Margherita Agnelli abre a caixa de Pandora ao
pedir nova divisão da herança do pai, o milionário dono da Fiat
Enric González
Nos últimos pesadelos de Gianni Agnelli apareciam 170 pessoas. Eram seus
herdeiros. O patriarca da grande dinastia industrial italiana morreu com o temor
de que algum membro dessa multidão familiar rejeitasse seu testamento, fosse aos
tribunais e fizesse o império dos Agnelli desmoronar em pedaços.
Quatro anos depois de sua morte, os temores do "Avvocato"
[Advogado] parecem se tornar realidade. A Fiat, à beira de um colapso em 2003,
volta a ganhar dinheiro. E isso despertou certos apetites. Margherita Agnelli,
única filha sobrevivente do patriarca, não se conforma com os 109 milhões de
euros, as fazendas e o iate que aceitou em 2004 em troca de renunciar às ações
do grupo. Quer mais. E levou aos tribunais sua mãe, seu filho mais velho e os
três advogados que cuidaram do testamento de Gianni Agnelli.
A família real da Itália republicana está habituada a pleitos e desgraças. As
brigas, os escândalos e as mortes prematuras são quase uma tradição. Nesse caso,
tanto a demandante quanto os demandados salientam que não está em perigo a
integridade de um império econômico que abrange de automóveis (Fiat, Ferrari,
Maserati, Alfa Romeo) a futebol (Juventus), passando pela imprensa (o jornal "La
Stampa"), turismo (Alpitour), papel (Sequana Capital), participações bancárias
(Intesa-San Paolo) e serviços imobiliários (Cushman & Wakefield). Mas o risco
existe. A própria Margherita ameaça em seu processo anular o pacto sucessório de
2004, que colocou seu filho mais velho, John Yaki Elkann, à frente da família e
do grupo.
O Avvocato não tinha uma grande opinião sobre as qualidades de seus dois filhos.
Edoardo era muito diferente do pai. Interessava-se por astrologia, teve
problemas com a heroína, pareceu se aproximar do islamismo no final da vida e
morreu em novembro de 2000 depois de cair de um viaduto. A polícia considerou
suicídio. Margherita, poeta e pintora por vocação, teve três filhos (John, Lapo
e Ginevra) de seu primeiro casamento, com o escritor Alain Elkann, e outros
cinco (Pietro, Sofia, Maria, Anna e Tatiana) do segundo, com Sergio de Pahlen. O
Avvocato brincava cruamente sobre a fertilidade de Margherita, chamando-a de "a
prolífica".
Gianni Agnelli gostava mais como herdeiros dos filhos de seu irmão Umberto. E
deixou muito claro que deveria sucedê-lo seu sobrinho mais velho e quase
homônimo Gianni Alberto Giovannino Agnelli. Mas Giovannino morreu de câncer em
1997, com apenas 33 anos. Ficava Andrea, seu irmão. Andrea trabalhava no grupo,
era (e é) apreciado profissionalmente por seus colaboradores e tinha o sobrenome
da dinastia. Parecia o melhor candidato. Por algum motivo, porém, quando se
sentiu próximo da morte, o velho Agnelli voltou a olhar para os filhos de
Margherita. Escolheu o primogênito, John, como novo cabeça da família, e com
apenas 23 anos o introduziu no conselho administrativo. Em 2003, aos 27, o
engenheiro John Elkann assumiu as rédeas do império.
Não foi fácil aplicar o testamento do Avvocato. Era preciso satisfazer suas duas
herdeiras naturais: a esposa, Marella Caracciolo, e a filha, Margherita. E
evitar que se espalhassem as ações da Ifi e da Ifil, sociedades que controlavam
a holding familiar. Gianluigi Gabetti, Franzo Grande Stevens e Sigfried Maron,
os três advogados de confiança de Gianni Agnelli, tinham criado uma rede de
subsidiárias em paraísos fiscais e uma empresa caixa-forte, a Gianni Agnelli &
Cia Sapaz, que por sua vez dependia de outra empresa caixa-forte chamada
Dicembre. O objetivo era que John tivesse mais de um terço da Dicembre e que,
aliando-se a alguns parentes, pudesse controlar tudo.
Junto com os três advogados, na aplicação do testamento foi essencial a figura
de Susanna Suni Agnelli, irmã do patriarca morto. Suni, 84 anos, ex-enfermeira
voluntária na guerra, ex-deputada italiana e européia, ex-ministra das Relações
Exteriores e a autora de um célebre consultório sentimental, era a encarnação da
autoridade moral. "Enquanto Suni viver, os assuntos dos Agnelli não
descarrilham", comenta uma pessoa chegada à família.
A viúva não representou problema. Margherita, sim. Não se declarou satisfeita
com as explicações dos advogados e considerou que estavam ocultando informações
sobre as propriedades reais de seu pai. Mas acabou aceitando uma oferta que
incluía 109 milhões de euros, um palácio do século 17 com uma imensa fazenda em
volta, a maravilhosa embarcação F100 e diversas propriedades imobiliárias.
Retirou-se, então, para sua mansão na Suíça. Os demais herdeiros, mais de 170,
aceitaram a situação.
Contra os prognósticos, Sergio Marchionne e Luca Cordero di Montezemolo, de quem
John Elkann se cercou para salvar a Fiat, realizaram o milagre. Voltou a entrar
dinheiro no cofre familiar e o resto do grupo recomeçou a funcionar normalmente.
Margherita deve ter pensado nos cinco filhos de seu casamento com Sergio de
Pahlen e que o dinheiro e as propriedades que havia conseguido talvez não
bastassem para lhes garantir uma vida digna da dinastia. Segundo algumas
estimativas, nas empresas que o Avvocato tinha espalhado pelo mundo para
esconder seu patrimônio havia cerca de 3 bilhões de euros, e a Margherita haviam
cabido pouco mais de 100 milhões. Ela começou a falar com advogados.
Algo deve ter chegado aos ouvidos de Gabetti, Grande Stevens e Maron, os
inventariantes, porque em meados de maio modificaram um capítulo chave dos
estatutos da sociedade caixa-forte, que se refere à cessão de ações, para
blindá-la ainda mais.
Em 31 de maio Margherita anunciou através do "Wall Street Journal" que citava
diante dos tribunais sua mãe e seus filhos mais velhos para ser informada com
exatidão sobre o patrimônio real da família e para conseguir "uma divisão
amistosa dos bens", sob a ameaça de declarar nulos os "pactos sucessórios" que
deram o poder a John. "Ela não quer informação, quer mais dinheiro", comentou um
advogado que participa dos assuntos da família. John, o herdeiro, se declarou
"dolorido como filho" e "assombrado" diante da atitude de sua mãe. Seu irmão,
Lapo, comentou que não sabia nada sobre sua mãe e que faz muito tempo que a
apagou de sua vida. "Parece duro, mas é verdade", disse.
As audiências judiciais começarão no outono, se não houver um pacto anterior. Os
Agnelli entram novamente em fase de turbulências.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves