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A face afro de um bairro italiano |
07/01/2009
Foto: Jonne Roriz/AE
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Edison Veiga
Reconhecido como uma pequena Itália dentro de São Paulo, o bairro do
Bexiga recebeu grandes levas de ex-escravos. "É um pedaço da
África", definia reportagem do jornal Correio Paulistano em 1907.
Este viés poucas vezes abordado é tema do livro Bexiga - Um Bairro
Afro-Italiano (Editora Annablume, 107 páginas, R$ 20,00),
recém-lançado pelo jornalista e professor universitário Márcio
Sampaio de Castro.
Não é de hoje que o assunto chama a atenção de Castro. "Sou de
família negra e meu pai foi criado no Bexiga. Isso sempre me
intrigava, pois para mim ali era bairro de italianos", conta. Ele
debruçou-se sobre o tema durante o seu mestrado, na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em 2006.
O livro recém-lançado é consequência dessa pesquisa.
REDUTO AFRO
De acordo com o jornalista, houve dois momentos em que a população
negra se instalou ali. "No início do século 19, a região às margens
do Córrego Saracura foi ocupada por um quilombo", afirma. O córrego
passava onde hoje é a Avenida 9 de Julho.
Os escravos refugiados viviam no mesmo local em que, atualmente,
funciona a escola de samba Vai-Vai. "Isso foi tão forte que até os
anos 60 ali era conhecido como quadrilátero negro ou pequena
África", exemplifica.
Nessa época, a região ainda era só pasto e mato. O bairro do Bexiga
nasceu, oficialmente, em 1878, quando o proprietário rural Antônio
José Leite Braga começou a lotear suas terras - o imperador Dom
Pedro II chegou a lançar a pedra fundamental de um hospital para o
novo bairro, mas a obra nunca saiu do papel.
Uma outra leva populacional negra veio para São Paulo no final do
século 19. Libertados, os ex-escravos saíram das fazendas e acabaram
se instalando nos endereços preteridos pelos paulistanos.
"Enquanto no Rio, essa população foi para os morros, aqui ela
procurou as regiões de várzea, de baixadas", explica Castro. Como
eram áreas que sofriam constantemente problemas de alagamento, não
tinham valor imobiliário. Os negros acabaram indo para o Bexiga, o
Cambuci, a Barra Funda e a Casa Verde, sempre às margens de
córregos.
Ao mesmo tempo, a capital paulista recebeu os imigrantes italianos.
Motivados pelo barato preço dos lotes, os calabreses acabaram se
estabelecendo no Bexiga. "Os terrenos custavam pouco e cabiam no
bolso dos imigrantes", justifica o pesquisador. "O calabrês veio com
a ideia de ser independente, montar seu próprio negócio."
O bairro ficou conhecido como reduto italiano. "Procurou-se
construir a ideia de uma São Paulo mais europeia. Assim não
interessava ter uma associação com a negritude", acredita Castro.
"Os negros passaram a ser vistos como atraso. A mídia ajudou nesse
processo."
Graças a algumas manifestações culturais, a herança negra
sobreviveu. É o caso da escola de samba Vai-Vai, que ocupa o espaço
que 200 anos atrás foi quilombo. Ela foi criada em 1930, como
dissidência do grupo carnavalesco Cai-Cai.
E também da Pastoral Afro da Paróquia de Nossa Senhora da
Achiropita, criada em 1988, quando se comemorava o centenário da
Abolição dos Escravos. "Nosso objetivo é resgatar as tradições dos
negros católicos", afirma a enfermeira Valéria do Carmo Silva, uma
das coordenadoras da pastoral.Dos 30 integrantes, poucos são negros
- ela é. "São dois orientais, quatro brancos, oito negros... O resto
é mestiço", conta.
Conhecida por sua tradicional festa italiana, a Achiropita com sua
pastoral afro é o retrato mais nítido dessa característica mista do
bairro. "Mas, nas missas, noto que os negros ainda são minoria",
observa Valéria.
Ao longo do calendário litúrgico, os membros da pastoral organizam
missas, casamentos e batizados afro e celebram os santos negros. "No
ano passado, também oferecemos um curso profissionalizante que
ensinava a fazer bijuterias e a pintar tecidos", diz a enfermeira.
Em 2001, o trabalho da pastoral afro da paróquia dos italianos foi
tema de outro livro, Axé, Madona Achiropita!, da jornalista
Rosangela Borges, publicado pela Editora Pulsar.
(©
Estadão)
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