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Melodias eternas de Ennio Morricone no cinema

Morricone: autor de 400 trilhas sonoras, de Cinema Paradiso a Gaiola das Loucas
 

DVD reúne criações do ´Verdi das trilhas sonoras´, que vem ao Brasil

João Marcos Coelho

SÃO PAULO - Ele protagonizou uma das mais tocantes cenas da entrega do último Oscar. O compositor Ennio Morricone, de 76 anos, responsável por cerca de 400 trilhas sonoras, agradeceu em italiano o Oscar “pelo conjunto da obra” - e teve como tradutor de luxo Clint Eastwood, que duelou ao som da música de Morricone nos idos de 1964, no western-spaghetti Por um Punhado de Dólares, dirigido por Sergio Leone. Tempos duros, quando Leone assumiu o nome de Bob Robertson na versão do filme distribuída no mercado norte-americano e transformou Morricone em “Dan Savio”.

É sintomático que a gente tenha na ponta da língua os filmes de Eastwood como ator e diretor, mas se surpreenda quando olha a interminável listagem das trilhas de Morricone, que vem ao Rio esta semana para reger um concerto com suítes de suas trilhas. Você está cansado de saber que ele assina a trilha dos western-spaghetti de Leone, A Missão, Cinema Paradiso, Os Intocáveis e A Lenda do Pianista do Mar. Mas vai se assustar ao topar com seu nome nos créditos de filmes como Ata-me, Gaiola das Loucas, Bugsy ou Na Linha de Fogo.

Ele parece estar em todas as telas. Ou melhor, suas criações inconfundíveis emolduram todo tipo de filme. Já disseram que ele é o Verdi das trilhas sonoras. Por causa da originalidade de seus temas e as doses sutis de ironia salpicadas num lirismo derramado. Essa genial capacidade de criar belíssimas melodias encharcadas de romantismo, que resvalam sutilmente na ironia, é a marca registrada... de Verdi, claro. Mas também de Morricone. Ambos têm o condão de criar as melodias eternas. Contam-se às dezenas as árias verdianas que são cantaroladas há mais de um século e continuarão por secula seculorum amen. E quem não se lembra do tema de Morricone para Il Buono, il Bruto, il Cattivo (Três Homens em Conflito), de 1966. Alias, só pelo tema de Cinema Paradiso ele já teria lugar garantido no olimpo dos maiores melodistas de todos os tempos.

Mede-se a qualidade de um tema de trilha sonora pela seguinte equação morriconeana: quanto mais um tema é ouvido de forma independente do filme para o qual foi criado, mais seu sucesso estará assegurado. “Um conselho a quem quiser tentar escrever musica para cinema”, disse ele aos biógrafos Anne e Jean Lhassa. “Somos prisioneiros da melodia clássica, libertem-se dela, e alcancem, por meio de invenções realmente novas, uma nova sintaxe construída especialmente para a música de cinema.” O melhor dos mundos, então, é conceber temas com vida própria, mas que ainda assim sejam complementares às imagens que os acompanham. É o que Morricone faz com perfeição. Sua música sobrevive fácil e inteirona quando ouvida em gravações - qualidade raríssima no gênero. E tem um poder de sedução danado sobre músicos de todas as tribos.

O DVD Morricone por Morricone (Versátil) lançado na semana passada, a propósito de sua vinda ao Brasil, é prova dessa magia: pouco mais de uma hora e meia de música de cinema que não parece... música de cinema. Morricone rege a Orquestra da Rádio de Munique, em concerto realizado em outubro de 2004. Os primeiros 50 minutos são preenchidos por uma imensa suíte que evoca temas de catorze filmes. Ele rege com um olho na partitura, cabeça baixa - mas deixa escapar de vez em quando o outro olho dos óculos fundo-de-garrafa para este ou aquele naipe. Não é um regente espalhafatoso, nem precisa disso. A música se encarrega de contagiar músicos e platéia.

O piano (Gilda Buttà) brilha no contraponto cerrado de H2S, filme de 1968; a flauta de Pã em Era Uma Vez na América; uma trompa destaca-se em solo em Uno Che Grida Amore; órgão e coro misto participam de Maddalena; e o belíssimo timbre da soprano Susanna Rigacci se impõe em Quando Explode a Vingança. Um intervalo e, em seguida, um consistente miniconcerto para violino (Henry Randales) e orquestra de 15 minutos em três movimentos interligados que deixam para trás tentativas do pioneiro de trilhas Miklos Rosza. E a parte final, com mais uma penca de temas que culminam numa degustação de seu trabalho mais perfeito, a trilha de A Missão, de 1986.

Improvisos

Morricone também assinou um dos mais belos discos de sua vida naquele mesmo 2004: Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (CD Sony, importado). O genial violoncelista, que também vem ao Brasil este ano, recebeu do compositor um gesto especial: Morricone criou arranjos exclusivos. O resultado é simplesmente excepcional. Uma escrita para cordas irretocável que ressalta o caráter de voz humana que tem o timbre do violoncelo. No tema de Gabriel, de A Missão, Yo-Yo Ma não substitui o insubstituível solo de oboé original, mas, de modo inteligente, faz o contraponto. E assim por diante. São seis suítes, dedicadas a Tornatore, Sergio Leone, Brian de Palma e uma suíte Moses and Marco Polo.

Melodia que merece este nome, diz Morricone, tem de subsistir sozinha, separada do filme, lembra? O clímax deste grito de afirmação da melodia acontece quando músicos de jazz se apropriam dela para seus improvisos. É o que fez o sensacional, mas pouco conhecido pianista italiano Enrico Pieranunzi. O CD, do selo italiano CamJazz (2005), é inteiro dedicado aos temas morriconeanos. Enrico é um devoto de Bill Evans. Não só transita no universo do pianista norte-americano morto em 1980, até hoje influência determinante nos mais talentosos pianistas atuais - escreveu um livro sobre ele e toca com ex-parceiros de Evans, os competentes Marc Johnson (contrabaixo) e Joey Baron (bateria). Possui, entretanto, um sopro criativo original.

São dez faixas que certamente deixaram Morricone orgulhoso. Addio Fratello Crudelle é o protótipo do universo lírico e misterioso da criação do compositor. O piano sutil de Pieranunzi contracena em uníssono com o contrabaixo de Johnson no tema, e em seguida se desprende para um improviso de antologia. Malamondo (1964) é mais sacudida e La Domenica Specialmente (1991) é uma valsa que também teria feito as delícias de Evans. É comovente a escura Ninfa Plebea, criada por Morricone para o filme de Lina Wertmüller em 1996. Pieranunzi relê Jona Che Visse nella Ballena em piano-solo e relembra o Keith Jarrett do Trio Standards em Le Mani Sporche (1979) e Quando le Donne Avevano la Coda (1970). A quem interessar possa, Pieranunzi também gravou um disco excepcional, com o mesmo trio, dedicado aos temas de outro gigante das trilhas, Nino Rota.

Áudios
som  Yo-Yo Ma
Suíte Brian de Palma

som  Enrico Pieranunzi
Ninfa Plebea

 

(© Agência Estado)


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