Thiago Scarelli
Do UOL Notícias
Em São Paulo (SP)
A Itália adota uma postura "insultante" com o Brasil
no conflito em torno do ex-ativista Cesare Battisti, porque não se
trata de um país desenvolvido, e mente quando diz que vivia um
Estado de Direito nos anos 70. A análise é do filósofo italiano
Antonio Negri, que passou mais de dez anos preso por seu
envolvimento com a militância de esquerda na Itália.
Negri é co-autor, com Michael Hardt, do livro "Império", publicado
no Brasil em 2001 e umas das obras mais importantes e polêmicas
sobre o processo de globalização. Com Giuseppe Cocco, publicou
"Global - Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada", em
2005.
Leia abaixo a entrevista completa, concedida por Negri via telefone
desde Veneza.
UOL - Como o senhor vê a posição da Itália no caso Battisti?
Antonio Negri - A posição italiana é uma posição muito
complexa. Como se sabe, o governo italiano é um governo de direita e
é um governo que, depois de 30 anos, retomou a perseguição das
pessoas que se refugiaram no exterior depois do final dos anos 70,
depois do final dos anos nos quais na Itália houve um forte
movimento de transformação, de rebelião. E, portanto, o governo
italiano retoma hoje uma campanha pela recuperação destas pessoas.
Em particular, tentou fazê-lo com a França, para conseguir a
extradição de Marina Petrella [condenada por subversão pela justiça
italiana] e não conseguiu porque o governo francês, a presidência
francesa [Nicolas Sarkozy], impediu. Neste ponto, aparece em um
momento exemplar o caso Battisti.
UOL - O que o senhor quer dizer com perseguição? É perigoso neste
momento para Battisti retornar à Itália?
Negri - Eu não sei se é perigoso. Mas é certo que ele foi
condenado à prisão perpétua e seria para ele uma situação muito
grave.
UOL - Um dos motivos que o Brasil cita para manter o refúgio
político é a ameaça de perseguição política contra Battisti...
Negri - Mas seguramente ele seria alvo de uma perseguição
política e midiática.
UOL - Trata-se, portanto, de um temor com fundamento?
Negri - Veja bem, o governo italiano, depois de 30 anos, quer
recuperar, para fazer um exemplo, as pessoas que se refugiaram no
exterior. E que se refugiaram no exterior porque na Itália havia uma
condição de Justiça que era impossível de aguentar.UOL - O que
significa esse "exemplo"? A punição de Battisti resolveria a questão
da violência na Itália nos anos 70?
Negri - Precisamente. Resolveria em dois sentidos: por um
lado, se recupera aquilo que eles chamam 'um assassino'; e por outro
se esquece aquele que foi um Estado de Exceção, que permitiu a
detenção e a prisão preventiva de milhares de pessoas durante estes
anos. É necessário recordar que nos anos 70 o limite jurídico da
prisão preventiva era fixado em 12 anos. É necessário recordar o uso
da tortura e de processos sumários inteiramente construídos sob a
palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de
confissões. Este foi o clima dos anos 70. E não nos esqueçamos que
nos anos 70 houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram
condenadas e milhares se refugiaram no exterior. E se há quem duvide
desses números, e que quer continuar duvidando, basta que deem uma
olhada nos relatórios da Anistia Internacional naqueles anos.
Portanto, essa é uma questão muito séria. O caso Battisti é, na
verdade, um pobre exemplo de uma estrutura, de um sistema no qual a
perseguição, insisto na palavra 'perseguição', era acompanhada por
enormes escândalos na estrutura política e militar italiana. Houve
uma construção, principalmente por meio de uma loja maçônica chamada
P2, de uma série de atentados dos quais ainda hoje ninguém sabe quem
foram os autores, atentados que deixaram milhares de mortos, por
parte da direita. E o governo italiano nunca pediu, por exemplo, que
o único condenado por estes atentados seja extraditado do Japão,
onde se refugiou. Existe uma desigualdade nas relações que o governo
italiano mantém com todos os outros condenados e refugiados de
direitas que é maluca. O governo italiano é um governo quase
fascista.
UOL - Se houvesse um governo de esquerda na Itália o caso seria o
mesmo? [O líder da oposição de centro-esquerda] Romano Prodi faria o
mesmo?
Negri - Eu não acredito que Prodi faria o mesmo, mas parte da
esquerda faria o mesmo, isso é verdade.
UOL - Como o senhor vê hoje o PAC [Proletários Armados pelo
Comunismo, grupo do qual Battisti fazia parte]?
Negri - O PAC era um grupo muito marginal, mas isso não
significa que não estivesse dentro do grande movimento pela
autonomia. Mas ouça, o problema é esse: eu acho que as coisas das
quais foi acusado Battisti são coisas muito graves, mas - e isso me
parece importante dizer - estas são responsabilidades compartilhadas
por toda a esquerda verdadeira. Não se trata de um caso específico.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil construiu uma jurisprudência
pela qual foram acolhidos outros italianos nas mesmas condições que
Battisti.
UOL - E como a Itália deve solucionar esta dívida com o passado?
Negri - Isso deveria ser feito por uma anistia, mas o governo
italiano nunca quis caminhar por este terreno. Talvez tudo isso
tenha determinado tremendas conseqüências no sistema político
italiano, porque foi retirada da história da Itália uma geração ou
duas, que poderiam ter conseguido determinar uma retomada política.
É uma situação muito dramática. E gostaria de acrescentar uma coisa:
o a postura da Itália no confronto com o Brasil a respeito deste
tema é uma postura muito insultante.
UOL - Por quê?
Negri - Trata-se de uma pressão feita sobre o Brasil,
enquanto um país fraco, depois que os franceses não extraditaram à
Itália Marina Petrella. Psicologicamente, trata-se de uma operação
política e midiática muito pesada contra o Brasil, na tentativa de
restituir a dignidade da Itália, no âmbito da busca de restituir os
exilados.
UOL - O senhor acha que as autoridades italianas se sentem
especialmente ofendidas pelo fato de a decisão em favor de Battisti
vir de um país em desenvolvimento, antiga colônia de um país
europeu?
Negri - Seguramente, porque se trata de pobres que reagem
contra os ricos, contra os capitalistas.
UOL - O senhor também esteve preso?
Negri - Eu fui detido em 1979 e fiquei na cadeia até 1983, em
prisão preventiva, sem processo. Em 1983, houve um eleição
parlamentar e eu saí da cadeia porque fui eleito deputado, porque
não era ainda condenado. Fiquei preso quatro anos e meio - e poderia
ter ficado até 12. Ou seja, quando os italianos dizem que nos anos
70 foi mantido o Estado de Direito, eles mentem. E isso eu digo com
absoluta precisão, com base no meu próprio exemplo: fiquei quatro
anos e meio em uma prisão de alta segurança, prisão especial, fui
massacrado e torturado. Pude deixar a prisão apenas porque fui
eleito deputado - do contrário, eu poderia ter ficado na prisão por
12 anos, sem processo. Durante os anos que fiquei na França,
exilado, eu fui processado e condenado a 17 anos de prisão, mas que
foram reduzidos porque havia uma pressão pública forte em meu favor.
Quando voltei para a Itália, fiquei outros seis anos presos e
encerrei a questão.
UOL - Quais eram as acusações?
Negri - Associação criminosa, gerenciamento de manifestações
que eram violentas nos anos 70, em Milão, em Roma, em toda Itália.
Mas a primeira acusação que sofri não era de agitador político, por
escrever jornais etc., mas de chefiar as Brigadas Vermelhas, o que
não é verdadeiro, e de ter assassinado [Aldo] Moro, acusações das
quais fui absolvido depois. Entende? Na Itália se busca
desesperadamente fazer valer uma mitologia dos anos 70, que é falsa.
E a direita no poder hoje busca a qualquer custo restaurar um clima
de falsidade e de intimidação para não permitir que a história seja
contada como foi.
UOL - Existem aí semelhanças com o governo militar no Brasil?
Negri - Isso eu não sei, porque acho que os governos
militares na América Latina foram particularmente violentos. Mas o
problema é outro: a questão é que a liberdade, o Estado de Direito e
as regras da democracia não podem ser infringidos ou falsificados em
nenhuma situação.Quem é Toni Negri
Antonio Negri, 75, é um filósofo italiano, professor da
Universidade de Pádua (Itália) e do Colégio Internacional de Paris
(França). Entre os anos 50 e 70, participou dos movimentos de
esquerda na Itália, condenando tanto a direita quanto o stalinismo.
Esteve preso entre 1979 e 1983, depois se exilou na França por 14
anos. Condenado por subversão, o filósofo voltou para a Itália em
1997 e cumpriu pena até 2003. Atualmente, divide seu tempo entre
Veneza e Paris, cidades onde desenvolve atividades acadêmicas
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