Em edição de luxo lançada pela Opera
Graphica, Gonçalo Junior analisa a arte erótica de Crepax, Manara e
Serpieri
DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL
Se
as histórias em quadrinhos levaram décadas para serem reconhecidas como
arte, quando o sexo entra na equação, a resistência costuma ser ainda
maior.
Nada que impeça o jornalista Gonçalo Júnior, que no ano passado lançou
pela Companhia das Letras "Guerra dos Gibis", um dos mais aprofundados
relatos sobre a censura aos quadrinhos no Brasil, de tentar a proeza.
"Tentação à Italiana" (Opera Graphica), edição em formato grande de luxo
com 312 páginas e cerca de 500 ilustrações, apóia-se nas obras de Guido
Crepax, Milo Manara e Paolo Eleuteri Serpieri para provar que, por
debaixo dos lençóis de Valentina e das cenas de sexo devasso de Cláudia,
a protagonista de "O Clic", existe, sim, arte inteligente. Erotismo, mas
nunca pornografia apelativa.
"Não se trata de um estudo acadêmico, amparado numa linguagem técnica",
adianta Gonçalo. "Procurei dar à narrativa um caráter jornalístico, de
resenha literária. Quero que o leitor se sinta estimulado a ler o livro
e a descobrir esses autores subestimados."
Estímulos, certamente, não vão faltar. Criada em maio de 1965 para a
revista "Linus" pelo desenhista italiano Guido Crepax, a personagem de
corpo esguio e corte de cabelo chanel Valentina, misto de Brigitte
Bardot com Louise Brooks, é reproduzida em páginas e páginas do livro.
Para além do apelo visual, o autor tenta explicitar, nos dois capítulos
dedicados a Crepax, que tão ou mais importante que a nudez da heroína
são as outras três camadas de leitura de histórias como "Valentina
Assassina?" ou "Valentina no Metrô", ambas publicadas aqui pela Martins
Fontes.
"Crepax é o Will Eisner dos quadrinhos europeus. Há pelo menos quatro
leituras diferentes em "Valentina': o erotismo, num primeiro plano; o
psicanalítico, influenciado pelos estudos do inconsciente de Freud; o
literário, que vem de referências a obras citadas pela personagem; e os
desenhos propriamente ditos, em que Crepax escondia brincadeiras e
mensagens relacionadas com as idéias que ele queria passar na história."
A
importância da obra do artista, morto em 2003 "no momento em que eu
colocava o ponto-final no livro", é destacada nas seções seguintes de
"Tentação à Italiana". "No início da carreira [em meados dos 70], Manara
copiou os quadrinhos de Crepax", sustenta Gonçalo. Mais que a influência
no traço, o autor sustenta que o sucessor de Crepax que ficaria
conhecido no início da década de 80 com a série "O Clic" jamais teria
chegado até lá não fosse a revolução temática que Crepax introduziu nos
quadrinhos 20 anos antes. "Ler suas histórias [de Crepax] era como ver
um filme de Michelangelo Antonioni", escreve Gonçalo no livro,
justificando o fascínio que os quadrinhos eróticos de Crepax passaram a
exercer na juventude brasileira a partir de 1971, quando a primeira
história de Valentina foi publicada na revista alternativa "O Grilo".
Mas Manara não é só o "discípulo" de Crepax e garante sozinho três
capítulos da obra, confundindo as distinções entre arte erótica e
pornografia. Com a fama de desenhar as mulheres mais belas das histórias
em quadrinhos, Manara representa uma espécie de contraponto pop ao
hermetismo intelectual de Crepax.
Sua série "O Clic", que mostrava os impulsos sexuais incontroláveis de
uma socialite italiana provocados por um chip implantado em seu cérebro,
foi para o cinema e a televisão nos anos 80 -mais tarde, a HQ "Perfume
do Invisível" também viraria um seriado na TV americana. Já no auge de
sua carreira, em 89, Manara colaborou com Federico Fellini na HQ "Viagem
a Tulum", experiência contada em detalhes no livro de Gonçalo, cujo
ponto de partida é justamente a influência do cinema italiano dos anos
50 e 60 (Fellini, Visconti, Pasolini, De Sica, Rosi etc.) na abertura
dos caminhos (a)morais para o sexo nas HQs.
Finalmente, nas últimas seções, o autor debruça-se sobre a personagem
"Druuna", de Serpieri. Outro discípulo de Crepax -"ele radicaliza a
idéia dos sonhos de Valentina"-, Serpieri ocupa dois capítulos do livro
e comete, segundo Gonçalo, "uma das mais bem elaboradas e interessantes
sagas de ficção-científica e de erotismo das histórias em quadrinhos.
Não seria exagero afirmar que nenhum autor do gênero foi tão longe na
concepção de um universo idealizado, a partir de uma infinidade de
influências do cinema, da literatura e dos gibis."
Talvez seja isso mesmo... Difícil será fazer fazer o leitor tirar os
olhos das formas arredondadas da heroína e começar a prestar atenção ao
texto.
Tentação
à Italiana
Autor: Gonçalo Júnior
Editora: Opera Graphica
Quanto: R$ 98 (312 págs.)
Onde encontrar: Comix Book Shop (al. Jaú, 1.998, SP, tel.
0/xx/11/3088-9116)