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Homem Vitruviano.
Leonardo fez o famoso desenho baseado nas
proporções matemáticas do arquiteto romano Marco Vitruvio Polião |
A história de como um homem
bastardo, canhoto, vegetariano, homossexual e libertador de passarinhos
tornou-se o maior gênio ocidental de todos os tempos
Por: Renato Modernell Em meio a tudo o
que já se disse sobre Leonardo da Vinci, ao longo de 500 anos, a frase
de Freud brilha como uma pérola: "Ele foi como um homem que acordou cedo
demais na escuridão, enquanto os outros continuavam a dormir".
É admirável que Leonardo tenha conseguido suportar a sua solidão.
"Será que ninguém jamais ouvirá a minha voz, e que sempre estarei só,
como neste momento, nas trevas debaixo da terra, como se tivesse sido
sepultado vivo, junto com meu sonho de asas?" Esse desabafo é de quando
ele se refugiou numa adega, com seus livros, manuscritos e instrumentos
científicos. Lá fora, as tropas francesas de Luís XII devastavam Milão a
canhonaços.
Nessa época turbulenta e fértil - a transição renascentista entre os
séculos 15 e 16 - saltava aos olhos a diferença entre Leonardo e os
mortais comuns. E não apenas pelo tanto que ele conseguiu avançar em
seus múltiplos campos de interesse. Seus hábitos pessoais e sua
trajetória de vida também destoavam do figurino vigente.
Só para complicar um pouco, vamos começar dizendo que Leonardo talvez
nem fosse da Vinci.
Avesso aos prazeres da carne (em todos os sentidos),
Leonardo preferia a solidão criativa às paixões mundanas
Ele é desses que nasceram em diferentes lugares, como
Carlos Gardel, Jesus Cristo e outros personagens à la carte: cada
biógrafo (eles existem às pencas) escolhe a sua versão. Vinci, no alto
de uma colina, a oeste de Florença, é a possibilidade mais forte. Esse
povoado toscano de 1 500 habitantes presta homenagem ao mestre no Museu
Leonardiano, com maquetes em madeira (carro, bicicleta, tanque de
guerra, metralhadora etc.) feitas a partir de suas anotações. Porém, o
pessoal da região considera a dita "casa de Leonardo" uma impostura para
atrair turistas. Ele também pode ter nascido em outra cidadezinha
próxima, Anchiano, e ter sido levado para Vinci na primeira infância.
Leonardo foi filho bastardo de um tabelião chamado
Piero, que só o reconheceria anos mais tarde. Essa encrenca o acompanhou
a vida toda. Em seus últimos anos, Leonardo teve de brigar na Justiça
contra sete de seus meio-irmãos, que tramaram para excluí-lo da partilha
das heranças do pai e também da de um tio.
Criado pela dedicada mãe, Caterina, o belo menino de cabelos loiros teve
as vantagens e as desvantagens do filho único. Afeto exclusivo,
provavelmente, mas também uma fixação excessiva na figura materna. Aí é
Sigmund Freud que entra na história. Segundo ele e outros estudiosos,
esse fato teria contribuído para a homossexualidade latente em Leonardo.
Não foi levada à prática, talvez, porque o excêntrico e esbelto Leonardo
era também um moralista.
Mais de uma vez ele censurou a sensualidade e os prazeres da carne (em
amplo sentido, pois era vegetariano) em que até os papas e os prelados
costumavam se exercitar. Defendia o ascetismo, a contemplação, a solidão
criativa, em vez das paixões mundanas. No entanto, circulava em Florença
com roupas de veludo muito justas e chamativas, quando lá viveu pela
primeira vez, e se tinha dinheiro no bolso comprava passarinhos nas ruas
e os soltava das gaiolas. Já então se cercava dos belos mancebos que o
acompanhariam pela vida toda, seja como colegas, discípulos, seja como
admiradores. Certa vez viu-se envolvido (talvez injustamente) num
processo público por sodomia, coisa de alto risco, mas foi poupado por
falta de provas.
Referências a mulheres são raras nas 5 mil páginas manuscritas ao longo
dos 67 anos vividos por Leonardo. Curiosamente, como ninguém antes, ele
ocupou-se em estudar o corpo feminino de modo profundo, até
reverencioso. Os mistérios da maternidade o fascinavam. O bisturi de
Leonardo era implacável no momento em que dissecava o útero para
derrubar antigos mitos do tempo do médico grego Galeno.
Mas seu lápis era sutil, magistral, quando representava o aparelho
reprodutor da mulher em cortes seccionais e ângulos variáveis,
produzindo pranchas ilustradas. Ali estava um prenúncio do sistema
Windows, que aliás ajudaria o bilionário Bill Gates a adquirir uma parte
importante da obra do gênio italiano, o Códice Leicester. Leonardo
pregava que a imagem é mais eficaz que a palavra para nos fazer entender
determinados assuntos.
Cada faceta desse homem (bastardo, homossexual, canhoto, vegetariano,
autodidata, dissecador de cadáveres, libertador de passarinhos, viajante
etc.) representava uma nota dissonante em relação a todos os outros que
o cercavam. Esses traços miúdos se juntaram a outros, de grande
magnitude intelectual, para formar a poderosa imagem histórica daquele
que muitos consideram o maior gênio ocidental de todos os tempos.
Hoje as universidades apregoam a interação entre diferentes campos do
saber. Leonardo já era um sábio "multidisciplinar" cinco séculos antes
de inventarem essa palavra. Os doutores de sua época o tachavam de
iletrado por ele não saber latim, que ainda fazia parte da pompa
acadêmica. Só que aquele iletrado, com asas de pássaro, desestabilizava
o ambiente por ser capaz de pousar, ao natural, em qualquer galho da
árvore do conhecimento.
Era arquiteto, engenheiro, urbanista, zoólogo, fisiologista,
estrategista militar e mais uma dúzia de coisas que se queira incluir na
lista. Construiu instrumentos musicais, como uma lira de prata e um
órgão a água, e neles tocava peças que ele próprio compunha. E, de
quebra, como sabemos, até que não ia tão mal quando esculpia ou pintava.
A Mona Lisa poderia ser o próprio Leonardo, numa misteriosa fusão com a
figura da mãe. Essa é a hipótese de Sherwin B. Nuland, professor da
Universidade de Yale, EUA, que pesquisou a vida do mestre durante 25
anos antes de escrever sua biografia. Ao lidar com as numerosas
ambigüidades que cercam a figura de Leonardo, Nuland afirma que "ele não
é uma criatura de lugares e monumentos, nem mesmo de permanência".
Ele já era multidisciplinar cinco séculos antes de
inventarem essa palavra.
Na época foi tachado de iletrado por não saber latim
De fato, a mobilidade é outro traço que tornou Leonardo diferente dos
outros. Durante sua vida, em diferentes fases, fez uma espécie de
rodízio entre as cidades de Florença, Milão e Roma, com estadas mais
breves em Mântua e Veneza. Na Toscana, recebeu tarefas que implicavam
deslocamentos, como projetos de drenagem e estudos sobre campos de
batalha.
Nos últimos três anos de sua vida trocou a turbulência da Itália pela
tranqüilidade campestre do Vale do Loire, na França. Sob proteção do rei
François I, seu fã, enfim pôde viver sem sobressaltos e aflições
financeiras, e com todas as mordomias no castelo de Les Clos-Lucé, perto
de Amboise. As peregrinações anteriores se deviam às incessantes rixas
entre as cidades italianas, cujos despóticos governantes (os Sforza em
Milão, os Medici em Florença, os Borgia em Roma) eram também mecenas e
competiam entre si.
Leonardo detestava política, mas para sobreviver tinha de entrar no
jogo, bajular, organizar festas na corte, como de resto faziam os
artistas da época. No entanto, ele se movimentou mais. Havia nele o
prenúncio da inquietude dos artistas modernos, que a partir do século 18
se habituariam a mudar de ares para nutrir o espírito.
Numa época em que a religiosidade medieval permeava a arte e a ciência,
Leonardo atuava como observador independente e livre-pensador. Essa
conduta, atípica, viria a ser a marca registrada dos intelectuais
somente três ou quatro séculos mais tarde. Ele sentia-se à vontade não
apenas para contestar verdades milenares, legadas por sábios antigos,
como também para dispensar o fator divino na descrição dos processos da
natureza.
É enorme a diferença de visão de mundo, por exemplo, entre Leonardo e
Cristóvão Colombo, apenas um ano mais velho que ele. O viajado e culto
navegador genovês também tinha espírito arrojado, inquisitivo, e no
entanto seus propósitos estavam o tempo inteiro atrelados à religião.
Por outro lado, é de se notar que o pensador toscano, atento a tudo, não
houvesse se interessado pelas grandes navegações que ocorriam em sua
época.
Pensador centrado em si, autônomo, itinerante, Leonardo foi mestre em
projetos inacabados. Volta e meia, movido por explosões de entusiasmo,
largava no meio as coisas que começava. Por causa disso, os inimigos o
malhavam. Michelangelo, rival jovem e virulento, chegou a insultá-lo em
público. Porém, quando Leonardo virou uma lenda viva, uma grife na
Europa inteira, esse traço desabonador converteu-se em algo que hoje se
chamaria "um diferencial no mercado".
E tem outra: o que Leonardo por vezes considerava obra inacabada
(Última Ceia, por exemplo) era algo muito superior ao que os demais eram
capazes de fazer. Portanto, sua dita inconstância também podia ser
explicada por uma alta exigência, sobretudo consigo próprio.
Ele podia interromper uma pintura magistral para
estudar a fisiologia das moscas. Cada miudeza tinha status de Mona Linsa
Como uma bolinha de pingue-pongue, Leonardo ia e vinha
entre a ciência e a arte. Era capaz de interromper uma pintura
magistral, com prazo marcado, para passar dias dedicado a estudar a
fisiologia das moscas que pousavam no mel. Vibrava com suas descobertas.
Cada miudeza do cotidiano, para ele, tinha status de Mona Lisa.
Leonardo teria sido um ótimo ativista do Greenpeace. Além de libertar
passarinhos nas ruas, como já sabemos, ainda fazia imprecações na frente
dos açougues que exibiam animais esquartejados. Isso não o impediu,
entretanto, de dissecar cadáveres humanos e escarafunchar, por exemplo,
a medula de uma rã viva. E o Greenpeace certamente expulsaria Leonardo
se soubesse que ele chegou a projetar um desvio no Rio Arno. Objetivo:
privar de água os habitantes de Pisa, inimigos de Florença, e assim
forçá-los à rendição. Por aí se vê que o sábio deve ter aprendido alguma
coisa com Maquiavel, que conheceu pessoalmente.
Leonardo dissecou ao todo cerca de 30 corpos humanos, conforme
confessou no leito de morte. Espalhou provocações por todo lado, seja ao
pintar o enigmático sorriso da Mona Lisa, seja com a mania de escrever
da direita para a esquerda. Tudo somado, atraiu sobre si, como um
bisturi afiado, o interesse de sucessivas gerações. Sua vida rende novas
biografias a cada ano - em uma década e meia, saíram mais de cem. Se
Leonardo é assim, inesgotável, isso sugere que sua época, o
Renascimento, não é aquela coisa sépia que ficou lá atrás, mas um
processo contínuo. Sob muitos aspectos, Leonardo é um homem do século
21. Mais adiante, no 22, vão dizer a mesma coisa. Quando acordarem.
(©
Revista Terra)
LINHA DO TEMPO
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1452
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Nasce em 15 de abril,
provavelmente na cidade de Vinci, na Toscana |
1466
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Vai para Florença com
a família e começa a trabalhar no ateliê de Andrea del Verrochio |
1481
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É encarregado de
pintar o painel Adoração dos Magos, não chega a concluir a
obra, pois se muda para Milão no ano seguinte, para trabalhar a
serviço do duque Ludovico Sforza |
1497
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Encomendada pelo
duque Sforga, Última Ceia chega a sua versão definitiva |
1499
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A França invade Milão
e Leonardo é forçado a sair da cidade. Passa temporadas curtas em
várias cidades italianas, como Mântua, Veneza e Florença |
1502
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É nomeado engenheiro
militar por Cesare Borgia, irmão de Lucrezia Borgia. Viaja pelo
norte da Itália e acaba conhecendo Nicolau Maquiavel |
1503
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Um mercador
florentino, Francesco del Giocondo, encomenda a Leonardo um
retrato de sua esposa, a Lisa. Começa a pintar a Mona Lisa, que
ficará pronta quase uma década mais tarde |
1506
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Volta a Milão,
contratado por Charles d´Amboise em nome do rei Luís XII da
França. Dedica-se a estudar botânica, geologia, hidráulica e
mecânica |
1513
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Fixa-se em Roma sob o
patrocínio do papa Leão X e encontra a concorrência feroz de
Michelangelo. Durante esse período, faz viagens freqüentes e
estuda óptica |
1516
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A convite do rei
Francisco I da França, transfere-se para o Castelo de Cloux (hoje
clos-Lucé) no Vale do Loire |
1519
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Morre em 2 de maio e
é sepultado no convento da Igreja de São Florentino, em Amboise,
na França |
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Leonardo da Vinci |