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O legado de Zurlini, cineasta da emoção, em caixa de
DVDs |
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Cena do
filme A
Primeira
Noite de
Tranqüilidade
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Coleção reúne os oito longas de ficção dirigidos pelo italiano entre 1955 e
1976
Antonio Gonçalves Filho
SÃO PAULO - Cultuado por cinéfilos, o diretor italiano Valério Zurlini (1926
-1982) nunca chegou a ter sua obra exibida como merecia. Alguns de seus
filmes só foram vistos na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e, a
despeito de ter assinado títulos à altura dos melhores dirigidos por
Antonioni, Rossellini e Visconti, não é um nome lembrado com a mesma
freqüência. Finalmente, o DVD vem corrigir essa injustiça. A Versátil Home
Vídeo lança até 2008 os oito longas de ficção dirigidos por Zurlini,
começando por A Moça com a Valise (La Ragazza con La Valigia,
1961), já à venda nas lojas. O segundo, Verão Violento (Estate
Violenta, 1959), chega esta semana ao mercado, seguido em julho pelo
poético A Primeira Noite de Tranqüilidade (La Prima Notte de
Quiete, 1972). Programados para o próximo ano estão Quando o Amor É
Mentira (Le Ragazze di San Frediano, 1955), Dois Destinos
(Cronaca Familiare, 1962), Mulheres no Front (Le Soldatesse,
1965), Sentado à Sua Direita (Sedutto alla Sua Destra, 1968) e
O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1976).
Representante da
primeira geração que herdou dos neo-realistas o amor pela literatura
humanista (Cesare Pavese, Vasco Pratolini), Zurlini foi também marcado pela
filosofia existencialista e a consciência crítica da miséria de um mundo
recém-saído da 2.ª Guerra Mundial. Seja pela denúncia da exploração militar
dos corpos das prostitutas em Mulheres no Front ou por sua repulsa ao
abismo social (que separa os amantes em A Moça com a Valise), Zurlini
deixou sua marca no cinema como um autor comprometido fundamentalmente com a
justiça. Força de hábito. Antes de virar cineasta, formou-se em Direito, em
Bolonha. O diretor também estudou História da Arte - e isso fica evidente em
filmes como A Primeira Noite de Tranqüilidade, em que o protagonista,
um professor (Alain Delon), explica à aluna Vanina (a bela Sonia Petrova) o
significado da luz (intelectual) que emana da (camponesa) Madona del Parto,
pintada por Piero della Francesca em Monterchi.
Cineasta sensível,
requintado e culto, Zurlini tem muito a ensinar aos jovens diretores
seduzidos pela onda violenta e antiintelectual que domina a cena
contemporânea. Suas adaptações de monumentos literários - de Vasco Pratolini
(Dois Destinos) a Dino Buzatti (O Deserto dos Tártaros) - são
provas vigorosas da fidelidade devotada à linguagem literária.
Divisão
Em A Primeira Noite
de Tranqüilidade, desde o nome da protagonista feminina, Vanina
(referência à personagem de Stendhal), Zurlini homenageia e reúne fragmentos
de seus autores favoritos, em especial a refinada poesia romântica de
Alessandro Manzoni (1785-1873), um autor avesso à renúncia do controle
intelectual das emoções. Zurlini seguiu suas pegadas. Em Dois Destinos,
Enrico (Marcello Mastroianni), irmão mais velho de Lorenzo (Jacques Perrin),
é o contraponto intelectual do caçula, despreparado para a vida e
sentimentalmente infantil.
Como Manzoni, Zurlini
também foi um homem dividido entre o agnosticismo e o cristianismo (destino
que, de resto, parece ser o dos cineastas italianos). Sobretudo a
resistência ao controle feudal da classe dominante italiana marcou seus
filmes. Em quase todos contrapõe a vacuidade do mundo burguês à riqueza
intelectual dos deslocados sociais. Em Dois Destinos, Mastroianni é
um jornalista criado pela avó pobre e separado do irmão na infância. O
caçula, educado por uma família rica, é quase um pária que, ao se ver
subitamente desamparado, recorre ao mais velho para sobreviver. Em A
Primeira Noite de Tranqüilidade, o professor (Delon), descendente de uma
rica família cujo patriarca foi herói de guerra, renega sua origem ao ser
entrevistado pelo diretor da escola (Salvo Randone), preferindo viver como
outsider. Em A Moça com a Valise, é intransponível a barreira social
que separa a pobre Aída (Claudia Cardinale) do rico garoto Lorenzo (Jacques
Perrin) e seu irmão Marcelo (Corrado Pani).
Apesar disso, Zurlini
não foi um cineasta político como Pontecorvo ou Elio Petri. Sua única
incursão no cinema engajado foi a disfarçada biografia do líder africano
Patrice Lumumba em Sentado à Sua Direita (exibido nos EUA como Jesus
Negro). Nele, Lalubi (Woddy Strode), líder rebelde do Congo, é preso ao lado
de um ladrão italiano e um soldado (qualquer semelhança com a vida de Cristo
não é mera coincidência). Ao contrário de Pontecorvo, Zurlini aposta na
intersecção do público com o privado. Faz desse drama meditativo um
manifesto que comove o espectador, associando o martírio de Cristo ao do
líder Lalubi. Lega seu testamento político-religioso ao condenar o
colonialismo e eleger um líder (Lumumba) que convocou seu povo a combater
pacificamente um regime ditatorial imposto pelos europeus. Isso oito anos
antes de O Deserto dos Tártaros, seu derradeiro filme.
´Deserto bíblico´
Em O Deserto dos
Tártaros, o que poderia ser uma alegoria do espírito bélico dominante no
mundo vira uma parábola sobre a prisão espiritual em que vivem os militares,
confinados num forte à espera do inimigo. Zurlini é fundamentalmente um
diretor que se ocupa de relações interpessoais, das sombras projetadas no
deserto como emanações de um interlocutor ausente, debilitando os homens que
nele se perdem.
Os homens, em seus
filmes, são invariavelmente seres condenados a vagar nesse deserto quase
bíblico. O protagonista de A Primeira Noite de Tranqüilidade é um
existencialista que cita passagens dos Evangelhos como um jansenista seguro
de sua catastrófica predestinação ao vazio, um homem à deriva como os
velejadores alemães que vão dar no porto de Rimini no prólogo do filme, tão
forasteiros nesse mundo como o professor Dominici interpretado por Delon.
Não há reconciliação possível desse estrangeiro com o mundo que o cerca,
mesmo que se considere a passividade com que o professor aceita seu destino.
A essa abnegação quase
jansenista corresponde uma iconografia quase calvinista, que rejeita o
policromatismo e abraça o vazio das praças pintadas pelos metafísicos
italianos (dos quais Zurlini foi amigo e colecionador). No filme, a paisagem
desolada do porto de Rimini no inverno anuncia, no prelúdio, a coda trágica
de A Primeira Noite de Tranqüilidade, o destino de um homem fadado a
confrontar o destino e ser por ele derrotado. Um homem perdido que idealiza
uma mulher sem qualidades. Não é incomum na vida real, como comprovou o
próprio Zurlini. Tampouco no cinema.
(©
Agência Estado)
Leia, na íntegra, o
texto de Carlos Reichenbach
Sai coleção que
reúne os oito longas de ficção dirigidos pelo italiano Zurlini
SÃO PAULO - Acaba de
sair coleção que reúne os oito longas de ficção dirigidos pelo cineasta
italiano Valério Zurlini entre 1955 e 1976. Leia a versão integral do texto
de Carlos Reichenbach sobre o lançamento.
Um cinema que aspira
à síntese
A obra de Zurlini foi
avaliada de maneiras mais díspares. Definido como "poeta da melancolia",
"sumista da esperança e dos sentimentos" ou enxergado como herdeiro maior da
tradição dos "cineastas da paisagem". Todos os epítetos se justificam,
especialmente o que se refere ao uso do cenário como elemento integrante da
obra, nunca como um ponto de partida puramente estético. A paisagem para
Zurlini deve sempre refletir a natureza do drama e a psicologia dos
personagens. Os cenários, mesmo aqueles que se assemelham a transparências
ou que se estendem à distancia dos protagonistas, surgem sempre "à frente"
dos personagens e precisam representar "estados da alma". Mas não é só às
artes plásticas que aspira o cinema de Valério Zurlini.
Cinema e literatura
Em seu
romance-testamento inconcluso, L´estate Indiana (cujo terceiro tomo
serviu de inspiração para o roteiro de A Primeira Noite da Tranqüilidade),
Valério Zurlini recorda sua experiência no Corpo Italiano da Liberação, que
marcou a ruptura definitiva com o projeto de vida burguês imaginado pelo pai
e a severa educação nos colégios católicos. Durante este período ele
mergulhou fundo nos livros que não conhecia: o Manifesto de Marx e
Engels, O Capital, a História da Inglaterra, de Chesterton,
O Outono da Idade Média, de Uizinga, de Faux-Monnayeurs, de Andre
Gide, mas também, sobretudo e de maneira caótica em Flaubert, Zuccoli, Mann,
a Estética de Croce, Descartes, Edgar Wallace, Stendhal, Dumas, Santo
Agostinho, Manzoni, Pittigrilli, Pascal, as aventuras de Arsene Lupin,
Phantomas, Alessandro de Stefani e Leon Tolstoi, sua maior influência. Como
ele bem explica em seu livro, foram nos livros que conseguiu emprestado das
sacolas de seus companheiros, das casas de paisanos e das bibliotecas das
pequenas vilas que Zurlini empreendeu uma "ruptura metodológica" com as
referências culturais do pai, em especial Chateaubriand.
De sua amizade pessoal
com o escritor Vasco Pratolini, de quem adaptou para o cinema Le Ragazze
di San Frediano e Cronaca Familiare, às próprias experiências
literárias (Il Tempo de Morandi, Uma Sera Romana con Balthus.
Gli Anni delle Immagini Perdute, ao já referido L´estate Indiana),
se insere na tradição de Manzoni, Fitzgerald e Brancati e reivindica ao
artesanato do roteiro a dignidade literária. Embora atribuísse uma autonomia
fílmico ao texto literário, Zurlini se impunha o valor correspondente.
A respeito de seus
roteiros originais, como State Violenta, por exemplo, Zurlini
invocava os preceitos de Tolstoi: "Uma história particular é enriquecida
enorme e necessariamente, quando tem como pano de fundo um grande
acontecimento histórico.".
Não são poucos os
críticos italianos que apontam Zurlini como um dos raros cineastas que
conseguem traduzir em cinema a sua paixão pela literatura.
Cinema e pintura
Um dos aspectos mais
marcantes da obra de Zurlini é a sua assumida influência pictórica. Zurlini
investia tudo que ganhava em cinema nos quadros dos pintores italianos que
admirava: Giorgio Morandi (1890 - 1964), Carlo Carrá (1881 - 1966), Ottoni
Rosai (1895 - 1957), entre outros.
Seu fascínio por Rosai,
cujas paisagens influenciaram os matizes e as perspectivas de Cronaca
Familiare (Dois Destinos), não deixa de ter algo de contraditório; o
pintor, magnificamente biografado por seu amigo Piero Santi em Retrato di
Rosai, havia sido um convicto "esquadrista" do fascismo. Homossexual e
pedófilo, Rosai só não foi deportado pelo passado fascista. Mesmo assim,
chegou a ser execrado tanto pela esquerda quanto pela direita, por causa de
seus famosos nus masculinos, cujos modelos eram buscados entre os jovens
proletários na estrada de Florença.
Mas para Zurlini
importavam as cores de Florença captadas por Rosai; assim como os tons
marítimos de Carrá presentes em A Primeira da Tranqüilidade. Mas foi
em Morandi, e nas paisagens enxergadas "como estados da alma", que o
cineasta mais se aproximou de Yasujiro Ozu graças aos constantes "planos de
respiro" que pontuam seus filmes.
Cinema e música
Pode-se discorrer
longamente a respeito da cumplicidade artística entre Zurlini e o grande
compositor Mario Nascimbene, mas é na utilização pontual de canções e
melodias populares e mesmo de peças clássicas que a poesia melancólica de
seus filmes é refinada. É comum nos filmes do diretor o comportamento dos
personagens ser revelado ou definido através do singelo gesto da dança. São
momentos de encantamento onde Zurlini se permite o devaneio e a ruptura
narrativa; um "vôo livre", alçado plenamente graças à intervenção da música
familiarizada. Alguns dos filmes são lembrados de imediato exatamente por
conta deste "divagação". Estate Violenta vem à memória quando
lembramos do casal envolto ao som de Temptation, de Nacio Herb Brown
e Arthur Freed. As cenas inicias de La Prima notte di quiete, além do
visual marítimo de Rimini, cujos matizes foram "emprestados" de Carrá, foram
eternizadas pelo agônico solo de trompa de Maynard Ferguson para uma canção
de Nascimbene. No mesmo filme, o maduro Daniele Dominici (Delon) se descobre
perdidamente apaixonado pela jovem Vanina (Petrova) quando a vê dançando
solitária em uma boite. Mas é em A Moça com a Valise que Zurlini
alcança a perfeita simbiose entre erudito e popular, transformando a música
em personagem integrante do enredo, especialmente nos excertos da canção
Celeste Aida, da ópera Aida, de G. Verdi (na antológica cena da
descida de Cardinale, de roupão, pelas escadarias da mansão Feinardi), e dos
solos de trompete do "standard" Fausto Papetti (na magistral seqüência do
terraço do hotel). A inserção de inúmeras canções populares dos anos 60
confere ao filme um proposital e contraditório efeito atemporal. A Parma
provincial ganha contornos míticos peninsulares ao som de Peppino di Capri,
Mina, Nico Fidenco. Gino Paoli, Adriano Celentano e, sobretudo, da canção
Il Nostro Concerto, de/com Umberto Bindi.
Autoria e assinatura
Apesar de suas
assumidas influencias literárias e pictóricas, os filmes de Valério Zurlini
possuem características indeléveis: a) relações afetivas entre personagens
de gerações diferentes; b) personagens como objeto de desejo e repulsão; c)
estações de trem e plataformas marítimas como signos da ausência; d) o
"pessimismo histórico" e agonia existencial; e) a angústia da religiosidade
sublimada e a fé no inexorável; f) a transitoriedade dos protagonistas.
Questionado a respeito
de sua contraditória e assumida crença nas doutrinas cristã e marxista,
Zurlini reafirmou a sua natureza tolstoiana: "Tolstoi foi um homem que
tentou e sonhou escrever um evangelho sem milagres, resolver a questão da
vinda de Cristo não como a volta de um messias, mas de um grande homem não
necessariamente ligado à origem divina...". O cineasta definiu sua postura
como similar a de Pasolini, mais explicitamente como um
"evangélico-comunista". Como bem observou o crítico Ruy Gardnier, em seu
texto no site CONTRACAMPO: " ... todos os problemas chegam a seu nível de
irresolução, mas o grande diferencial de seu cinema é que essa psicologia é
divina, é repleta de uma moralidade que parece emanar de Deus... O homem
pode até estar abandonado, mas é preciso mesmo assim uma moral - seu cinema
mostra quanto o existencialismo está próximo da religião.".
Outra característica
pessoalíssima dos filmes do diretor é obsessiva ausência de personagens
descartáveis ou mesmo de figurantes nos planos gerais. Seu ex-assistente, o
também diretor Florestano Vancini, revelou nos extras do DVD americano de
"State Violenta", que toda a crucial seqüência do bombardeamento do trem,
que levou onze dias para ser rodada, foi dirigida por ele, já que Zurlini
ficava profundamente incomodado com muita gente na frente da câmera.
Zurlini, assim como Ozu, gostava de deter sua atenção nos protagonistas e
ter um controle absoluto sobre o cenário (influencia óbvia da pintura) e o
enquadramento. Para filmar o bombardeamento a equipe usou quatro câmeras
simultaneamente, o que deixava o diretor angustiado.
Por ter sido inspirado
em texto literário escrito de próprio punho, é possível afirmar que A
Primeira Noite da Tranqüilidade é o mais pessoal dos filmes de Valério
Zurlini. Assim como o protagonista Daniele Dominici, Zurlini foi um ser
humano atormentado pela melancolia (o que lhe custou a pecha de "diretor
difícil" para os alguns produtores italianos); lecionou direção
cinematográfica, como professor-substituto no Centro Experimentale Di
Cinematografía de Cinecittà, em Roma, tendo como aluno o futuro diretor Luis
Sérgio Person; foi apaixonado por uma mulher mais jovem, a bela atriz
Jacqueline Sassard (por sinal, muito parecida com a atriz Sonia Petrova, que
personifica Vanina Abati) e não é difícil duvidar que fosse também um
jogador compulsivo. A angústia foi seu grande manancial de criação.
Não é exagero dizer que
Zurlini foi o cineasta que melhor soube filmar os sentimentos mais triviais
(nobres ou aviltantes) do homem moderno e cuja obra é uma perfeita simbiose
do essencial do cinema da Península: a crise dos sentimentos e as
dificuldades de comunicação da sociedade burguesa no cinema Antonioni, o
rigor e o humanismo de Visconti, a angústia e o ascetismo cristão de
Rosselini e a convicção marxista e a ênfase poética de Pasolini.
(©
Agência Estado)
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