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Leonardo da Vinci

06/06/2006

Homem Vitruviano. Leonardo fez o famoso desenho baseado nas proporções matemáticas do arquiteto romano Marco Vitruvio Polião


A história de como um homem bastardo, canhoto, vegetariano, homossexual e libertador de passarinhos tornou-se o maior gênio ocidental de todos os tempos

Por: Renato Modernell

Em meio a tudo o que já se disse sobre Leonardo da Vinci, ao longo de 500 anos, a frase de Freud brilha como uma pérola: "Ele foi como um homem que acordou cedo demais na escuridão, enquanto os outros continuavam a dormir".

É admirável que Leonardo tenha conseguido suportar a sua solidão. "Será que ninguém jamais ouvirá a minha voz, e que sempre estarei só, como neste momento, nas trevas debaixo da terra, como se tivesse sido sepultado vivo, junto com meu sonho de asas?" Esse desabafo é de quando ele se refugiou numa adega, com seus livros, manuscritos e instrumentos científicos. Lá fora, as tropas francesas de Luís XII devastavam Milão a canhonaços.

Nessa época turbulenta e fértil - a transição renascentista entre os séculos 15 e 16 - saltava aos olhos a diferença entre Leonardo e os mortais comuns. E não apenas pelo tanto que ele conseguiu avançar em seus múltiplos campos de interesse. Seus hábitos pessoais e sua trajetória de vida também destoavam do figurino vigente.
Só para complicar um pouco, vamos começar dizendo que Leonardo talvez nem fosse da Vinci.

Avesso aos prazeres da carne (em todos os sentidos), Leonardo preferia a solidão criativa às paixões mundanas

Ele é desses que nasceram em diferentes lugares, como Carlos Gardel, Jesus Cristo e outros personagens à la carte: cada biógrafo (eles existem às pencas) escolhe a sua versão. Vinci, no alto de uma colina, a oeste de Florença, é a possibilidade mais forte. Esse povoado toscano de 1 500 habitantes presta homenagem ao mestre no Museu Leonardiano, com maquetes em madeira (carro, bicicleta, tanque de guerra, metralhadora etc.) feitas a partir de suas anotações. Porém, o pessoal da região considera a dita "casa de Leonardo" uma impostura para atrair turistas. Ele também pode ter nascido em outra cidadezinha próxima, Anchiano, e ter sido levado para Vinci na primeira infância.

Leonardo foi filho bastardo de um tabelião chamado Piero, que só o reconheceria anos mais tarde. Essa encrenca o acompanhou a vida toda. Em seus últimos anos, Leonardo teve de brigar na Justiça contra sete de seus meio-irmãos, que tramaram para excluí-lo da partilha das heranças do pai e também da de um tio.

Criado pela dedicada mãe, Caterina, o belo menino de cabelos loiros teve as vantagens e as desvantagens do filho único. Afeto exclusivo, provavelmente, mas também uma fixação excessiva na figura materna. Aí é Sigmund Freud que entra na história. Segundo ele e outros estudiosos, esse fato teria contribuído para a homossexualidade latente em Leonardo. Não foi levada à prática, talvez, porque o excêntrico e esbelto Leonardo era também um moralista.

Mais de uma vez ele censurou a sensualidade e os prazeres da carne (em amplo sentido, pois era vegetariano) em que até os papas e os prelados costumavam se exercitar. Defendia o ascetismo, a contemplação, a solidão criativa, em vez das paixões mundanas. No entanto, circulava em Florença com roupas de veludo muito justas e chamativas, quando lá viveu pela primeira vez, e se tinha dinheiro no bolso comprava passarinhos nas ruas e os soltava das gaiolas. Já então se cercava dos belos mancebos que o acompanhariam pela vida toda, seja como colegas, discípulos, seja como admiradores. Certa vez viu-se envolvido (talvez injustamente) num processo público por sodomia, coisa de alto risco, mas foi poupado por falta de provas.

Referências a mulheres são raras nas 5 mil páginas manuscritas ao longo dos 67 anos vividos por Leonardo. Curiosamente, como ninguém antes, ele ocupou-se em estudar o corpo feminino de modo profundo, até reverencioso. Os mistérios da maternidade o fascinavam. O bisturi de Leonardo era implacável no momento em que dissecava o útero para derrubar antigos mitos do tempo do médico grego Galeno.

Mas seu lápis era sutil, magistral, quando representava o aparelho reprodutor da mulher em cortes seccionais e ângulos variáveis, produzindo pranchas ilustradas. Ali estava um prenúncio do sistema Windows, que aliás ajudaria o bilionário Bill Gates a adquirir uma parte importante da obra do gênio italiano, o Códice Leicester. Leonardo pregava que a imagem é mais eficaz que a palavra para nos fazer entender determinados assuntos.

Cada faceta desse homem (bastardo, homossexual, canhoto, vegetariano, autodidata, dissecador de cadáveres, libertador de passarinhos, viajante etc.) representava uma nota dissonante em relação a todos os outros que o cercavam. Esses traços miúdos se juntaram a outros, de grande magnitude intelectual, para formar a poderosa imagem histórica daquele que muitos consideram o maior gênio ocidental de todos os tempos.

Hoje as universidades apregoam a interação entre diferentes campos do saber. Leonardo já era um sábio "multidisciplinar" cinco séculos antes de inventarem essa palavra. Os doutores de sua época o tachavam de iletrado por ele não saber latim, que ainda fazia parte da pompa acadêmica. Só que aquele iletrado, com asas de pássaro, desestabilizava o ambiente por ser capaz de pousar, ao natural, em qualquer galho da árvore do conhecimento.

Era arquiteto, engenheiro, urbanista, zoólogo, fisiologista, estrategista militar e mais uma dúzia de coisas que se queira incluir na lista. Construiu instrumentos musicais, como uma lira de prata e um órgão a água, e neles tocava peças que ele próprio compunha. E, de quebra, como sabemos, até que não ia tão mal quando esculpia ou pintava.

A Mona Lisa poderia ser o próprio Leonardo, numa misteriosa fusão com a figura da mãe. Essa é a hipótese de Sherwin B. Nuland, professor da Universidade de Yale, EUA, que pesquisou a vida do mestre durante 25 anos antes de escrever sua biografia. Ao lidar com as numerosas ambigüidades que cercam a figura de Leonardo, Nuland afirma que "ele não é uma criatura de lugares e monumentos, nem mesmo de permanência".

Ele já era multidisciplinar cinco séculos antes de inventarem essa palavra.
Na época foi tachado de iletrado por não saber latim

De fato, a mobilidade é outro traço que tornou Leonardo diferente dos outros. Durante sua vida, em diferentes fases, fez uma espécie de rodízio entre as cidades de Florença, Milão e Roma, com estadas mais breves em Mântua e Veneza. Na Toscana, recebeu tarefas que implicavam deslocamentos, como projetos de drenagem e estudos sobre campos de batalha.

Nos últimos três anos de sua vida trocou a turbulência da Itália pela tranqüilidade campestre do Vale do Loire, na França. Sob proteção do rei François I, seu fã, enfim pôde viver sem sobressaltos e aflições financeiras, e com todas as mordomias no castelo de Les Clos-Lucé, perto de Amboise. As peregrinações anteriores se deviam às incessantes rixas entre as cidades italianas, cujos despóticos governantes (os Sforza em Milão, os Medici em Florença, os Borgia em Roma) eram também mecenas e competiam entre si.

Leonardo detestava política, mas para sobreviver tinha de entrar no jogo, bajular, organizar festas na corte, como de resto faziam os artistas da época. No entanto, ele se movimentou mais. Havia nele o prenúncio da inquietude dos artistas modernos, que a partir do século 18 se habituariam a mudar de ares para nutrir o espírito.

Numa época em que a religiosidade medieval permeava a arte e a ciência, Leonardo atuava como observador independente e livre-pensador. Essa conduta, atípica, viria a ser a marca registrada dos intelectuais somente três ou quatro séculos mais tarde. Ele sentia-se à vontade não apenas para contestar verdades milenares, legadas por sábios antigos, como também para dispensar o fator divino na descrição dos processos da natureza.

É enorme a diferença de visão de mundo, por exemplo, entre Leonardo e Cristóvão Colombo, apenas um ano mais velho que ele. O viajado e culto navegador genovês também tinha espírito arrojado, inquisitivo, e no entanto seus propósitos estavam o tempo inteiro atrelados à religião. Por outro lado, é de se notar que o pensador toscano, atento a tudo, não houvesse se interessado pelas grandes navegações que ocorriam em sua época.

Pensador centrado em si, autônomo, itinerante, Leonardo foi mestre em projetos inacabados. Volta e meia, movido por explosões de entusiasmo, largava no meio as coisas que começava. Por causa disso, os inimigos o malhavam. Michelangelo, rival jovem e virulento, chegou a insultá-lo em público. Porém, quando Leonardo virou uma lenda viva, uma grife na Europa inteira, esse traço desabonador converteu-se em algo que hoje se chamaria "um diferencial no mercado".

E tem outra: o que Leonardo por vezes considerava obra inacabada (Última Ceia, por exemplo) era algo muito superior ao que os demais eram capazes de fazer. Portanto, sua dita inconstância também podia ser explicada por uma alta exigência, sobretudo consigo próprio.

Ele podia interromper uma pintura magistral para estudar a fisiologia das moscas. Cada miudeza tinha status de Mona Linsa

Como uma bolinha de pingue-pongue, Leonardo ia e vinha entre a ciência e a arte. Era capaz de interromper uma pintura magistral, com prazo marcado, para passar dias dedicado a estudar a fisiologia das moscas que pousavam no mel. Vibrava com suas descobertas. Cada miudeza do cotidiano, para ele, tinha status de Mona Lisa.

Leonardo teria sido um ótimo ativista do Greenpeace. Além de libertar passarinhos nas ruas, como já sabemos, ainda fazia imprecações na frente dos açougues que exibiam animais esquartejados. Isso não o impediu, entretanto, de dissecar cadáveres humanos e escarafunchar, por exemplo, a medula de uma rã viva. E o Greenpeace certamente expulsaria Leonardo se soubesse que ele chegou a projetar um desvio no Rio Arno. Objetivo: privar de água os habitantes de Pisa, inimigos de Florença, e assim forçá-los à rendição. Por aí se vê que o sábio deve ter aprendido alguma coisa com Maquiavel, que conheceu pessoalmente.

Leonardo dissecou ao todo cerca de 30 corpos humanos, conforme confessou no leito de morte. Espalhou provocações por todo lado, seja ao pintar o enigmático sorriso da Mona Lisa, seja com a mania de escrever da direita para a esquerda. Tudo somado, atraiu sobre si, como um bisturi afiado, o interesse de sucessivas gerações. Sua vida rende novas biografias a cada ano - em uma década e meia, saíram mais de cem. Se Leonardo é assim, inesgotável, isso sugere que sua época, o Renascimento, não é aquela coisa sépia que ficou lá atrás, mas um processo contínuo. Sob muitos aspectos, Leonardo é um homem do século 21. Mais adiante, no 22, vão dizer a mesma coisa. Quando acordarem.

(© Revista Terra)

 

LINHA DO TEMPO
1452
Nasce em 15 de abril, provavelmente na cidade de Vinci, na Toscana
1466
Vai para Florença com a família e começa a trabalhar no ateliê de Andrea del Verrochio
1481
É encarregado de pintar o painel Adoração dos Magos, não chega a concluir a obra, pois se muda para Milão no ano seguinte, para trabalhar a serviço do duque Ludovico Sforza
1497
Encomendada pelo duque Sforga, Última Ceia chega a sua versão definitiva
1499
A França invade Milão e Leonardo é forçado a sair da cidade. Passa temporadas curtas em várias cidades italianas, como Mântua, Veneza e Florença
1502
É nomeado engenheiro militar por Cesare Borgia, irmão de Lucrezia Borgia. Viaja pelo norte da Itália e acaba conhecendo Nicolau Maquiavel
1503
Um mercador florentino, Francesco del Giocondo, encomenda a Leonardo um retrato de sua esposa, a Lisa. Começa a pintar a Mona Lisa, que ficará pronta quase uma década mais tarde
1506
Volta a Milão, contratado por Charles d´Amboise em nome do rei Luís XII da França. Dedica-se a estudar botânica, geologia, hidráulica e mecânica
1513
Fixa-se em Roma sob o patrocínio do papa Leão X e encontra a concorrência feroz de Michelangelo. Durante esse período, faz viagens freqüentes e estuda óptica
1516
A convite do rei Francisco I da França, transfere-se para o Castelo de Cloux (hoje clos-Lucé) no Vale do Loire
1519
Morre em 2 de maio e é sepultado no convento da Igreja de São Florentino, em Amboise, na França

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