Crítica/"A Chave Estrela"
ANDREA LOMBARDI
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A Chave Estrela", de Primo Levi, narra as aventuras de Libertino Faussone,
um montador de guindastes de grande porte (os Derricks), e seu interlocutor,
um químico, que se dedica a escrever e cogita tornar-se exclusivamente
escritor. O leitor vai logo reconhecer nesse último -que desempenha também o
papel de narrador- um alter ego do próprio autor.
O tema do livro é um elogio do trabalho e um louvor à coragem, ao
espírito de aventura do trabalhador manual, no ambiente da Moscou da década
de 70, onde os dois se encontram, aguardando o resultado de uma controvérsia
de trabalho.
Dos 14 contos, 11 giram em torno das aventuras pelo mundo de Faussone, e
os restantes são dedicados a um caso estranho e inesperado que ocorreu com o
narrador. O diálogo corre num estilo manso e repetitivo, como o
funcionamento das máquinas operadas por Faussone, e relembra a fala dos
personagens de J. Conrad e os diálogos de Italo Calvino em "As Cidades
Invisíveis".
Estilo cristalino e preciso
Primo Levi é só aparentemente um escritor "fácil" e "transparente",
embora ele tenha se envolvido numa polêmica com a obra de escritores como
Kafka e Célan, que ele considerava "obscuros". A bela tradução de Maurício
Santana Dias recria fluentemente seu estilo cristalino e preciso, com suas
palavras inusuais e seus termos técnicos precisos. Naturalmente, é mais dura
a tarefa de resgatar a presença constante do dialeto piemontês (os dois
personagens são daquela região da Itália), que causa, mesmo no original
italiano, estranheza ao leitor e que pode ser reencontrada em português em
alguns momentos marcados em itálico no texto. Escrito em 1978, esse volume,
que recebeu o prestigioso Prêmio Strega, tirou de Levi o rótulo de escritor
unicamente autobiográfico. Tratam-se, porém, de relatos do trabalho,
escritos em primeira pessoa; eles representam bem ou mal um testemunho do
cotidiano.
Libertino Faussone traz no nome a profissão de fé do escritor. Por um
lado o elogio da liberdade, pois ele conta que sua família queria chamá-lo
Libero e não pôde, por causa da ditadura fascista. Por outro, no sobrenome
Faussone, o "falso" está presente, pois "faus" em piemontês significa falso,
uma problemática tematizada pelo narrador conradiano de Tufão, citado ao
final do último conto. "A Chave Estrela" pode ser lido como uma espécie de
manifesto em prol da liberdade conquistada por meio do trabalho.
Uma inversão ou redenção do nefasto bordão "o trabalho liberta", posto na
entrada do campo de concentração de Auschwitz. Sendo assim, os contos
reunidos configuram-se como reelaboração do passado e como uma nova reflexão
sobre o papel da testemunha, enquanto sobrevivente e escritor. Assim,
pode-se ler no conto "Tirésias" um aceno à problemática da culpa do
sobrevivente em relação aos demais prisioneiros que "afogaram" (citando o
livro de Primo Levi "Os Afogados e os Sobreviventes"): "Queria escrever
histórias minhas até que eu esvaziasse o saco, e depois histórias dos outros
mesmo que sejam roubadas, saqueadas, extorquidas ou recebidas de
presente...". Algo que, talvez, mostra o quanto a problemática da testemunha
se relaciona com a literatura como um todo e não é unicamente um tema
ocasional.
ANDREA LOMBARDI é professor de língua e literatura
italiana na UFRJ.
A CHAVE ESTRELA
Autor: Primo Levi
Tradução: Maurício Santana Dias
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (200 págs.)
Avaliação: ótimo
(©
Estadão)
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