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Transparência e cores: quando os mestres vidraceiros italianos se encontram no Brasil

Foto: Lino Tagiapietra

Dois consagrados mestres vidraceiros italianos nascidos em Murano, Lino Tagliapietra, que reside nos EUA, e Mario Seguso, que vive no Brasil, trocaram idéias e experiências em Poços de Caldas
 

Eles têm muito em comum. Conhecem-se há muitos anos, nasceram no mesmo lugar, são amigos mas, principalmente, compartilham a mesma capacidade artística: são mestres vidraceiros italianos, surgiram no mundo e foram criados em Murano, em Veneza,  a ilha sinônimo da arte em cristais. Um deles, escolheu o Brasil para viver há mais de 40 anos, o outro está radicado nos Estados Unidos há quase 30 anos. Pois, para desfrutar da amizade, trocar idéias e experiências sobre o ofício, eles ficaram juntos durante  uma curta temporada, encerrada na semana passada, em Poços de Caldas.

É na cidade mineira que vive Mário Seguso, 78 anos, que tem o sobrenome relacionado a uma das mais tradicionais famílias vidreiras de Veneza, cuja história se confunde com a história do vidro. Foi em sua casa, e no estabelecimento onde desenvolve sua arte, a Cá d'Oro, que o amigo Lino Tagliapietra, 74 anos, considerado um dos maiores mestres vidraceiros da atualidade, além de colocar em dia os assuntos com o amigo, parente do famoso mestre muranês Archimede Seguso, de quem foi aprendiz, teve a oportunidade de trabalhar, na rápida temporada, com os minerais brasileiros.

Falar sobre Seguso e Tagliapietra é discorrer a respeito do ápice da trajetória de uma arte cujo reconhecimento exige uma sensibilidade superior que, inclusive, valoriza-se cada vez mais. Museus e galerias de renome não prescindem mais de expor obras nesse material. É o caso do Metropolitan Museum de Nova York, onde inclusive há peças de Tagliapietra expostas. Na verdade, cada vez mais o território norte-americano torna-se a referência para essa arte, embora o peso de locais como a Bohemia e a própria Murano, que, aliás, agora vive mais de seu passado.

Tagliapietra não reluta em afirmar que o local, referência mundial em vidro artístico, atravessa um inexorável processo de decadência. O vidro, em Veneza, foi turistizado, a produção reduziu-se e a qualidade caiu. Os jovens não ficam mais na região, partem para outros países, falta apoio político para preservar a longa tradição, reconhece Tagiapietra.

No Brasil, como não poderia deixar de ser, a história do vidro artístico passou a ter algum sentido a partir do momento em que Seguso, para surpresa de muitos, resolveu adotar a terra. Hoje o país já consolidou uma produção e uma segunda geração de jovens artistas já encaminha a continuidade de um processo inexistente em outros países latino-americanos.

E dizer que tudo começou quando, em 1954, Mario foi convidado para executar peças especiais para a comemoração dos 400 anos da cidade de São Paulo, onde morou até 1964, gravando peças de cristais encontradas no mercado. Não era uma tarefa muito fácil encontrar tais peças com características ideais exigidas pelo trabalho do rigoroso artista. Melhor seria produzir seu próprio vidro em seu próprio forno. Assim, com mais dois amigos, Vitorio e Alamiro Ferro, também de uma família tradicional muranesa, partem para iniciar uma nova cristaleria, quem sabe aproveitando alguma estrutura já disponível. Ficaram então sabendo de um forno construído para a fabricação de garrafas em Poços de Caldas, Sul de Minas Gerais, a aproximadamente 250 km de São Paulo.

O forno era precário, deveria ser reconstruído, mas nada que a boa vontade daquele jovem não pudesse resolver. Além disso, o clima ameno da cidade e sua vocação para o turismo colaboraria para o trabalho diante do calor dos fornos e para a venda das peças produzidas. Então, em fevereiro de 1965, é inaugurada a Cristais Cá d'Oro. Mario Seguso convida seu cunhado Piero Toso a vir de Murano para juntar-se a sociedade. O nome Cá d'Oro é escolhido em homenagem ao palácio homônimo de Veneza, que em tradução livre significa Casa de Ouro.

Desde o início a produção da Cá d'Oro foi orientada para a execução de peças utilitárias com maior demanda do mercado. Com a determinação de um desenho original, apurado, que começasse a definir o vidro brasileiro, deixando de lado as influências de Murano ou qualquer outra que fosse. Também se produziria peças destinadas a um público diferenciado, exigente e que soubesse valorizar o vidro artístico.


 
Um dos trabalhos de Mário Seguso, que vive no Brasil há mais de 40 anos, e é um dos artistas vidraceiros mais conceituados do mundo. Foto: Divulgação

Uma caracteristica da Cá d'Oro é o trabalho totalmente manual e artesanal, de acordo com as técnicas dos antigos vidreiros do Egito e Fenícia, nos primórdios da história do vidro.

Depois de poucos anos, os irmãos Ferro decidem voltar, um para São Paulo, outro para a Itália. Mais alguns anos e Piero Toso se aposenta. Mario Seguso, que sempre teve ao seu lado sua esposa Rita na administração dos negócios, passa então a contar com a colaboração de seus filhos, Michel e Adriano, que impulsionam a fábrica na sua produção, distribuição e desenhos de novas peças, seguindo a tradição secular da família Seguso.

Mario Seguso, nascido na ilha de Murano, Veneza - Itália, em 1929, descende de uma das mais antigas e famosas famílias de mestres vidreiros, estabelecidos desde 1300, em Murano.

A Família Seguso encontra-se inscrita no “Livro de Ouro de Murano”, por ordem da Sereníssima República de Veneza, desde sua instituição, juntamente com outras famílias da ilha, igualmente ligadas à arte do vidro, adquirindo assim os direitos, os benefícios e as prerrogativas reservadas aos nobres.

Mario Seguso estudou no Instituto de Arte de Veneza, especializando-se em “design” e gravação em cristal, com os mestres Guido Balsamo Stella e Carlo Scarpa.

Tagliapietra

Tagliapietra nasceu na ilha de Murano (Itália) em 1934, e começou a sua carreira ao lado Archimede Seguso como um aprendiz.. Isso foi quando ele tinha 11 anos. Aos 21 tornou-se  um mestro. Ao longo de 25 anos Lino trabalhou em associação com vários dos mais conhecidos mestres da arte.

Em 1979, o mestro italiano vidro foi  para os Estados Unidos para ensinar na Escola Pilchuck, em  Seattle, dando  início a uma longa história de partilhar o secular conhecimento técnicos do vidro com artistas americanos. Em 1980,  Lino ficou conhecido pelo  trabalho conjunto  que  fez com vários artistas americanos, incluindo Dale Chihuly e Dan Bailey. Mas, na década de 1990, embora tenha continuado a ensinar e a colaborar com artistas do país, Lino começou ficar  amplamente reconhecido pela sua própria obra de arte.
 
Hoje, Lino Tagliapietra, conhecido por seu profissionalismo e excelência na sua capacidade de reunir os melhor do design clássico  contemporâneo, é considerado um dos maiores artistas de todos os tempos do vidro.


 
Mário Seguso faz parte de uma família secularmente conhecida pela dedicação à arte vidraceira em Murano. Foto: Divulgação

Suas  obras integram grandes coleções de muitos museus de todo o mundo e são procuradas com avidez pelos colecionadores. É um dos pouco com obras em galerias dos EUA, entre as quais a Holsten Galleries, onde estão mais de 30 obras suas, incluindo uma grande parede intitulada Masai.

O Vidro

A história do surgimento do vidro remonta milhares de anos, confundindo-se com a história da humanidade, suas conquistas nas diversas áreas, expansões culturais e territoriais.
Entre 3 e 4 mil anos atrás sabia-se que, através da fundição de elementos naturais em altas temperaturas, chegava-se a novos materiais até então desconhecidos, como o ferro e o bronze já bastante utilizados. Em busca de novos resultados pesquisas eram realizadas. Indícios levam a crer que, na região da Mesopotâmia, entre os Rios Tigre e Eufrates, obteve-se um resultado brilhante, um opaco e rígido, com características bem diferentes dos metais, lembrando mais um pedra preciosa. Eram os primeiros passos para que, com esta pasta vítrea, séculos e séculos depois, se chegasse ao vidro como é hoje conhecido.

As matérias fundidas então eram a sílica (em forma de areia e quantidade preponderante), o natron (material sódico que baixava o ponto de fundição da sílica), e cinzas vegetais com boa quantidade de potássio e mais alguns óxidos.

Esta mistura precariamente fundida em primitivos fornos, passava ainda por um processo de purificação difícil e demorado, onde eram acrescidos óxidos que lhe davam cores.

O conhecimento deste sistema de produção se expande pela Fenícia, Síria e norte da África, no Egito.

Com esta pasta vítrea eram produzidos pequenos objetos decorativos, de uso pessoal ou doméstico, que se limitavam a placas, cilindros, anéis, miniaturas e imitações de pedras preciosas, muito valorizados e destinados à elite da época.

A grande evolução da produção vidreira acontece séculos mais tarde, quando se passou a utilizar um tubo oco metálico que possibilitava que a pasta vítrea fosse soprada ganhando formas variadas, como garrafas, vasos e vários utensílios. O resultado do desenvolvimento desta ferramenta é a cana de vidreiro, até hoje fundamental na produção do vidro artístico.


 
Lino Tagliapietra, que veio ao Brasil rever o amigo e experimentar os materiais locais, tem obras em diversos museus e galerias. Foto: Divulgação

A expansão do vidro acompanhou a trajetória das conquistas territoriais, tendo séculos mais tarde uma grande influência do Império Romano, que havia trazido do Egito artífices que. com seus conhecimentos. produziram o vidro romano e mais tarde o disseminaram pela Europa.

Na decadência do Império Romano, as famílias que dominavam as técnicas e os conhecimentos vidreiros se espalharam pela Europa. Alguns grupos específicos se destacaram por motivos próprios, como aqueles de Altare e Veneza, no norte da Itália.

Veneza, em última análise, tem um papel muito importante na história do vidro. Sua produção era incentivada para fins comerciais com o oriente, tanto que, para resguardar seus segredos, em 1290 as fábricas de vidro foram limitadas à ilha de Murano a 700 metros de Veneza, onde a entrada e saida dos mestres vidreiros era severamente controlada. Em contrapartida, estes artesãos receberam regalias de nobres, inclusive o direito de cunhar suas próprias moedas de prata e ouro.

A importância de Murano, que passou a ser sinônimo do vidro ali produzido, foi a constante busca do aperfeiçoamento das técnicas e qualidade, tendo sido, na ilha no séc. XV descoberto o primeiro vidro cristalino, ou transparente.

A produção vidreira já era realizada em vários pontos da Europa, Oriente e Ásia. Com o vidro cristalino um novo impulso toma conta do mundo vidreiro. Na Inglaterra, países nórticos e na Bohemia o chumbo é adotado como fundente originando peças utilitárias finas, com sonoridade e brilho intenso.

Murano aperfeiçoa seu vidro artístico, colorido, exigente de um trabalho artesanal e de muita criatividade, mantendo assim a tradição das origens egípcias e fenícias.

Enquanto Murano continuou produzindo o vidro artístico cem por cento dependente do trabalho manual, a indústria do vidro implantou cada vez mais as máquinas em sua produção, aperfeiçoando o vidro plano em grande variedade e toda sorte de produtos, de componentes de naves espaciais à panelas, que hoje fazem parte da vida do homem moderno.(Cristais Cà d’oro)

(© Oriundi)

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