para aprender, e agora, tendo alunos, estou com jovens, o que é uma maneira de manter-se jovem. É uma relação de canibalismo; comemos um ao outro. Por isso não deixei de ter relação com a universidade, apesar de ter me aposentado.
PERGUNTA - E o sr. mordeu quem?
ECO - A pessoa que orientou minha tese, Luigi Paris, também Norberto Bobbio... Tenho uma boa lembrança de meus professores. Meu professor de filosofia no instituto era um daqueles que podiam interromper a aula para fazer você ouvir Wagner ou, se você perguntava sobre Freud, deixava de falar de Platão e lhe falava de Freud.
Era realmente um grande professor. Tudo isso está em meus romances, onde sempre há uma relação entre um jovem e um mestre mais velho.
PERGUNTA - Tantos alunos... Quem sabe, ao recordá-los, o sr. encontre uma história da evolução da juventude no último meio século.
ECO - Não se pode dar uma resposta porque o diálogo com os estudantes muda ao longo dos anos. A diferença ideal de idade entre professor e alunos é de 15 anos. Você tem trinta e poucos anos, e o aluno, 20.
Foi precisamente nesse período que tive uma relação mais intensa com meus alunos. Porque, se os alunos são mais jovens que isso, não existe relação, e, se a diferença for maior, já não poderemos ser amigos.
Com os alunos dos anos 1960, saíamos para jantar, dançar. Com os de agora, isso não seria possível. Sentiriam vergonha de sair com você. Em 1968 foi interessante: eu não podia ser como eles, mas não me viam como inimigo. Por isso, havia uma relação às vezes polêmica, às vezes amistosa e contínua.
PERGUNTA - Como está a Itália?
ECO - Está vivendo um dos piores momentos de sua história, com uma classe política velha e que não se renova. Houve um equilíbrio estranho entre a Democracia Cristã e os partidos de esquerda, que durou 50 anos. Agora ele se quebrou.
Cinqüenta por cento dos italianos votam em Silvio Berlusconi [líder da coalizão que venceu as eleições parlamentares do mês passado], o que é indicativo de uma profunda imaturidade política. É um momento extremamente triste, em que os elementos de esperança e entusiasmo são muito poucos. Cada vez mais vem à tona a maldição eterna dos italianos.
PERGUNTA - Qual é essa maldição?
ECO - Uma vez eu estava num táxi em Nova York, e o chofer, que era paquistanês ou indiano, me perguntou de onde eu era. Respondi que era da Itália, e ele quis saber onde ficava esse país.
Eu me dei conta de que ele tinha idéias muito vagas, como se eu estivesse falando de Suriname a um italiano, e continuou a perguntar: "Que idioma o sr. fala?" "O italiano", eu disse, e ele me perguntou: "E qual é seu inimigo?".
Perguntei o que queria dizer, e ele me respondeu que cada país tem um inimigo contra o qual luta há séculos. Respondi que não tínhamos. E ele me olhou com cara feia, porque um povo sem inimigo é pouco viril.
Mas, então, refleti: nosso inimigo é interno. Ao longo de toda nossa história, nos massacramos uns aos outros, e é também essa a nossa maneira de entender a política.
Nossa fragmentação é em 200 mil partidos diferentes, o governo de Romano Prodi [que, sem o apoio do Senado, entregou o cargo de primeiro-ministro em janeiro] caiu pela mão de seus próprios aliados, não pela ação da oposição. Nunca a Itália caiu tanto em sua inimizade interna quanto hoje.
PERGUNTA - E de onde vem isso?
ECO - A Itália se tornou um Estado unitário há 150 anos -antes, não o era. Já a Espanha o é pelo menos desde 1300 -desde El Cid Campeador!-, e França e Inglaterra têm sido unitárias.
A Itália, antes da chegada dos romanos, era uma pluralidade de tribos que falavam línguas diferentes. A Espanha tem os bascos, os catalães e os galegos, mas nós éramos 400. A cada cinco quilômetros havia uma diferença como a que existe entre a Catalunha e a Galícia.
O Império Romano unificou, mas não o suficiente. Além disso, se não tivesse existido a igreja, talvez as cidades italianos tivessem encontrado uma forma de Estado unitário pela qual se regerem.
O único Estado que restou foi a igreja, e o resto foi uma fragmentação de cidades, o que fez com que a Itália não existisse, no sentido de um Estado. Por isso existe a corrupção: porque as pessoas não pagam impostos, porque não existe o sentido de Estado.
PERGUNTA - E por que Berlusconi ganhou?
ECO - Porque ele diz que não será preciso pagar impostos! Ele fomenta a falta de sentido de Estado, porque ele próprio não o possui.
PERGUNTA - O sr. falou de um taxista. Menciono outro, o que me trouxe do aeroporto. Ele disse: "Como se pode eleger para presidente um homem que tem tantos processos pendentes contra ele?".
ECO - Ele dá por efeito aquilo que é a causa. Berlusconi conseguiu instaurar um tipo de poder fundamentado na desconfiança da magistratura e da Justiça, razão pela qual pode governar, apesar de ter processos pendentes.
Berlusconi não é o efeito nesse caso, e sim a causa. Criou algumas leis precisamente para permitir que pessoas que tenham pendências com a Justiça possam chegar ao Parlamento e ataca a magistratura continuamente. Berlusconi conseguiu chegar ao governo atacando as forças da ordem, estimulando os instintos mais baixos do italiano médio.
A relação de um professor com os alunos é canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência
|
PERGUNTA - Quer dizer que o futuro italiano...
ECO - Vai depender de que morram algumas dezenas de pessoas que já são muito velhas. É um dado biológico. E, então, teria que surgir uma nova classe política. Somos o país cuja classe política é a mais velha do mundo.
PERGUNTA - E Veltroni [Walter Veltroni, 52, líder de centro-esquerda]?
ECO - Sim, Veltroni é jovem. Tem 50 anos, mas os demais são muito velhos. Berlusconi tem mais de 70 anos. Na Itália, mesmo que alguém perca as eleições, volta a se candidatar.
É como se Al Gore voltasse a ser candidato [à Presidência dos EUA] ou se Lionel Jospin se candidatasse novamente à Presidência da França. Na Itália, contudo, sempre volta aquele de antes. É o sintoma de uma classe política que não quer renunciar ao poder.
Talvez isso contribua para que as pessoas sempre critiquem a política, para que os jovens a vejam como algo que lhes é alheio.
Os jovens de todas as épocas e de todos os países sempre se entusiasmaram com as grandes idéias de transformação, eram revolucionários, mas se mantinham dentro do famoso esquema "todos nascemos incendiários e morremos bombeiros".
Agora, com a globalização e o fim das ideologias, já não se apresentam tantas possibilidades de transformação, pois esta é planetária, e é preciso esperar as grandes tragédias ecológicas, a morte da Terra.
O grande erro das Brigadas Vermelhas [grupo terrorista de extrema esquerda, que assassinou Aldo Moro, então ex-premiê italiano] foi terem a idéia justa -embora muitos pensassem que fosse delirante- de atacar as multinacionais de todo o mundo.
Outra idéia equivocada foi a de que era preciso fazer terrorismo para criar uma revolução na Itália. Se existe o governo das multinacionais, você não vai mudar isso fazendo a revolução na Itália. O projeto comunista estava condenado ao fracasso. Já havia globalização naquela época, embora não tão intensa quanto hoje.
Agora já não existe possibilidade de transformação planejável, a não ser que ocorra como na época da queda do Império Romano, com o nascimento das ordens monásticas: você se encerrava na montanha, num convento, e tentava salvar o pouco de espiritualidade e de conhecimento enquanto o mundo desmoronava.
Hoje, pode haver jovens que vão ao deserto colocar em prática uma vida ecológica. É o máximo que se pode fazer: não mudar o mundo, mas retirar-se do mundo. Por isso ocorre o desinteresse pela política.
PERGUNTA - O terrorismo acabou na Itália, na Alemanha e na Irlanda, mas permanece na Espanha, além de surgirem outros. Qual é sua opinião sobre os terrorismos que surgiram nos anos 1990?
ECO - O desejo de "revolução", entre aspas, permanece sempre. Inclusive ali onde não se pode fazê-la, tenta-se... Em países onde existem grupos étnicos e há território suficiente para que se produzam insurreições. Na Itália, esses enfrentamentos se converteram em embates futebolísticos. E em outros territórios acontecem violência, fanatismo, superstição. Quando isso é levado ao terreno da política, já se sabe como vai terminar.
PERGUNTA - O terrorismo da Al Qaeda é a celebração do mal?
ECO - É preciso diferenciar os terrorismos. O fato de que se utilizem métodos semelhantes não os torna iguais. Os terrorismos internos não empregam formas suicidas.
O terrorismo da Al Qaeda é um fenômeno bélico. Trata-se de um grupo fundamentalista que se sente em guerra contra o mundo ocidental e que, por não poder usar os instrumentos da guerra tradicional -não haveria exércitos suficientes-, emprega o terrorismo suicida.
Isso não quer dizer que haja um enfrentamento entre o mundo ocidental e o mundo islâmico, mas existe sem dúvida uma parte do mundo islâmico que se sente em situação de inferioridade e está em guerra.
A memória é nossa identidade, nossa alma; se você perde a memória hoje, já não existe alma; você é um animal
|
PERGUNTA - O 11 de Setembro mudou o estado de ânimo do mundo. Somos menos felizes hoje.
ECO - O 11 de Setembro criou um estado de medo, mas antes já houve atentados, entraram e saíram assassinos, tivemos guerras civis.
No caso dos EUA, porém, foi a primeira vez que o país sentiu um ataque assim em sua própria carne. Os americanos não digeriram o que aconteceu e por isso vêm tendo reações irracionais, como a Guerra do Iraque, que gerou mais terrorismo do que havia.
É exatamente a reação de alguém que não estava acostumado à guerra em seu próprio território.
PERGUNTA - Existe alguma saída para esse mal-estar universal?
ECO - No momento, não. E, se eu tivesse a receita, a venderia ao presidente dos EUA por alguns bilhões de dólares!
PERGUNTA - Com certeza. E quem será ele?
ECO - E que sei eu? Os escritores não somos Nostradamus.
PERGUNTA - O que é certo é que alguns anos atrás o sr. disse que viveríamos de modo rapidíssimo, e agora vivemos em velocidades supersônicas.
ECO - E tudo o que existe agora será obsoleto dentro de pouco tempo. Até o e-mail será obsoleto, porque tudo será feito com o celular.
Talvez as novas gerações se acostumem a isso, mas existe uma velocidade do processo que é de tal calibre que a psicologia humana talvez não consiga adaptar-se. Estamos em velocidade tão grande que não existe nenhuma bibliografia científica americana que cite livros de mais de cinco anos atrás.
O que foi escrito antes já não conta, e isso é uma perda também quanto à relação com o passado.
PERGUNTA - A fé cega na internet, por outro lado, cria monstros.
ECO - Sim, parece que tudo é certo, que você dispõe de toda a informação, mas não sabe qual é confiável e qual é equivocada. Essa velocidade vai provocar a perda de memória.
E isso já acontece com as gerações jovens, que já não recordam nem quem foram Franco ou Mussolini! A abundância de informações sobre o presente não lhe permite refletir sobre o passado. Quando eu era criança, chegavam à livraria talvez três livros novos por mês; hoje chegam mil. E você já não sabe que livro importante foi publicado há seis meses. Isso também é uma perda de memória. A abundância de informações sobre o presente é uma perda, e não um ganho.
PERGUNTA - A memória é o esquecimento, como diria [o escritor uruguaio] Mario Benedetti.
ECO - É a história de "Funes, o Memorioso", de Borges: aquele que tem toda a memória é um estúpido.
PERGUNTA - Tanta informação faz com que os jornais pareçam irrelevantes.
ECO - Esse é um de nossos problemas contemporâneos. A abundância de informação irrelevante, a dificuldade em selecioná-la e a perda de memória do passado -e não digo nem sequer da memória histórica. A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe alma; você é um animal.
Se você bate a cabeça em algum lugar e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma.
PERGUNTA - Qual seria hoje o papel da informação?
ECO - Creio que perdemos muito tempo nos formulando essas perguntas, enquanto as gerações mais jovens simplesmente deixaram de ler jornais e se comunicam por meio de mensagens de texto.
Eu não posso me desligar dos jornais. Para mim, sua leitura é a oração matinal do homem moderno. Não posso tomar o café da manhã se não tiver pelo menos dois jornais para ler.
Mas talvez sejamos os resquícios de uma civilização, porque os jornais têm muitas páginas, mas não muita informação. Sobre o mesmo tema há quatro artigos que talvez digam a mesma coisa... Existe abundância de informação, mas também abundância da mesma informação.
Não sei se você se lembra de minha teoria sobre o "Fiji Journal". Eu estava em Fiji coletando informações sobre os corais para meu livro "A Ilha do Dia Anterior" [ed. Record], e em meu hotel chegava todas as manhãs o "Fiji Journal", que tinha oito páginas -seis de anúncios, uma de notícias locais e outra de notícias internacionais.
No mês que passei ali, a primeira Guerra do Golfo estava prestes a estourar, e, na Itália, o primeiro governo de Berlusconi tinha caído. Inteirei-me de tudo porque em uma única página de notícias internacionais, em três ou quatro linhas, davam-me as notícias mais importantes.
PERGUNTA - Como a internet.
ECO - Vamos à internet para tomar conhecimento das notícias mais importantes. A informação dos jornais será cada vez mais irrelevante, mais diversão que informação. Já não nos dizem o que decidiu o governo francês, mas nos dão quatro páginas de fofocas sobre Carla Bruni e Sarkozy [atual presidente da França].
Os jornais se parecem cada vez mais com as revistas que havia para ler na barbearia ou na sala de espera do dentista.
PERGUNTA - Voltemos ao princípio, professor. O que o faz feliz? ECO - Não sei. Eu já disse que não acredito nisso, mas, enfim, fico feliz quando encontro um livro que estava procurando havia muito tempo.
Quando o compro e o tenho, olho para ele e me sinto feliz. Mas a sensação acaba ali. Enquanto a infelicidade é o que me provoca o fato de não ter este ou aquele livro. A verdadeira felicidade é a inquietude. É sair à caça, não matar o pássaro.
PERGUNTA - É raro: um espanhol e um italiano, uma hora e meia de conversa, e a palavra "igreja" só foi pronunciada três vezes.
ECO - Está ocorrendo um retrocesso ao século 19, quando havia um confronto entre o Estado liberal e a igreja. De quem é a responsabilidade por isso? Não é por acaso que esse confronto tenha se acirrado com a chegada de Ratzinger [o papa Bento 16]; portanto, talvez se deva à política clerical do novo pontífice.
Sua luta contra a cultura moderna, o chamado relativismo, voltou aos grandes temas da igreja do século 19, que falava contra a revolução e contra a ciência moderna.
Hoje, emergem muitas posições anticlericais, e muitas pessoas se declaram atéias. Ninguém estava pensando nisso antes. Subiu ao trono um papa que pensa como um papa do século 19.
PERGUNTA - O sr. escreveu que Napoleão viveu apenas a Revolução Francesa...
ECO - ... E eu vivi a Segunda Guerra Mundial, a queda do fascismo, a guerra "partigiana", a bomba em Hiroshima, a queda da União Soviética e a Guerra Civil Espanhola. Há uma maldição chinesa que diz: "Espero que vivas numa época interessante". Há gerações jovens que viveram apenas épocas tranqüilas, como a da Guerra Fria.
O que eu disse sobre Napoleão com certeza está errado, porque ele não apenas viveu a Revolução Francesa como também a história de Napoleão. Rarará!
A íntegra desta entrevista saiu no "El País". Tradução de Clara Allain .
(©
Folha de S. Paulo)