Editoras brasileiras relançam clássicos eróticos como Valentina, dialogando com novos olhares femininos
CAROL ALMEIDA
Herdeira de uma história escrita majoritariamente pelo
cromossomo Y, a cultura pop ocidental nasceu de um direcionamento
consumista unilateral. A linha de partida e o ponto de chegada da
economia dessa indústria foi sempre a mesma: o olhar masculino. As
histórias em quadrinhos, ambiente por excelência imerso na gênese
dessa expressão pop, reflete em seu percurso as direções que esse
olhar deu à representação feminina. Daquele começo do século 20 até
hoje, muitas mulheres passaram pelas páginas de autores que as
trataram das mais diversas maneiras, alguns com raiva ou indiferença,
outros com devoção. Desses últimos, o jornalista e escritor Gonçalo
Junior deteve sua atenção, no livro Tentação à italiana (Opera
Graphica), lançado há quase um ano, em junho de 2005.
O fato é que, desde então, editoras brasileiras resolveram tirar do
baú autores e personagens esquecidos pelo tempo e pelas preocupações
comportamentais da mulher pós-moderna. Há um ano, livrarias de todo o
País recebem álbuns que agora resgatam as voluptuosas moças de Milo
Manara, bem como a languidez intelectual da Valentina de Guido Crepax. Reedições de clássicos de ambos
os autores chegam ao mercado ao lado de novas histórias, escritas por
jovens artistas. O bombardeio dessa erupção editorial da libido
contida nos desenhos de coxas e seios provoca muito mais do que a
revisão de um gênero específico das HQs, conhecido como erótico. A
chegada desses álbuns indica também que, nos primeiros anos do novo
milênio, personagens datadas por um contexto político podem se
reinventar e dialogar com uma nova perspectiva da representação
feminina nos quadrinhos, agora não mais monopolizada pelo tal olhar
masculino.
Porque se na década de 80 Miguel Paiva ditava o estilo da mulher
moderna com sua Radical Chic, hoje a argentina Maitena desempenha
função semelhante com o benefício da causa própria. Naturalmente, a
auto-representação feminina nos quadrinhos ainda é minúscula diante do
poderio do Clube do Bolinha, mas é sabido que, mesmo entre autores
homens, o perfil das mulheres vem mudando dos anos 90 para cá. Prova
disso estão em artistas como os norte-americanos Terry Moore (Estranhos
no paraíso, Via Lettera) e Daniel Clowes (Como uma luva de
veludo moldada em ferro, Conrad), que partem de uma narrativa do
cotidiano banal para lidar com suas personagens.
Do outro lado do mapa, no Japão, o francês Frédéric Boilet usa a
técnica mais antiga das HQs eróticas, o voyerismo, para falar também
de outras mulheres, para quem a liberação sexual é conversa de mãe.
O espinafre de Yukiko e o mais recente Garotas de Tóquio
(este dentro da coleção Eros da Conrad Editora) são álbuns que
espelham mulheres livres das preocupações políticas que ditaram aquilo
que o pesquisador brasileiro Moacy Cirne define como “civilização do
sexismo” dos anos pré e pós maio de 1968 (marco do discurso libertário
europeu).
No Brasil, cuja produção de massa ainda está nas mãos daqueles que
detém as tiras de humor, a representação das mulheres poderia ganhar
um capítulo à parte fossem elas observadas pela ótica de um único
cartunista: Angeli. Da porralouquice de Rê Bordosa até o diálogo
amorfo das adolescentes Luke e Tantra cria-se toda uma linha do
ideário feminino dos anos 80 até hoje. Em Aline e, mais recentemente,
em Kiki, ambas criações de Adão Iturrusgarai, construíram-se
descendentes do olhar comportamental que os homens fazem das mulheres.
Sucessos entre o público feminino, esses desenhistas são, contudo,
resultado de um padrão humorístico lançado naqueles mesmo anos 80 da
Rê Bordosa.
(©
JC Online)
O erotismo como
válvula de escape da repressão
Relançamentos de títulos dos anos 60, 70 e 80 falam de um tempo
político distinto daquele que hoje dá origem a álbuns do gênero
Aos 41 anos, Valentina não perdeu a forma, e muito menos a aptidão
provocativa. No fim do ano passado, foi lembrada no Brasil em edição
de luxo pela Opera Graphica com o álbum Desnudando Valentina,
de Marco Aurélio Lucchetti. Nesta semana, chega às livrarias por outra
editora, a Conrad, nova edição de porte com todas as histórias
publicadas entre 1965 e 1966 da fotógrafa mais famosa dos quadrinhos.
Falar de Valentina é essencial para entender a localização da persona
feminina nos quadrinhos. Apesar de ser geralmente citada em referência
a seu conteúdo erótico, ela conduz seus leitores, homens e mulheres, a
perceber como a metalinguagem é essencial na construção de uma
personagem, mesmo quando ela ainda responde a fetiches construídos
pelos homens.
“O Tentação à italiana nasceu dessa observação que fiz sobre
o olhar apressado, equivocado e pré-concebido que a crítica fazia em
relação aos autores dos quadrinhos eróticos. Se costuma apontar que os
caras desenham apenas mulheres deslumbrantes. Mas elas são muito mais
do que mulheres maravilhosas para leitores masculinos se masturbarem.
As histórias desses autores são de profundo conteúdo literário, com
referências ao cinema, à arquitetura, à música, e ao comportamento
político e social de cada época”. Segundo ele, personagens como
Valentina, “desafiaram uma certa ditadura masculina”.
Rogério de Campos, diretor da editora Conrad, lembra que toda
repressão à sensualidade e outros atributos femininos tem origem que
vai além da mera “força do hábito” histórica em encerrar as mulheres
em papéis domésticos (de cama, mesa e banho). Nos anos 50, com a
criação do selo de censura às histórias em quadrinhos
norte-americanas, as personagens femininas foram esmagadas por uma
política reacionária.
“O Comics Code nos Estados Unidos teve um efeito não apenas lá, mas
no mundo ocidental inteiro. Já no Japão quando houve uma tentativa de
controle dos quadrinhos, surgiram as revistas shoujo (voltadas para
meninas adolescentes) e vários outros segmentos desenhados e dedicados
às mulheres. A evolução desses quadrinhos femininos no Japão serve de
exemplo para o que poderia ter ocorrido no resto do mundo não fosse o
Comics Code”.
A citação de Campos serve para lembrar que, ao contrário dos
comics norte-americanos, os mangás conseguiram desde sua origem
criar um amplo público feminino construindo histórias a partir do
ponto de vista de famosas desenhistas, especializadas e dedicadas a
segmentos bem específicos de mulheres japonesas. Existem, por exemplo,
edições apenas para mulheres que sofrem com suas sogras (ver texto
ao lado).
Em se tratando de quadrinhos eróticos (e tendo, claro, a mulher
como elemento principal), seis novos álbuns estão hoje no mercado. Uma
é da Pixel Media, que relançou Gullivera, de Milo Manara, e
cinco são da Conrad: O Clic (clássico que pela primeira vez no
Brasil será editado em toda a extensão de suas histórias) e Bórgia
(volumes 1 e 2), ambos de Manara. A editora publicou ainda Garotas
de Tóquio e Valentina 1965-66. Em breve, irá lançar
Omaha – the cat dancer, de Reed Walter e Kate Worley (uma
mulher!), Emanuelle, de Guido Crepax, e histórias de Giovanna
Casotto, artista (uma italiana!) dedicada a quadrinhos eróticos.
Em tempo: Tentação à italiana, da Opera Graphica, teve sua
primeira edição esgotada. Mas o autor do livro garantiu que até julho
deste ano sai uma nova edição com um caderno encartado de imagens
coloridas.
(©
JC Online)
Auto-representação feminina revela um discurso do corpo entre
desenhistas mulheres
Duas cartunistas em contextos distintos, porém em um plano único: o da
auto-representação feminina nos desenhos. Maitena Burundarena e
Marguerita Fahrer foram os focos da dissertação de mestrado da
jornalista potiguar Daiany Dantas que, em uma ampla pesquisa sobre a
representação da mulher nas histórias em quadrinhos, defende que a
construção da figura feminina nas HQs parte das diferenças de corpos.
Segundo Daiany, existe um “discurso no corpo” nos quadrinhos
ocidentais que se manifesta em grotescas diferenças físicas entre
homens e mulheres.
A maneira como desenhistas sempre maximizaram as curvas e detalhes
das formas femininas está na base da construção de personagens
fetichizadas quase sempre por uma indústria da libido. “Em autores
como Crepax, Manara e Forest, o corpo feminino - sua nudez exuberante
e explícita - era um universo alheio e fetichizado, aberto a
especulações de toda ordem e estilizações das mais variadas. Suas
musas eram miragens do desejo fetichizado. Crepax fazendo Valentina
gozar com um aparelho de TV? Quer coisa mais voyer?”, opina
Daiany.
Para ela, há uma outra perspectiva do corpo na observação do
trabalho de Maitena e Marguerita, esta última uma australiana que veio
ao Brasil aos quatro anos de idade, publicando em periódicos como
Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde na década de 70. “Há
uma homogeneidade entre figuras masculinas e femininas nos traços das
mulheres. Não existe uma grande diferença entre seus corpos nesses
desenhos”, afirma a autora do trabalho Sexo, Mentiras e HQ:
representação e auto-representação das mulheres nos quadrinhos.
“O questionamento do ‘corpo aos olhos do outro’ é um velho incômodo
feminista que denuncia a escassez de representações feitas por
mulheres e sua exclusão da produção cultural. Há um grupo de ativistas
que organiza protestos na frente de museus com rostos de gorilas
colados sobre as inúmeras obras que exploram a nudez feminina. Elas
têm um ditado que é mais ou menos assim: “não é assim que as mulheres
devem entrar nos museus”. As mulheres eram, desde os princípios,
boêmias, prostitutas, musas, namoradas dos artistas. São muitos os
estudos que apontam uma nítida diferença entre a forma que homens e
mulheres representam a nudez”, diz a pesquisadora.
SHOUJO – Se no Ocidente Maitena é uma ilha em um mar de
artistas homens, no Japão, nomes como os de Riyoko Ikeda, Takemiya
Keiko e Hagio Moto são apenas alguns entre tantos outros no grande
número de mulheres quadrinistas. As que foram citadas acima pertencem
a uma das mais famosas gerações de artistas no Japão que ficaram
famosas nos anos 70. A maior parte desenhava especificamente para o
público do mesmo gênero. Ainda assim, deram abertura no mercado para
que outras desenhistas atingissem públicos mais heterogêneos. De forma
geral, a representação feminina construída nesses mangás respondia (e
ainda responde) a um modelo idílico da adolescente romântica. No
entanto, por serem criadas por mulheres, essas histórias construíram
uma autonomia de voz e uma postura própria das personagens que ainda
hoje são raras entre a produção de massa dos comics
norte-americanos.
(©
JC Online) |