Presidente tende a beneficiar italiano se decisão ficar em suas mãos,
mas prefere não ser protagonista no caso
Felipe Recondo e Christiane Samarco
BRASÍLIA - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez chegar um recado a
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): se ficar em suas mãos a
decisão final sobre o caso do ex-ativista político Cesare Battisti,
condenado a prisão perpétua pela Justiça italiana, ele não o mandará de
volta à Itália. Isso ocorrerá se o STF apenas autorizar a extradição de
Battisti.
Mas junto com o recado, encaminhado por emissários presidenciais,
Lula deu a senha para evitar o confronto com o STF. Deixou claro que
ficará de mãos atadas se o tribunal mudar sua jurisprudência e tornar
obrigatório o cumprimento das decisões do Supremo nos processos de
extradição. Hoje, o STF apenas autoriza a extradição, cabendo ao
presidente da República viabilizá-la.
É esta a estratégia que colaboradores e amigos do presidente estão
trabalhando junto a ministros do STF, para livrar Lula do desgaste de
uma escolha política difícil e inconveniente. Afinal, mais do que a
resistência pessoal à extradição, o desafio do presidente é administrar
uma situação que lhe é desfavorável, qualquer que seja a decisão. Se
entrega Battisti ao governo italiano, desautoriza o ministro da Justiça,
Tarso Genro, que concedeu a ele o status de refugiado político; se
decide mantê-lo no Brasil, mesmo com a autorização da Justiça para
mandá-lo embora, entrará em conflito com o Supremo.
Desde que o assunto chegou ao Judiciário, Tarso Genro pressiona o
presidente, com o argumento de que Lula pode se negar a entregar
Battisti à Itália. Levou ao chefe, inclusive, os argumentos jurídicos
que embasam essa tese. Mas esbarrou na resistência de Lula, que não quer
confrontar o STF. Repetidas vezes, Lula afirmou que cumpriria o que
fosse decidido pelo Judiciário. O que ele não aceita de jeito algum é o
papel de protagonista da extradição.
O maior aliado de Lula a partir de agora será o presidente do
Supremo, Gilmar Mendes. É que a tese da mudança da jurisprudência, que
estará em discussão, tem em Mendes seu maior defensor. Antes mesmo de o
caso Battisti entrar em pauta, o presidente do STF já pregava a tese de
que, em processos de extradição, a palavra final do Supremo não deveria
ser meramente autorizativa. Uma vez tomada a decisão, seu cumprimento
passaria a ser compulsório, independentemente da vontade presidencial.
Hoje, a tendência do Supremo é a de ser solidário à Justiça italiana,
criticada pelo ministro Tarso Genro quando concedeu o refúgio a
Battisti. Um interlocutor de Lula que acompanha o debate nos bastidores
do STF aposta que a mudança de entendimento, tornando a decisão do
Supremo "autoexecutável", também será concretizada. Mas o assunto é
polêmico.
Assessores jurídicos do governo e pelo menos um ministro do STF
avaliam que o custo desta saída política seria elevado. Afinal, a
mudança de jurisprudência patrocinada pelo Supremo tiraria das mãos do
presidente o poder discricionário de autorizar a entrega do estrangeiro
ao governo do outro País, passando-o ao tribunal.
Em todos os processos de extradição, a tarefa atual do STF é de
apenas verificar se as condições para a extradição existem ou não. Nos
casos em que o extraditando também cometeu crimes no Brasil, o tribunal
julgou, em várias ações, que é da competência única do presidente
decidir se é conveniente mantê-lo no Brasil, para que pague pelos atos
aqui cometidos, ou se o extradita imediatamente.
O STF nunca deparou com uma situação como essa, em que a extradição
pode ser autorizada pela Justiça e ignorada depois pelo presidente. Por
ser um caso inédito, a legislação nem sequer prevê o que deve ser feito
com Battisti - se seria solto imediatamente ou permaneceria preso
enquanto houvesse possibilidade de recurso. A lei diz apenas que será
solto o cidadão estrangeiro se o Estado que pediu sua extradição não o
buscar em 60 dias.
(©
Estadão)
STF analisará seis extradições em ''ensaio'' para julgamento de
Battisti
Gilmar Mendes abre caminho para discutir se é Lula ou o Supremo quem
terá a palavra final nesses casos
Felipe Recondo
O presidente do STF, Gilmar Mendes, "esquentou" a pauta de votações da
corte da próxima quinta-feira com seis processos de extradição. Será a
chance de ministros discutirem pontos que podem ser importantes para a
conclusão do processo do ex-ativista político Cesare Battisti, condenado
à prisão perpétua por quatro assassinatos na Itália.
Uma das questões que devem ser debatidas é se o presidente da República
pode se recusar a dar seguimento a uma extradição mesmo quando ela for
autorizada pelo STF. Esse debate, preparado como uma reação natural às
articulações políticas destravadas pelo Planalto, vai ajudar a definir o
destino do ex-militante italiano. Isso porque Lula fez chegar ao Supremo
o recado de que não mandará Battisti de volta à Itália se tiver de dar a
última palavra no caso.
Para que a palavra final não seja do presidente, o tribunal terá de
rever sua jurisprudência e tornar obrigatório o cumprimento de decisões
judiciais em casos de extradição. O próprio Gilmar Mendes capitaneia um
movimento pela revisão da jurisprudência, para obrigar o presidente a
cumprir a determinação do STF.
Três processos já julgados pelo STF e aprovados por unanimidade mostram
que não será tarefa simples alterar a interpretação da corte sobre o
tema. No mais recente desses casos, a ministra Cármen Lúcia, relatora do
processo do chileno Sebastian Andres Guichard, disse, em 2008, que o
presidente da República pode se recusar a extraditar alguém,
independentemente da autorização do STF.
"O STF limita-se a analisar a legalidade e a procedência do pedido de
extradição: indeferido o pedido, deixa-se de constituir o título
jurídico sem o qual o presidente da República não pode efetivar a
extradição; se deferida, a entrega do súdito ao Estado requerente fica a
critério discricionário do presidente da República", disse ela em seu
voto, aprovado por todos os ministros que hoje integram a Corte.
E a ministra acrescenta, citando o constitucionalista Celso Ribeiro
Bastos: "Compete ao presidente da República a faculdade de consumar a
extradição, isto é, mesmo que já aprovada pelo STF, a medida pode deixar
de ter seguimento, se assim o entender o chefe do Poder Executivo".
Em outro caso, do general boliviano Luís Garcia Meza Tejada, o ministro
Celso de Mello valeu-se do mesmo argumento em seu voto. "O presidente da
República - que constitui o único árbitro da conveniência e oportunidade
da entrega do extraditando ao Estado requerente - não pode ser
constrangido a abster-se do exercício dessa prerrogativa." O terceiro
dos processos é de 1980. "É da competência do presidente da República
deliberar sobre a conveniência da pronta efetivação da extradição",
afirmou o então ministro Djaci Falcão.
Entre os atuais ministros, a questão é controversa. Um deles avaliou que
a recusa de Lula de entregar Battisti, contrariando o STF, colocaria o
País numa posição de "segunda categoria" no cenário internacional.
Outro, contrário à alteração do entendimento do STF, acha que o caso
acabará na Corte de Haia, onde são resolvidos conflitos entre países.
(©
Estadão)
Cesare Battisti: refugiado
político?
FABIO PORTA
NO DECORRER de minha recente visita a Brasília, junto com o vice-presidente
da Câmara dos Deputados italiana, Maurizio Lupi, tive a ocasião de explicar
ao presidente da Câmara brasileira, Michel Temer, e a meus colegas
brasileiros a posição do Parlamento italiano sobre o "caso Battisti",
confirmada por uma moção aprovada por unanimidade em 26 de fevereiro
passado.
Em todos os nossos encontros reafirmamos o pleno e grande respeito pelas
instituições brasileiras, desaprovando aqueles que na Itália utilizaram de
maneira imprópria e inoportuna esse delicado episódio para voltar a propor
velhos e ofensivos estereótipos sobre o Brasil. Nesse contexto, o pedido de
extradição de Cesare Battisti, apresentado pelo governo Prodi logo após a
prisão do terrorista italiano no Rio de Janeiro, em 2007, deve ser
considerado pelos fatos específicos a que se refere -e não com base em
leituras errôneas da Itália dos anos de 1970 ou, pior ainda, da Itália de
hoje.
Em longa entrevista à "Carta Capital", Giancarlo Caselli, um dos mais
respeitáveis magistrados italianos e protagonista da luta contra a máfia e o
terrorismo, recorda como são inúmeras as provas que confirmam as
responsabilidades pessoais de Battisti: testemunhos, perícias, documentos,
armas e munições sequestradas, além da reconstituição de toda a história do
PAC (Proletários Armados pelo Comunismo). Os documentos completos e os
textos das sentenças são públicos e estão disponíveis em
www.vittimeterrorismo.it. Da leitura desses documentos é fácil compreender
que Battisti foi objeto de um processo justo, no pleno respeito de todas as
regras do Estado de Direito.
O que talvez não dê para "ler" nas sentenças seja o clima e a história
política da Itália da década de 1970; algumas pessoas no Brasil tentaram
descrevê-la como um país "não democrático" dominado por "leis especiais" e
na mão de poderes ocultos como "Gladio" ou a "loja maçônica P2". A Itália
dos chamados "anos de chumbo" era, ao contrário, um Estado em que vigorava
uma democracia plena e rica, ainda que em um contexto histórico complexo e
dramático: era o país de Aldo Moro e Enrico Berlinguer e do "compromisso
histórico"; do presidente da República partigiano, o socialista Pertini; do
estatuto dos trabalhadores e das principais reformas do bem-estar social
desejadas pelos partidos de centro-esquerda.
As bombas (da "direita") fizeram terríveis carnificinas de inocentes,
como a chacina de Milão de 1969 ou aquela da estação de Bolonha de 1980. Os
projéteis (da "esquerda") atingiram "seletivamente" centenas de pessoas,
frequentemente sindi- calistas e operários, além de perso- nalidades como
Aldo Moro.
Lembro isso para afirmar uma primeira verdade: nos anos de 1970, os
terroristas de "direita" e de "esquerda" tinham um único alvo: a democracia,
o Estado de Direito, o movimento operário e, particularmente, o Partido
Comunista Italiano. Após aqueles anos, inúmeros terroristas foram parar na
cadeia. Muitos outros fugiram. Alguns vivem tranquilamente em países
democráticos -que, por razões humanitárias, não concedem a extradição que a
Itália solicita. O único terrorista italiano no mundo a ter conseguido o
status de "refugiado político" é Battisti. Por quê? A França, por exemplo,
não disse que Marina Petrella é refugiada política. Disse apenas que, por
motivos humanitários, não concederá a extradição. Ponto. Se lhe tivesse
conce- dido o status de refugiada política, meu país teria protestado, assim
como protestou por Battisti.
Pela primeira vez -e contra a decisão do Conare-, o Brasil disse isso
para Battisti. Ao conceder o status de refugiado político, supõe-se que o
interessado: a) tenha cometido crimes de caráter político; b) esteja fugindo
de um Estado ditatorial que o persegue injustamente. Mas o que há de
político por trás do assassinato de um açougueiro ou de um joalheiro e,
sobretudo, de que país ditatorial Battisti estaria fugindo?
Eu sou de esquerda desde sempre, estou na oposição ao governo Berlusconi,
mas nego que hoje na Itália haja uma ditadura. Até o ano passado, Prodi
estava no governo. Depois houve eleições e Berlusconi ganhou. Sinto muito
por isso e farei o possível para que minha facção volte a governar. Mas não
há uma ditadura na Itália. Vivo e trabalho há anos no Brasil, tenho mulher e
filhas brasileiras, amo e conheço este país e jamais aceitarei que seja
atacado e ridicularizado de forma arrogante e instrumental; com a mesma
determinação, porém, permitam-me defender a Itália de interpretações erradas
e desviantes que não têm a ver com a realidade de hoje.
FABIO PORTA, sociólogo, é deputado no Parlamento Italiano
pelo Partido Democrático. Reside no Brasil e foi eleito pela Circunscrição
do Exterior (América do Sul).
(©
Folha de S. Paulo) |