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Júlio II - o terrível patrão de Michelangelo

A Criação de Adão, domina a abóbada da capela Sistina, de Michelangelo, um dos protegidos do papa Júlio II
 

Ambicioso e enérgico, ele recuperou para o papado os territórios da Igreja conquistados por Bórgia, mas seu maior legado à posteridade foi o teto da Capela Sistina, uma das jóias da pintura universal

por Jean-Pierre Garnier

Juliano della Rovere provinha de uma família muito modesta. Nascido em Albisola, perto de Gênova, ao ser eleito papa em 1503 herdou um poder espiritual frágil, assentado na base temporal igualmente precária do Estado pontifical da época.

Antes dele, seu tio Sisto IV procurou em vão sobressair com um bom reinado, sobretudo furtando-se à influência dos Médici e inscrevendo Roma no movimento de emancipação do Quattrocento. Porém, esses 13 anos de boa vontade não livraram a reputação do papado das manchas que o passado deixara.

O catolicismo atribuía aos papas um grande poder espiritual, fazendo deles sucessores do apóstolo Pedro, investidos pelo próprio Cristo no direito de ligar e desligar todas as coisas da terra e do céu. Porém, a forma como a maioria deles usou o magistério supremo valeu ao trono do Vaticano um renome no mínimo equivalente ao do famoso pomo da discórdia. Árbitros das nações cristãs e senhores das almas, dotados do poder insigne de definir ortodoxia e heresia, os sumos pontífices, consumados autocratas, muitas vezes se sentiam estimulados a desdenhar os obstáculos colocados no caminho de sua vontade. Apesar dos últimos concílios - Pisa, Constança e Basiléia -, a aura da Santa Sé deslustrou-se perigosamente, por força de querelas teológicas reduzidas a frágeis tentativas de reforma, cismas, heresias. No início do século XVI, o flanco que esse Estado abriu para as críticas do incipiente protestantismo a seu fausto, à imoralidade e à influência tentacular de sua administração e fiscalidade, além da dificuldade em se inspirar nas "luzes" do humanismo e se regenerar, parecia condenar a Igreja Católica Romana a ser despojada, a curto prazo, ano após ano, de pedaços de seu território.

Como temer o Vaticano se o representante de Deus na terra era nada menos que um integrante da família dos Bórgia, a famigerada corja de príncipes, doges, barões e tiranetes locais, cujos mercenários se concentravam nas suas fronteiras? Em resposta às excomunhões de um papa de origem espanhola, um incestuoso pai de família que se valia tanto do veneno quanto da água benta, Florença, Veneza, Milão, Gênova, Ferrara e Bolonha não tinham o menor escrúpulo em mostrar que eram bastante ricas para comprar todo um concílio de cardeais prestes a depô-las ou a custear uma expedição de invasores estrangeiros. Portanto, não é difícil imaginar que, nessa época em que a prática de simonias grassava nas balaustradas dominadas pela púrpura cardinalícia, o interregno papal tenha causado quase 250 mortes. Que pena! Embora não tenha tardado a se sentir o "firme Santo Padre" providencial, Juliano della Rovere teve de esperar até os 60 anos a tiara de que precisava para ocupar o espaço que faltava às suas ambições.

Felizmente, essa longa espera que viu três conclaves preferirem outro a ele foi muito proveitosa e não o relegou à inação que lhe teria sido insuportável. Foi debaixo da asa do tio Sisto IV, respeitado e popular, que ele aprendeu o ofício. De fato, esse parente, logo consciente da capacidade do sobrinho, não se restringiu a poupá-lo da situação dos camponeses da Ligúria, permitindo-lhe cursar a universidade em Perúsia. Tendo galgado em seis anos todos os escalões da carreira eclesiástica, de simples franciscano de um priorado da diocese de Uzés Juliano foi nomeado bispo de Carpentras em outubro de 1471 e, dois meses depois, em Roma, cardeal de Saint-Pierre-aux-Liens.

Convivendo com embaixadores, príncipes e reis, habituou-se aos usos turvos da prática política. Familiarizou-se com as leis da psicologia e do comércio humanos. E, em breve, numa época e país em que se assassinava nas catedrais e se enforcavam os arcebispos dissidentes sem processo, ele compreendeu que, se um papa quisesse um dia exaltar a Igreja na ordem espiritual pela arte da paz, primeiro tinha de exaltá-la na grandeza do poder temporal pela arte da guerra. Exercitando-se nos rudimentos da diplomacia, o cardeal já era, no íntimo, aquele que seria alcunhado "o papa terrível".

Não tardou a mostrar que tinha o estofo de um comandante militar capaz de heroísmo. Condottiere consumado, sufocou os levantes de Todi, Spoleto e Città di Castello, fomentados contra o Vaticano. Cerco, pilhagem, compromisso ou capitulação, tudo ele administrava pessoalmente. Nos conflitos seguintes, que o oporiam às pretensões galicanas do reino da França e, a seguir, a Lourenço de Médici, era sempre o sobrinho que Sisto IV mandava para a linha de frente. Então o soldado impressionou os florentinos, sendo que o diplomata, devido à habilidade e ao talento com que sempre fazia jogo duplo, antecipando o futuro, cativou até mesmo o mais astuto e poderoso inimigo da Santa Sé: o rei Luís XI. Em breve, todas as delegações enviadas por Roma aos quatro cantos da Europa passaram a ser chefiadas unicamente pelo cardeal Della Rovere.

Uma espécie de "vice-papa"
Não obstante as intrigas de Alexandre Bórgia, o futuro papa Alexandre VI, que assumiu antes do nosso Juliano, a eleição de Inocêncio VIII não pôs fim à carreira da eminência parda, muito pelo contrário. Foi tal a ascendência do cardeal sobre o novo pontífice que, nos bastidores do poder, cochichava-se acerca de um "vice-papado". E, antes de ser sabotado na corrida pelo trono de São Pedro, ele ao menos teve tempo de garantir o sucesso dos dois empreendimentos mais saudáveis do pontificado de Inocêncio VIII: primeiro, a condenação das pretensões francesas sobre Nápoles mediante uma aliança com o rei Ferrante da Espanha; em segundo lugar, um tratado de paz com os turcos, que acabou com a ingerência muçulmana na Europa.

Pouco depois, inaugurou-se um período de turbulências para o famoso cardeal, assim como para o conjunto da cristandade, mas é justo indagar se este não foi um mal necessário ao advento do equilíbrio e da prosperidade. Assim como, de uma hora para outra, os judeus se revoltavam contra seus perseguidores na Espanha, a bruxaria ganhava ímpeto sem precedentes na Alemanha, os falsificadores abundavam na chancelaria pontifical e logo, em toda a Europa, a sífilis dizimava a população eclesiástica; do mesmo modo súbito, o destino do futuro Júlio II, no momento em que ele rivalizava com Bórgia, viu-o deixar de ser o dignitário íntegro que tinha sido até então. E isso a ponto de ele arriscar ser caricaturado pelos panfletários. As prevaricações sacrílegas a que Alexandre VI se entregou sem vacilar para se apropriar de São Pedro em 1492, o cardeal extraviado as adotou, por sua vez, como que convencido de que somente o mal era capaz de triunfar sobre o mal, face ao espetáculo arrogante dos sucessos do espanhol. E voltou contra o concorrente as armas que ele o via utilizar. A simonia e os apelos ao turco, que ele estigmatizara em público na casa de Bórgia, agora eram recursos aos quais sacrificava a si próprio.

Tendo se tornado campeão da duplicidade para vencer, já não recuava diante do pior: trair os aliados, abraçar os inimigos. Assim, fechando os olhos para assassinatos, violações e pilhagens perpetradas pelos mercenários que ajudava a financiar, apoiou o ocupante francês em suas incursões contra Milão e ainda se dispôs a se unir aos florentinos, arriscando ter de abrir os braços para Savonarola.

A eminência parda já não passava de um príncipe igual aos outros, que a ambição tornara demasiado turbulento, demasiado implacável. E a duração e a impopularidade do pontificado de seu rival lhe dariam muito que pensar sobre a péssima qualidade e a vaidade do seu próprio desempenho na luta; no futuro, o personagem seria um grande homem digno de seu magistério, apto a dar uma contribuição para o progresso da humanidade, mas dividido entre as baixas exigências de sua missão temporal, as do seu temperamento excessivamente sanguíneo e as de suas aspirações espirituais.

Eleito papa aos 60 anos, tanto odiado como estimado, Juliano estava abatido. Pressentia que não lhe restavam mais de dez anos para se mostrar como um verdadeiro pontífice aos olhos dos cristãos e conquistar o amor dos romanos. Inutilmente, empenhou-se em reconstituir o Estado, fixar suas fronteiras, afirmar de modo dissuasivo seu poder pessoal, inaugurar a restauração da Santa Sé como poder temporal: o "papa terrível" não se conformava com sua aura de conquistador.

As expedições vitoriosas contra Veneza, Perúsia, Bolonha e Ferrara, entre 1504 e 1508, e contra Luís XII, em 1511 e em 1512, não bastaram para calar aqueles que se escandalizavam com o luxo que cercava Sua Santidade e, sobretudo, com o que se dizia de seus costumes. Não contente em legitimar, tal como Alexandre VI, três de seus filhos, a verdade é que ele não ocultava seu gosto pelos lugares proibidos.

Quando ficou pública a sífilis que o acometeu, o papa já não tinha por que fazer segredo de sua predileção por rapazes bonitos, e, durante um bom tempo, a revelação de duas dessas ligações contranaturais foi motivo de todas as piadas imagináveis entre os anticlericais da Europa. Seu amor pelo cardeal Alidosi, que ele cumulou de honrarias e dotou de poderes exorbitantes como diplomata e tesoureiro, incitou tanto ódio que o favorito acabou assassinado: e embora, nesse meio-tempo, Sua Santidade, aos 67 anos, tivesse se apaixonado pelo adolescente Federico Gonzaga, seu desespero deu o que falar durante semanas. Filho de Isabel d\\'Este, Federico foi mantido refém de Júlio II, no Vaticano, para pressionar a família Ferrara.

Uma das características do gênio de Júlio II foi tratar de abrandar os escândalos da luxúria, seu culto à personalidade, e os desvios de conduta que seus furores guerreiros o impeliam a cometer, os quais lhe impunham a constante necessidade de fundos, assim como tratar de alardear seus mais caros desejos. Que desejos?

Primeiro, o de reabilitar a imagem de Roma e do Vaticano, tornando-se, ao mesmo tempo, o principal lixeiro, o principal edil e o principal mecenas. Em segundo lugar, o de devolver à religião católica o sorriso perdido em séculos de oposição externa e terrorismo interno. Sim, Júlio II teve a lucidez de duvidar que a mera ostentação da vontade de moralizar a instituição eclesiástica lhe rendesse, como se diz hoje em dia, uma "conduta". As excomunhões, os anátemas contra a simonia, as reiteradas (e jamais cumpridas) promessas de reunir periodicamente um concílio para que o Sacro Colégio instaurasse o debate sobre suas opções, e, enfim, as exortações a uma última cruzada e o empenho em afirmar o poder espiritual da Santa Sé faziam rir até os mais devotos.

Júlio II era um homem prático: foi assim que ele se mostrou digno sucessor do tio, o papa Sisto IV. Na impossibilidade de ter sucesso como sumo pontífice, tratou de cumprir sua missão na qualidade de mecenas e civilizador. Em poucos anos, empenhado em sobrepujar a Florença dos Médici e em dar novo alento ao Renascimento italiano, legaria aos romanos a herança mais prestigiosa que nenhum outro papa se preocuparia em deixar. Faria da capital do papado não só uma cidade limpa e segura, no centro de um Estado cuja prosperidade a colocaria entre as primeiras potências econômicas do Ocidente, à frente de todos os demais Estados italianos, mas um centro artístico cuja mensagem se endereçava não aos homens de seu tempo, mas ao conjunto da humanidade futura.

Sacerdote intimamente convencido de que convinha confiar mais em suas virtudes civilizadoras do que em sua aptidão para comprar os homens, esse titã hiperativo, despótico, que só chegou a ser um grande político e estrategista excepcional por necessidade de sempre vencer, teve, na hora certa, a sensatez de fazer com que os maiores servidores da beleza em atividade na Itália exaltassem, em lugar dele, a espiritualidade, o amor, a comunhão e a transcendência contidos nas palavras de Deus e da Igreja. Nele eram patentes a cupidez, o narcisismo, o gosto pela pompa e as tendências que o levavam a preferir o nu masculino ao feminino, mas a quem ocorreria condená-lo, hoje, por ter cogitado obter a absolvição por meio do acervo de obras-primas antigas de seu museu do Belvedere e do outro cuja criação ele financiou?

Talvez aqueles que irão se chocar com mais esta verdade: o cenáculo formado ao redor do papa por Michelangelo, Giovanni Antonio Bazzi (1477-1549), Luca Signorelli (1450-1532) e Andrea Contucci, alcunhado Il Sansovino (1467-1529) constituiu, sem dúvida alguma, a equipe mais escandalosa de notórios sodomitas em torno de um santo padre. Havia duas exceções, é verdade: Il Bramante (O Suplicante), Donato D\\'Angeli Lazzari (1444-1514) - pintor, escultor e arquiteto, concebeu o primeiro projeto da edificação da basílica de São Pedro, modificado por Michelangelo, que só se interessava pela edificação da nova basílica de São Pedro, e Rafael, cuja preferência por mulheres era clara.

Predileção pelo "amor grego"
Evidentemente, não faltavam almas virtuosas para se indignar com as excentricidades de Bazzi e com seu empenho em fazer jus ao apelido de Il Sodoma. E tampouco faltavam cortejos de recatados censores a bradarem contra a afronta dos nus de Michelangelo no teto da Sistina. Mas, afinal de contas, antes de Júlio II já se havia injuriado o Magnífico por ter acolhido outros "intocáveis" em sua academia: Nicolau Maquiavel (1469-1527), político e filósofo italiano, e diplomata a serviço dos Médici, famoso pelo Príncipe (1513), Poliziano (1454-1494), poeta e humanista italiano, e aquele assombroso modelo de erudição e beleza, o filósofo italiano Pico della Mirandola (1463-1494). Pode-se jurar que o precedente ilustre instigou o papa: se em Florença a pudicícia e a intolerância tiveram a última palavra, nunca a capital toscana fora o crisol do gênio do Renascimento. Ademais, Júlio II sabia que, na plebe da qual ele provinha, não se condenava no macho uma predileção pelo "amor grego" se, quando necessário, ele soubesse honrar devidamente o sexo feminino.

Na verdade, agora que ele se aproximava do fim da vida, acusado pelos detratores de não ter conseguido unificar a Itália, nem escapar ao domínio espanhol, nem reformar a Igreja a tempo para que ficasse duradouramente dotada de um alicerce político sólido; agora que sentia avizinharem-se as horas sombrias da Inquisição, da Reforma e das guerras que veriam sua obra política aniquilada em meio aos sobressaltos de um caos infernal, Júlio II achava que tinha equilibrado seus desvios passados com o esforço que envidou para que Roma florescesse como capital artística moderna.

Se, ao comprometer a arte com o caminho da renovação prodigiosa que brotava dos dedos de seus pintores, o Santo Padre participaria da edificação do mundo do amanhã, ele se dispunha a continuar suportando, até o último alento, as jeremiadas, os furores e as ameaças do Buonarotti, aquele Nasone insuportável, cercado de mendigos, valentões de mercado ou prostitutos mal entrados na adolescência, cujas feições não tardariam a figurar no teto da Sistina. Queria, sim, ser o árbitro das querelas daquele florentino com o sumo desregramento de Rafael e com o monstro Bramante, pedinte de tal modo insaciável que seria preciso demolir todo o Vaticano para lhe satisfazer a megalomania. Que importava que eles se odiassem e que seu gênero de vida perdulário arruinasse os cofres de São Pedro? Muito mais que todos os vãos combates de suas legações passadas e de suas expedições contra os pequenos barões da península, de garras voltadas para as fronteiras do Estado, aqueles malucos consumidos pela dor da criação pelo menos o fizeram compreender o essencial: que uma religião só é boa se ostentar um belo rosto. Um belo rosto cheio de vida!

1443
Nasce em Savona, Itália

1471
É sagrado bispo e, no mesmo ano, cardeal

1503
Apenas aos 60 anos, é eleito papa

1508
Retoma os domínios
da Igreja conquistados por Bórgia

1512
Reinaugura a Capela Magna sob o nome
de Capela Sistina

1513
Morre em Roma

Jean-Pierre Garnier é historiador, autor de Les Barbares dans la cité - De la tyrannie du marché à la violence urbaine (Os bárbaros na cidade - Da tirania do mercado à violência urbana, Flammarion)

(© História Viva)

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