Roderick Conway Morris
Não muito tempo após sua morte, em outubro de 1492, Piero della Francesca já
começou a ser lembrado mais como matemático do que como pintor. Menos de duas
décadas se passaram antes que o papa Júlio II ordenasse a demolição de seus
afrescos no Vaticano (bem como os de outros grandes pintores do século
precedente) para abrir espaço ao trabalho de Rafael.
A lista de afrescos pintados por Piero em outros lugares causa melancolia. De
Perugia a Florença, de Ferrara a Ancona, de Loreto a Pesaro, o único ciclo
completo que parece ter sobrevivido é "A Lenda da Verdadeira Cruz", em Arezzo,
uma cidade não muito visitada na estrada entre Roma e Florença.
A narrativa representa uma espécie de história do mundo, do Jardim do Éden ao
nascimento e morte de Cristo, da vitória do imperador Constantino sobre os
pagãos à redescoberta da Verdadeira Cruz, símbolo da redenção da humanidade.
Meticulosamente analisada ao longo de muitos anos, para evitar danos causados
por excesso de zelo na limpeza, o afresco restaurado com apuro foi reinaugurado
em 2000, mas atraiu menos atenção do que teria sido o caso em outras
circunstâncias.
A limpeza cuidadosa também mostrou, no painel que tem por tema o "sonho de
Constantino", o primeiro céu estrelado na história da pintura ocidental, no qual
as constelações são representadas de maneira meticulosa.
A conclusão desse completo programa de conservação, e os frutos da
reavaliação da vida e era de Piero pelos estudiosos que ele ajudou a estimular,
estão sendo celebrados na exposição "Piero della Francesca e as Cortes
Italianas", que ocupa o Museu Estatal da Arte Medieval e Moderna, em Arezzo, e
algumas salas nas cidades vizinhas de Monterchi e Sansepolcro. A mostra reúne o
maior número de obras de Piero já exibidas em conjunto.
A exposição, que inclui também uma coleção respeitável de trabalhos de outros
pintores da era, estará aberta até o dia 22 de julho. Piero nasceu em 1412, ou
perto disso, na cidade de Borgo San Sepolcro, como era então conhecida. Fundada,
de acordo com a tradição, por dois peregrinos de retorno à Itália depois de uma
visita ao Santo Sepulcro, em Jerusalém, a cidade é hoje um lugarzinho sossegado,
mas, quando surgiu, ocupava posição estratégica no vale do rio Tibre, por sobre
as rotas comerciais que conectavam o centro da Itália ao Mar Adriático.
Piero, filho de um comerciante, tomaria parte na vida intelectual e artística
de todas as cortes principais da região - Ferrara, Rimini e Urbino -, bem como
na corte papal, em Roma. Seu treinamento inicial na matemática, característico
do filho de um comerciante, deve ter sido completamente prático e dirigido a
calcular diferentes pesos e medidas, avaliar volumes de barris e fardos e cuidar
da contabilidade.
Mas, posteriormente, ele se tornou o principal responsável por reviver e
explicar o trabalho de Euclides e outros cientistas gregos. Seus dons artísticos
permitiram que produzisse desenhos precisos e conceitualmente sofisticados para
ilustrar os textos desses autores e os seus próprios.
Embora jamais tenha escrito em latim, um manuscrito recentemente descoberto
sobre Arquimedes, com ilustrações de Piero, oferece nova prova de que ele não só
compreendia os mais complexos textos latinos, mas os esclarecia com seu desenho
geométrico.
Mesmo assim, a vocação inicial de Piero era a pintura, e ele se tornou
aprendiz de um artista local. Sua primeira colaboração documentada com um pintor
de fora de San Sepolcro aconteceu em 1439, quando trabalhou com Domenico
Veneziano em afrescos para a cidade de Florença. Domenico tinha origens
venezianas, como indica seu nome, e poucas de suas pinturas sobreviveram. Ele
foi pioneiro na perspectiva e nas sutilezas da luz, o que influenciou Piero de
maneira duradoura.
Os dois pintores eram fascinados pela escola holandesa de arte, e Piero
manifestou sua determinação de dominar as técnicas da pintura a óleo, que ele
pode ter aprendido diretamente de um artista holandês, possivelmente em Ferrara.
Mas ele jamais migrou definitivamente para o óleo em seus quadros e o mais
comum era que usasse uma combinação de óleos e têmpera. No período em que Piero
esteve em Florença, uma série de grandes concílios, cujo objetivo era reunir a
Igreja Católica e a Ortodoxa, ocorreu. Ele pôde ver em pessoa os trajes e
chapéus exóticos da delegação ortodoxa, que incluía o imperador bizantino em
pessoa.
Depois disso, seus trabalhos passaram a incluir trajes bizantinos
regularmente, em especial "A Lenda da Verdadeira Cruz" e o célebre afresco
"Flagelação", em Urbino, algo que alimentou debates futuros sobre o significado
mais profundo dessas figuras.
Piero combinou matemática e pintura com igual sucesso ao longo de quase toda
sua carreira. A utilidade da arte para a matemática é evidente, mas é difícil
determinar de que maneira a matemática influenciou seus quadros. Em seu tratado
"De Prospectiva Pingendi", ele criticou seus colegas pintores por não dominarem
as leis da perspectiva científica, mas, ainda assim, não aderiu a normas rígidas
de perspectiva em seu trabalho.
A teoria de Piero sobre a perspectiva era complicada demais para que pintores
pudessem usá-la na prática e só foi impressa na era moderna. O manuscrito foi
produto dos 20 anos finais da vida do artista, os quais ele passou em Borgo San
Sepolcro, depois de praticamente abandonar a pintura - provavelmente em
conseqüência de problemas de visão.
O concílio a que o jovem Piero assistira em Florença teve conseqüências
inesperadas em sua vida. O Papa, empobrecido devido às despesas do evento, cedeu
Borgo San Sepolcro a Florença em troca de dinheiro. Os cidadãos locais demoraram
alguns anos para reconquistar sua autonomia, e o afresco de Piero em Arezzo, com
sua imponente imagem de Cristo ascendendo do túmulo, portando uma bandeira nas
mãos, parece representar não só o mistério final da fé católica, mas também o
ressurgimento do orgulho cívico em sua cidade natal.
Tradução: Paulo Eduardo Migliacci ME
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