O livro “Alì dos Olhos Azuis” reúne 20
textos escritos entre 1955 a 1967 pelo autor e cineasta
italiano
Por Fernando
Masini
O “Inferno” de Dante guarda uma inscrição na sua
porta de acesso: “Deixai toda esperança, vós que
entrais”. São as mesmas palavras proclamadas pela
prostituta Amore ao alertar a inocente Stella sobre
os perigos da profissão, ambas personagens do conto
“Accattone”. Poderia se falar o mesmo antes de
avançar no universo literário do escritor, poeta e
cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Grande parte
de seu legado tem como ambiente os cantos mais
sórdidos de Roma e revela as peripécias de
personagens desesperançados, em luta pela
sobrevivência nas periferias da cidade.
Ler seus escritos é flanar pelas ruas com “cheiro
de esterco”, percorrer vielas e observar o
“horizonte embebido de imundície”, perambular pelas
margens do rio Tibre, cujas águas, segundo Pasolini,
são de um “verde ácido e podre”. E terminar o dia
com o sol se pondo “vermelho como as bochechas de um
tísico”. Cada personagem criado pelo escritor –seja
ele uma prostituta, um cafetão ou o jovem que
trabalha no abatedouro- carrega uma infância
corrompida e uma esperança limitada de ascensão
social.
A editora Berlendis e Vertecchia acaba de lançar
o livro “Alì dos Olhos Azuis”, uma coletânea
rechonchuda de 640 páginas (R$ 75), com 20 textos
heterogêneos -de poemas a novelas- produzidos pelo
escritor entre 1950 e 1965. A princípio, o escritor
está mais preocupado em tecer estudos sociológicos
de teor erudito, como em “Recortes de Noites
Romanas” (1950) e “Estudos sobre a Vida em
Testaccio” (1952). Aos poucos, Pasolini infiltra-se
em situações mundanas, para construir histórias mais
simples e cativantes. É o caso das sagas de
Accattone e Mamma Roma, publicadas nos anos 60.
Na nota de introdução, um dos quatro tradutores
envolvidos no projeto, Maria Cristina Pompa, esboça
o caráter dos textos de Pasolini e traça o perfil da
cidade de Roma retratada pelo autor. “A geografia
pasoliniana da miséria e da marginalidade não pára
nos limites da periferia, mas penetra e violenta os
lugares consagrados da Roma do cartão-postal, junto
com seus borgatari que à noite invadem a
Cidade Eterna que nunca lhes pertencerá”, escreve.
O termo “borgate”, usado pela tradutora, diz
muito a respeito do universo pasoliniano. Refere-se
aos conglomerados de casas populares, comuns nos
anos 50 e 60, localizados na extrema periferia de
Roma. Pasolini fala muito dos moradores dessas
habitações. No texto “Notas para um Poema Popular”,
faz uma espécie de crônica social:
“No garoto da periferia há muito menos elegância,
e muito mais delinqüência em um sentido menor dessa
palavra. O impulso de suas reações é muito mais
limitado e elementar: mais tacanho o seu modo de
interpretar. É capaz de piedade muito menor. Não que
haja nele pouca vida moral, simplesmente não tem
nenhuma.”
Mais adiante, completa: “É necessário recordar
que vive nos chamados ‘casebres’, casas para
despejados, onde não há diferença entre o piso e a
terra batida das ruas sujas, dos patiozinhos: ou em
lotes mais nus que prisões. Tem um pouco dos
fenômenos neuróticos de quem vive em um campo de
concentração”.
Nos tipos retratados por Pasolini, inexiste uma
noção bem definida de lealdade ou ao menos ela é
subvertida no convívio entre malandros. Quando três
comparsas, em “A Brava Noite”, tentam tirar proveito
das putas com quem negociam uma relação, acabam
sendo roubados por elas, que metem a mão no bolso e
pegam toda a grana deles. Em “Accattone”, o
personagem principal também passa a perna em amigos,
ao tramar uma situação para não ter de dividir o
macarrão com outros quatro colegas. Num dos diálogos
do conto “A Brava Noite”, dois amigos discutem:
“- Pois é! A gente faz o que pode! O mundo é dos
esperto!
- Você tem razão. Enquanto os trouxa existir, os
esperto vão se dar bem!”.
É algo parecido com a esperteza criolla
dos argentinos ou o jeitinho brasileiro. A
lei é se dar bem, tendo jogo de cintura para
sobreviver, mesmo que seja às custas de atitudes
condenáveis. Quando Accattone –é o apelido do
protagonista que significa mendigo– apaixona-se por
Stella, ele promete presenteá-la com um par novo de
sapatos. A única saída que encontra para conseguir
dinheiro é furtar a correntinha de ouro do próprio
filho Iaio e vendê-la depois.
Num texto de 1954, intitulado “Puta”, Pasolini
nos mostra a história de migrantes napolitanos em
busca de melhores condições de vida em Centocelle,
região ao extremo leste de Roma. Nannina é uma
garota ingênua que se muda com os três irmãos para a
periferia da capital italiana. Passa a morar com a
numerosa família de Mario, com quem ela acaba se
casando. É nesse ambiente tumultuado e miserável que
Nannina vai sonhar com uma nova vida. A partir dessa
esperança misturada com ilusão, Pasolini explora com
muita honestidade o sentimento típico dos
“borgatari”.
Uma esperança que serve apenas como meio de
subsistência, mas que poucas vezes permite uma
ascensão social efetiva. Reforça-se a idéia de uma
sociedade estamental, fendida e desigual. São
pessoas condenadas, com uma condição predeterminada
e privadas de livres escolhas. “Quando a gente
precisa, não escolhe, basta trabalhar...”, fala
Stella para Accattone. Pasolini escreve sobre a
heroína Mamma Roma -encarnada no cinema pela atriz
Anna Magnani- quando ela reclama da postura do filho
para Carmine, o cafetão. “Mamma Roma está entregue
ao seu choro de animal: a sua fúria, mais que contra
Carmine, é contra a vida, o destino. Não pode fazer
outra coisa senão se desesperar. Está completamente
impotente e agoniza de dor”.
Apesar do destino trágico, as personagens de
Pasolini sempre parecem ostentar certa dignidade em
se manterem de pé dia após dia e demonstram-se
suficientemente calejadas para suportar a batalha do
cotidiano. Em “Noite no Externa Esquerda”, o autor
nos mostra a infância de Rafele, um menino que aos
10 anos perde o pai na guerra e vende seu corpo para
se sustentar:
“Ao redor do fogo aceso por Rafele e pelos
companheiros, dentro de uma velha assadeira
quebrada, mas ainda nobre, fica ali indiferente,
velho para qualquer malandragem, já quase cético e
irônico, com o rosto ainda mais escuro pelo frio. As
mãos no bolso fazem com que o ventre se estique -o
ventre em que já pesa a potência viril e facciosa de
um rapaz de vinte anos- e puxando as casas dos
botõezinhos, quase se fende no seu segredo de
animalzinho com o abdômen desenhado com a pungente
doçura de uma estátua de Gemito”.
A morte trágica em Ostia
Quando encontraram o corpo de Pier Paolo Pasolini
desfigurado devido a golpes de bastonete num campo
de futebol de terra batida em Ostia, periferia de
Roma, a suspeita de atentado político foi grande e
imediata. O escritor italiano havia pertencido ao
Partido Comunista e escrevia fortes críticas
publicadas no jornal “Corriere della Sera” contra os
principais partidos burgueses da Itália.
No entanto, a confissão de culpa veio logo. O
garoto de programa Pino Pelosi, na época com 17
anos, confessou à polícia que havia matado Pasolini
com golpes de porrete. Contou que na noite de 1º. de
novembro de 1975 tinha saído no carro do escritor
para dar uma volta. Depois de comerem na Trattoria
Biondo Tevere e passarem por um posto de gasolina,
haviam seguido até um local distante, isolado de
possíveis testemunhas. Pararam no campo de futebol e
começaram a bater boca, porque Pelosi não concordava
com as exigências de Pasolini quanto ao programa.
Iniciou-se uma briga, os dois deixaram o carro e
trocaram pontapés no campo de futebol. Pelosi pegou
um bastão e investiu contra Pasolini. Ainda de
acordo com seu depoimento, teria pegado o carro do
escritor e passado involuntariamente sobre o corpo
dele na volta. Após a declaração de culpa de Pelosi,
a polícia rapidamente arquivou o caso, sem
aprofundar as investigações, o que suscitou a
desconfiança dos advogados do escritor.
Passados 30 anos da morte de Pasolini, Pino
Pelosi apareceu no programa “Ombre sul Giallo” (veja
link no final), uma espécie de “Linha Direta” da
emissora italiana RAI. E, após a exposição dos fatos
pela apresentadora Franca Leosini, disse que havia
mentido à época sobre as circunstâncias da morte de
Pasolini. Declarou-se inocente e divulgou uma nova
versão para o assassinato. Revelou que ambos teriam
sido abordados por três homens barbudos enquanto
passeavam no carro de Pasolini e que dois deles
teriam arrancado o escritor do volante e o agredido
fora do carro.
A vida nas “borgate” de Roma
Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha, em 5 de
março de 1922. Seu pai era tenente da infantaria
italiana, e a mãe, professora de primeiro grau.
Pasolini sempre declarou uma afinidade maior com a
mãe, a conduta muito rígida e o comportamento
violento do pai impediram uma aproximação entre
eles. Com 17 anos, matriculou-se no curso de letras
na Universidade de Bolonha. Neste período, publicou
seus primeiros poemas no dialeto friulano, uma
variação regional do italiano.
Em 1945, concluiu a faculdade de letras e começou
a lecionar como professor de ginásio. Dois anos
depois, ingressou no Partido Comunista Italiano
(PCI), do qual já faziam parte intelectuais do porte
de Luchino Visconti e Antonio Gramsci.
Homossexual assumido, Pasolini teve problemas com
o recato moral da época em que viveu. Acusado de
corromper menores, foi expulso do Partido Comunista
sob a acusação de “desvio moral” e afastado de seu
cargo de professor.
Para se distanciar das repreensões, mudou-se para
Roma com a mãe, onde passou a dar aulas de
literatura e prestar serviços como crítico cultural
para uma rádio local. Seu primeiro romance, “Ragazzi
di Vita”, foi publicado em 1955. Junto ao trabalho
de escritor, colaborou escrevendo roteiros para
diretores como Federico Fellini e Bernardo
Bertolucci. A partir de 61, Pasolini resolveu filmar
suas próprias histórias: “Accattone” foi seu
primeiro longa-metragem, seguido de “Mamma Roma”.
Acostumado a freqüentar os bairros da periferia
de Roma -Testaccio, Trastevere, Centocelle,
Primavalle-, Pasolini transferiu para as suas
histórias o que via diariamente no comportamento das
pessoas que habitavam esses locais. Encontrou nas
“borgate” o centro ideal do seu mundo poético. Ao
ser perguntado sobre a preferência pelos tipos
marginais, retrucou que era a única forma de buscar
a inocência do ser humano e uma relação mais pura
com o mundo, menos infectada pelo formalismo
burguês.
No fim dos anos 60, jogou no triturador os
valores da família burguesa no seu filme mais
conhecido, “Teorema”, de 1968. Foi talvez o período
de maior ousadia do diretor. Após filmar duas
tragédias gregas, levou às telas três clássicos da
literatura universal -“Decameron”, “Os Contos de
Canterbury” e “As Mil e Uma Noites”-, pacote que
ficou conhecido como a “Trilogia da Vida”.
No mesmo ano em que foi assassinado, havia
realizado uma de suas obras mais vigorosas e
polêmicas no cinema, “Saló, ou os 120 dias de
Sodoma”, adaptação dos escritos de Marquês de Sade,
cujo alvo era o ressurgimento do fascismo na Itália.
Mesmo após a trágica morte em 1975, o espírito de
Pasolini ainda persiste, inquietante, nas páginas de
seus livros, tal como nas palavras do personagem
Ruggeretto, no conto “A Brava Noite”: “No dia que eu
morrer, quero que me botem dentro de um carrinho e
me descarreguem lá na frente do portão do cemitério,
quero feder mesmo depois de morto. Mesmo depois de
morto, quero incomodá as pessoa!”.