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Quadrinhos muito além das curvas

21/05/2006

 

Editoras brasileiras relançam clássicos eróticos como Valentina, dialogando com novos olhares femininos

CAROL ALMEIDA

Herdeira de uma história escrita majoritariamente pelo cromossomo Y, a cultura pop ocidental nasceu de um direcionamento consumista unilateral. A linha de partida e o ponto de chegada da economia dessa indústria foi sempre a mesma: o olhar masculino. As histórias em quadrinhos, ambiente por excelência imerso na gênese dessa expressão pop, reflete em seu percurso as direções que esse olhar deu à representação feminina. Daquele começo do século 20 até hoje, muitas mulheres passaram pelas páginas de autores que as trataram das mais diversas maneiras, alguns com raiva ou indiferença, outros com devoção. Desses últimos, o jornalista e escritor Gonçalo Junior deteve sua atenção, no livro Tentação à italiana (Opera Graphica), lançado há quase um ano, em junho de 2005.

O fato é que, desde então, editoras brasileiras resolveram tirar do baú autores e personagens esquecidos pelo tempo e pelas preocupações comportamentais da mulher pós-moderna. Há um ano, livrarias de todo o País recebem álbuns que agora resgatam as voluptuosas moças de Milo Manara, bem como a languidez intelectual da Valentina de Guido Crepax. Reedições de clássicos de ambos os autores chegam ao mercado ao lado de novas histórias, escritas por jovens artistas. O bombardeio dessa erupção editorial da libido contida nos desenhos de coxas e seios provoca muito mais do que a revisão de um gênero específico das HQs, conhecido como erótico. A chegada desses álbuns indica também que, nos primeiros anos do novo milênio, personagens datadas por um contexto político podem se reinventar e dialogar com uma nova perspectiva da representação feminina nos quadrinhos, agora não mais monopolizada pelo tal olhar masculino.

Porque se na década de 80 Miguel Paiva ditava o estilo da mulher moderna com sua Radical Chic, hoje a argentina Maitena desempenha função semelhante com o benefício da causa própria. Naturalmente, a auto-representação feminina nos quadrinhos ainda é minúscula diante do poderio do Clube do Bolinha, mas é sabido que, mesmo entre autores homens, o perfil das mulheres vem mudando dos anos 90 para cá. Prova disso estão em artistas como os norte-americanos Terry Moore (Estranhos no paraíso, Via Lettera) e Daniel Clowes (Como uma luva de veludo moldada em ferro, Conrad), que partem de uma narrativa do cotidiano banal para lidar com suas personagens.

Do outro lado do mapa, no Japão, o francês Frédéric Boilet usa a técnica mais antiga das HQs eróticas, o voyerismo, para falar também de outras mulheres, para quem a liberação sexual é conversa de mãe. O espinafre de Yukiko e o mais recente Garotas de Tóquio (este dentro da coleção Eros da Conrad Editora) são álbuns que espelham mulheres livres das preocupações políticas que ditaram aquilo que o pesquisador brasileiro Moacy Cirne define como “civilização do sexismo” dos anos pré e pós maio de 1968 (marco do discurso libertário europeu).

No Brasil, cuja produção de massa ainda está nas mãos daqueles que detém as tiras de humor, a representação das mulheres poderia ganhar um capítulo à parte fossem elas observadas pela ótica de um único cartunista: Angeli. Da porralouquice de Rê Bordosa até o diálogo amorfo das adolescentes Luke e Tantra cria-se toda uma linha do ideário feminino dos anos 80 até hoje. Em Aline e, mais recentemente, em Kiki, ambas criações de Adão Iturrusgarai, construíram-se descendentes do olhar comportamental que os homens fazem das mulheres. Sucessos entre o público feminino, esses desenhistas são, contudo, resultado de um padrão humorístico lançado naqueles mesmo anos 80 da Rê Bordosa.

(© JC Online)


O erotismo como válvula de escape da repressão

Relançamentos de títulos dos anos 60, 70 e 80 falam de um tempo político distinto daquele que hoje dá origem a álbuns do gênero

Aos 41 anos, Valentina não perdeu a forma, e muito menos a aptidão provocativa. No fim do ano passado, foi lembrada no Brasil em edição de luxo pela Opera Graphica com o álbum Desnudando Valentina, de Marco Aurélio Lucchetti. Nesta semana, chega às livrarias por outra editora, a Conrad, nova edição de porte com todas as histórias publicadas entre 1965 e 1966 da fotógrafa mais famosa dos quadrinhos. Falar de Valentina é essencial para entender a localização da persona feminina nos quadrinhos. Apesar de ser geralmente citada em referência a seu conteúdo erótico, ela conduz seus leitores, homens e mulheres, a perceber como a metalinguagem é essencial na construção de uma personagem, mesmo quando ela ainda responde a fetiches construídos pelos homens.

“O Tentação à italiana nasceu dessa observação que fiz sobre o olhar apressado, equivocado e pré-concebido que a crítica fazia em relação aos autores dos quadrinhos eróticos. Se costuma apontar que os caras desenham apenas mulheres deslumbrantes. Mas elas são muito mais do que mulheres maravilhosas para leitores masculinos se masturbarem. As histórias desses autores são de profundo conteúdo literário, com referências ao cinema, à arquitetura, à música, e ao comportamento político e social de cada época”. Segundo ele, personagens como Valentina, “desafiaram uma certa ditadura masculina”.

Rogério de Campos, diretor da editora Conrad, lembra que toda repressão à sensualidade e outros atributos femininos tem origem que vai além da mera “força do hábito” histórica em encerrar as mulheres em papéis domésticos (de cama, mesa e banho). Nos anos 50, com a criação do selo de censura às histórias em quadrinhos norte-americanas, as personagens femininas foram esmagadas por uma política reacionária.

“O Comics Code nos Estados Unidos teve um efeito não apenas lá, mas no mundo ocidental inteiro. Já no Japão quando houve uma tentativa de controle dos quadrinhos, surgiram as revistas shoujo (voltadas para meninas adolescentes) e vários outros segmentos desenhados e dedicados às mulheres. A evolução desses quadrinhos femininos no Japão serve de exemplo para o que poderia ter ocorrido no resto do mundo não fosse o Comics Code”.

A citação de Campos serve para lembrar que, ao contrário dos comics norte-americanos, os mangás conseguiram desde sua origem criar um amplo público feminino construindo histórias a partir do ponto de vista de famosas desenhistas, especializadas e dedicadas a segmentos bem específicos de mulheres japonesas. Existem, por exemplo, edições apenas para mulheres que sofrem com suas sogras (ver texto ao lado).

Em se tratando de quadrinhos eróticos (e tendo, claro, a mulher como elemento principal), seis novos álbuns estão hoje no mercado. Uma é da Pixel Media, que relançou Gullivera, de Milo Manara, e cinco são da Conrad: O Clic (clássico que pela primeira vez no Brasil será editado em toda a extensão de suas histórias) e Bórgia (volumes 1 e 2), ambos de Manara. A editora publicou ainda Garotas de Tóquio e Valentina 1965-66. Em breve, irá lançar Omaha – the cat dancer, de Reed Walter e Kate Worley (uma mulher!), Emanuelle, de Guido Crepax, e histórias de Giovanna Casotto, artista (uma italiana!) dedicada a quadrinhos eróticos.

Em tempo: Tentação à italiana, da Opera Graphica, teve sua primeira edição esgotada. Mas o autor do livro garantiu que até julho deste ano sai uma nova edição com um caderno encartado de imagens coloridas.

(© JC Online)


Auto-representação feminina revela um discurso do corpo entre desenhistas mulheres

Duas cartunistas em contextos distintos, porém em um plano único: o da auto-representação feminina nos desenhos. Maitena Burundarena e Marguerita Fahrer foram os focos da dissertação de mestrado da jornalista potiguar Daiany Dantas que, em uma ampla pesquisa sobre a representação da mulher nas histórias em quadrinhos, defende que a construção da figura feminina nas HQs parte das diferenças de corpos. Segundo Daiany, existe um “discurso no corpo” nos quadrinhos ocidentais que se manifesta em grotescas diferenças físicas entre homens e mulheres.

A maneira como desenhistas sempre maximizaram as curvas e detalhes das formas femininas está na base da construção de personagens fetichizadas quase sempre por uma indústria da libido. “Em autores como Crepax, Manara e Forest, o corpo feminino - sua nudez exuberante e explícita - era um universo alheio e fetichizado, aberto a especulações de toda ordem e estilizações das mais variadas. Suas musas eram miragens do desejo fetichizado. Crepax fazendo Valentina gozar com um aparelho de TV? Quer coisa mais voyer?”, opina Daiany.

Para ela, há uma outra perspectiva do corpo na observação do trabalho de Maitena e Marguerita, esta última uma australiana que veio ao Brasil aos quatro anos de idade, publicando em periódicos como Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde na década de 70. “Há uma homogeneidade entre figuras masculinas e femininas nos traços das mulheres. Não existe uma grande diferença entre seus corpos nesses desenhos”, afirma a autora do trabalho Sexo, Mentiras e HQ: representação e auto-representação das mulheres nos quadrinhos.

“O questionamento do ‘corpo aos olhos do outro’ é um velho incômodo feminista que denuncia a escassez de representações feitas por mulheres e sua exclusão da produção cultural. Há um grupo de ativistas que organiza protestos na frente de museus com rostos de gorilas colados sobre as inúmeras obras que exploram a nudez feminina. Elas têm um ditado que é mais ou menos assim: “não é assim que as mulheres devem entrar nos museus”. As mulheres eram, desde os princípios, boêmias, prostitutas, musas, namoradas dos artistas. São muitos os estudos que apontam uma nítida diferença entre a forma que homens e mulheres representam a nudez”, diz a pesquisadora.

SHOUJO – Se no Ocidente Maitena é uma ilha em um mar de artistas homens, no Japão, nomes como os de Riyoko Ikeda, Takemiya Keiko e Hagio Moto são apenas alguns entre tantos outros no grande número de mulheres quadrinistas. As que foram citadas acima pertencem a uma das mais famosas gerações de artistas no Japão que ficaram famosas nos anos 70. A maior parte desenhava especificamente para o público do mesmo gênero. Ainda assim, deram abertura no mercado para que outras desenhistas atingissem públicos mais heterogêneos. De forma geral, a representação feminina construída nesses mangás respondia (e ainda responde) a um modelo idílico da adolescente romântica. No entanto, por serem criadas por mulheres, essas histórias construíram uma autonomia de voz e uma postura própria das personagens que ainda hoje são raras entre a produção de massa dos comics norte-americanos.

(© JC Online)

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