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Autor brasileiro desvenda tentações do desenho italiano

28/06/2005

Guido Crepax


Em edição de luxo lançada pela Opera Graphica, Gonçalo Junior analisa a arte erótica de Crepax, Manara e Serpieri

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

Se as histórias em quadrinhos levaram décadas para serem reconhecidas como arte, quando o sexo entra na equação, a resistência costuma ser ainda maior.

Nada que impeça o jornalista Gonçalo Júnior, que no ano passado lançou pela Companhia das Letras "Guerra dos Gibis", um dos mais aprofundados relatos sobre a censura aos quadrinhos no Brasil, de tentar a proeza.

"Tentação à Italiana" (Opera Graphica), edição em formato grande de luxo com 312 páginas e cerca de 500 ilustrações, apóia-se nas obras de Guido Crepax, Milo Manara e Paolo Eleuteri Serpieri para provar que, por debaixo dos lençóis de Valentina e das cenas de sexo devasso de Cláudia, a protagonista de "O Clic", existe, sim, arte inteligente. Erotismo, mas nunca pornografia apelativa.

"Não se trata de um estudo acadêmico, amparado numa linguagem técnica", adianta Gonçalo. "Procurei dar à narrativa um caráter jornalístico, de resenha literária. Quero que o leitor se sinta estimulado a ler o livro e a descobrir esses autores subestimados."

Estímulos, certamente, não vão faltar. Criada em maio de 1965 para a revista "Linus" pelo desenhista italiano Guido Crepax, a personagem de corpo esguio e corte de cabelo chanel Valentina, misto de Brigitte Bardot com Louise Brooks, é reproduzida em páginas e páginas do livro.

Para além do apelo visual, o autor tenta explicitar, nos dois capítulos dedicados a Crepax, que tão ou mais importante que a nudez da heroína são as outras três camadas de leitura de histórias como "Valentina Assassina?" ou "Valentina no Metrô", ambas publicadas aqui pela Martins Fontes.

"Crepax é o Will Eisner dos quadrinhos europeus. Há pelo menos quatro leituras diferentes em "Valentina': o erotismo, num primeiro plano; o psicanalítico, influenciado pelos estudos do inconsciente de Freud; o literário, que vem de referências a obras citadas pela personagem; e os desenhos propriamente ditos, em que Crepax escondia brincadeiras e mensagens relacionadas com as idéias que ele queria passar na história."

A importância da obra do artista, morto em 2003 "no momento em que eu colocava o ponto-final no livro", é destacada nas seções seguintes de "Tentação à Italiana". "No início da carreira [em meados dos 70], Manara copiou os quadrinhos de Crepax", sustenta Gonçalo. Mais que a influência no traço, o autor sustenta que o sucessor de Crepax que ficaria conhecido no início da década de 80 com a série "O Clic" jamais teria chegado até lá não fosse a revolução temática que Crepax introduziu nos quadrinhos 20 anos antes. "Ler suas histórias [de Crepax] era como ver um filme de Michelangelo Antonioni", escreve Gonçalo no livro, justificando o fascínio que os quadrinhos eróticos de Crepax passaram a exercer na juventude brasileira a partir de 1971, quando a primeira história de Valentina foi publicada na revista alternativa "O Grilo".

Mas Manara não é só o "discípulo" de Crepax e garante sozinho três capítulos da obra, confundindo as distinções entre arte erótica e pornografia. Com a fama de desenhar as mulheres mais belas das histórias em quadrinhos, Manara representa uma espécie de contraponto pop ao hermetismo intelectual de Crepax.

Sua série "O Clic", que mostrava os impulsos sexuais incontroláveis de uma socialite italiana provocados por um chip implantado em seu cérebro, foi para o cinema e a televisão nos anos 80 -mais tarde, a HQ "Perfume do Invisível" também viraria um seriado na TV americana. Já no auge de sua carreira, em 89, Manara colaborou com Federico Fellini na HQ "Viagem a Tulum", experiência contada em detalhes no livro de Gonçalo, cujo ponto de partida é justamente a influência do cinema italiano dos anos 50 e 60 (Fellini, Visconti, Pasolini, De Sica, Rosi etc.) na abertura dos caminhos (a)morais para o sexo nas HQs.

Finalmente, nas últimas seções, o autor debruça-se sobre a personagem "Druuna", de Serpieri. Outro discípulo de Crepax -"ele radicaliza a idéia dos sonhos de Valentina"-, Serpieri ocupa dois capítulos do livro e comete, segundo Gonçalo, "uma das mais bem elaboradas e interessantes sagas de ficção-científica e de erotismo das histórias em quadrinhos. Não seria exagero afirmar que nenhum autor do gênero foi tão longe na concepção de um universo idealizado, a partir de uma infinidade de influências do cinema, da literatura e dos gibis."

Talvez seja isso mesmo... Difícil será fazer fazer o leitor tirar os olhos das formas arredondadas da heroína e começar a prestar atenção ao texto.

Tentação à Italiana
Autor:
Gonçalo Júnior
Editora: Opera Graphica
Quanto: R$ 98 (312 págs.)
Onde encontrar: Comix Book Shop (al. Jaú, 1.998, SP, tel. 0/xx/11/3088-9116)

(© Folha de S. Paulo)

 


Autor analisa erotismo das HQs

JOTABÊ MEDEIROS
Agência Estado

O jornalista e advogado baiano Gonçalo Júnior, de 37 anos, lançou, no ano passado, A guerra dos gibis (Companhia das Letras, 418 páginas., R$ 52), uma pesquisa de rara profundidade sobre a formação do mercado editorial brasileiro e a censura imposta aos quadrinhos entre os anos 30 e 60. Levou dez anos pesquisando para o trabalho.

Agora, Gonçalo volta com outra grande novidade (literalmente grande, quase um coffee table book ricamente ilustrado): o livro Tentação à Italiana (Opera Graphica Editora, 312 páginas., R$ 98), no qual analisa as obras-mestras de três artistas dos comics: os italianos Milo Manara, Guido Crepax e Paolo Eleuteri Serpieri, criadores de personagens como Druuna e Valentina, sinônimos de quadrinho erótico. O autor disse que o livro nasceu de uma sugestão do editor Carlos Mann e de esforços seus para escrever uma obra mais teórica.

AE – O que há de comum entre Crepax, Manara e Serpieri, além de serem italianos? Você acha que os quadrinhos espanhóis e franceses são mais puritanos?

GJ – Não acho. Basta lembrarmos o pioneirismo de Barbarella em 62 e o que ela fez ao confrontar valores morais. O que me motivou a fixar nos três foi o fato de serem, na minha opinião, os mais importantes autores do erotismo europeu na segunda metade do século 20. Isso inclui sofisticação, ousadia e complexidade temática. Além disso, havia o fato comum de serem italianos, como você disse.

AE – O que os une?

GJ – Um sujeito chamado Guido Crepax. Fiz uma leitura exaustiva de praticamente tudo que eles publicaram em português, espanhol e inglês para escrever esse livro. Passei pelo menos seis meses analisando cada álbum. Há mais de duas décadas acompanho seus trabalhos e uma das conclusões a que cheguei é quanto ao papel revolucionário que Crepax desempenhou na evolução da linguagem dos quadrinhos nesses 40 anos. Poucos autores, durante tanto tempo, experimentaram e estabeleceram diretrizes nos comics como ele. Por isso, chamo-o de Will Eisner europeu. Crepax nunca parou de inventar – basta lembrar que Valentina envelhece num ritmo quase próximo do nosso. Ao me debruçar sobre Manara e Serpieri, fiquei impressionado no quanto tudo que Crepax estabeleceu em sua famosa personagem está presente na obra deles. Mesmo com um espaço de quase 20 anos entre o surgimento de Valentina, O Clic e Druuna, a abordagem freudiana explorada por Crepax é forte nos dois autores. Exemplos: as fantasias sexuais e a presença do sonho como espaço para tratar do sexo, principalmente em Druuna.

AE – Serpieri disse que não vê fronteira entre erotismo e pornografia. Você faz a distinção?

GJ – Faço e tive acesso a entrevistas nas quais ele aprofunda essa discussão. Meu propósito com o livro era fugir um pouco da frivolidade, do modo de ver esses artistas como meros desenhistas de mulheres deslumbrantes em situações engraçadas e ou inusitadas apenas para tirar a roupa e fazer sexo. Percebo que todos eles são autores cultos e que conseguem diluir elementos diversos, inclusive de outras formas de artes como a plástica, o cinema e a literatura para criar universos bem estruturados. Druuna é bom exemplo disso. No seu caso, chamo-a de heroína pós-moderna, por causa da impressionante capacidade de Serpieri em pegar várias obras claramente perceptíveis, digeri-las e reciclá-las para compor o seu mundo. Tudo isso os aproxima muito mais do erotismo, diferentemente da pornografia – que vejo como preconceituosa, machista e que acaba por trazer sérias distorções para quem a consome com algum excesso em relação ao sexo oposto. As mulheres na pornografia são masculinizadas em seu comportamento. Ou seja, vêm o sexo como os homens, um absurdo. Isso cria falsa expectativa, distorce no momento em que há contato entre os dois sexos, quase sempre com prejuízo para a mulher. O homem banaliza seu olhar quanto às atitudes femininas, espera ações e reações que só vê na pornografia. Crepax, Manara e Serpieri vão além. Fazem erotismo refinado, carregado de referências e sem esse conceito de pornografia, embora apresentem cenas de sexo explícito.

AE – As mulheres desses três autores não seriam meras mulheres-objeto na sua opinião?

GJ – Não. É preciso voltar aos anos de 1960 para compreender melhor. Valentina antecipou aspectos da revolução sexual ao explorar o prazer sexual, inclusive o solitário, a masturbação. Não era submissa, buscava a satisfação sexual, não queria nem saber de compromissos formalizados, como a mulher sempre foi educada, ou obrigada, a buscar. E isso era tudo que havia de mais anticonvencional naquela época. Mesmo no sonho, ela não só tinha fantasias como realizava da forma que queria, com quem queria, como se levasse pelas mãos os leitores masculinos ao universo feminino do erotismo. Crepax abre esse mundo para o público. Os leitores passaram a ver que as mulheres tinham desejos e, também poder e habilidade para manipulá-los. Druuna segue esse caminho. Ela só transa com quem quer, usa o sexo para sobreviver e manipular a vontade num mundo bárbaro e degradado. A maioria das personagens de Manara tem uma relação de independência com o sexo. São cheias de prazer, desejos e não estão nem aí para quem quer lhe impor regras. Creio que, mais que libertinos, Crepax, Manara e Serpieri foram e são libertários.

(© JC Online)

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