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Viver como uma eterna armadilha

03/02/2008

 

Vítimas e torturadores dialogam em produção holandesa da Tosca, de Puccini

João Luiz Sampaio

As mulheres sempre desempenharam papel dominante na vida do compositor italiano Giacomo Puccini; e não por acaso suas óperas estão repletas de heroínas - todas marcadas pela tragédia, pelo abandono e, eventualmente, pela morte, o que, claro, diz muito sobre o homem por trás da música. Mas, enfim, esse é assunto para outra hora - e, no ano do 150º aniversário do compositor, oportunidades não vão faltar. Enfim, aqui o que vale lembrar é que suas divas figuram entre as grandes personagens do gênero operístico: Butterfly, Mimi, Manon e, claro, Tosca. Baseada na peça de Victorien Sardou, e na interpretação de Sarah Bernhardt, que fascinou o compositor, a ópera é um dos textos mais dramáticos e bem construídos de Puccini, um 'thriller', digamos assim, recheado com amores, ciúmes, desejo, sensualidade, ingredientes que se combinam com maestria na música do compositor, de volta com o lançamento em DVD (Decca) de uma produção apresentada em Amsterdã no fim dos anos 90.

A ópera se passa em Roma, onde o chefe de polícia secreta Scarpia, responsável pela ofensiva contra os simpatizantes de Napoleão, que invade a Itália, exige da cantora lírica Tosca uma noite em troca da libertação de seu amante, o pintor e revolucionário Mario Cavaradossi. Ela aceita, mas, antes que ele possa cobrar a promessa, mata-o. Nos extras do DVD, o maestro Riccardo Chailly, que rege a Concertgebouw, se pergunta, discutindo a moderna produção de Nikolaus Lehnhoff: será que faz sentido mais uma Tosca com a Roma do século 19 e sua paisagem ao fundo? Até faz, mas não há nada de errado em partir dos estímulos de uma obra para recriar, em outro contexto, aquilo que se acredita ser sua essência. Basta apenas que o diretor parta do texto e da música para propor ao público que abra mão das referências de época ali colocadas sem aliená-lo, mas, antes, levá-lo a uma experiência que, no fim das contas, o faça reavaliar a própria obra em questão, dando a ela novos e significativos sentidos.

A produção assinada por Lehnhoff faz exatamente isso. Tosca é teatro puro. Sua partitura, nos detalhes, oferece o ritmo, a cadência, os clímax, de maneira muito eficiente - nada é gratuito, nada está fora do lugar. Lehnhoff entende e respeita isso. E, assim, fica mais fácil aceitar a mudança de foco por ele proposta, tirando de Tosca e colocando em Scarpia o fio condutor da narrativa. Não é exatamente uma descoberta: o amor de Tosca e Cavaradossi, o pano de fundo político, o medo, a repressão, todos os pontos do libreto de alguma maneira passam pela presença desse homem que tortura em busca do amor, que fala de Deus e exalta a morte alheia com naturalidade desconcertante. Na montagem, porém, o diretor leva essa idéia ao extremo e, de certa forma, seu Scarpia encarna a essência da sua concepção.

O primeiro ato da ópera se passa em uma igreja, onde Cavaradossi ajuda a esconder o fugitivo Angelotti; o segundo, no Palazzo Farnese, sede do poder de Scarpia, onde ele tortura o pintor e faz sua proposta a Tosca; e, o terceiro, no topo do Castel Sant'Angelo, onde Cavaradossi é executado e Tosca, fugindo do encalço dos homens de Scarpia, se joga para a morte. Para Lehnhoff, esses três ambientes são facetas de um só: uma prisão, uma jaula humana na qual vítimas e torturadores 'inevitavelmente se jogam uns contra os outros, completamente à mercê de si próprios'. Nesse contexto, Scarpia é onipresente; na igreja, desperta o ciúme corrosivo; no palácio, é o torturador que mistura amor e sexo, política e desejo, paixão e dor; e, no terceiro ato, mesmo depois de morto, fica como eco da impossibilidade do amor e, mais do que isso, da liberdade, da fuga em direção a um outro mundo, que é físico, mas também simbólico, almejado por Tosca e seu amante. Em cena, esses elementos se traduzem em três diferentes cenários que dialogam entre si por meio de sombras, ambientes que não respiram - é como se todos os caminhos levassem a eles sem que nenhum possibilitasse o retorno, a volta. Viver, aqui, se torna uma armadilha, uma prisão.

Ajuda, claro, nesse contexto, que o cantor responsável por interpretar Scarpia seja o baixo-barítono galês Bryn Terfel. A voz não é exatamente a pedida por Puccini, que escreveu o papel para um barítono mais claro. Mas ele surpreende nos contrastes e, mais do que isso, é um ator fenomenal e faz um segundo ato eletrizante. É, de longe, o melhor cantor em cena. Catherine Malfitano interpreta Tosca - uma pena: a voz já está longe do auge, perdeu muito do colorido, em que pese o esforço dramático da soprano; o norte-americano Richard Margison é competente, o que, em ópera, significa que ele canta tudo direitinho, mas não te faz em momento nenhum chegar à ponta da cadeira. É correto - e só. Resta a regência de Riccardo Chailly, que ressalta toda a dramaticidade da música de Puccini, dando ao espetáculo um ritmo constante que só reforça o poder teatral da partitura. Depois de ouvir sua recente Aida no Scala e esta Tosca, é uma pena ouvi-lo dizer, nos extras, que não gosta de reger mais do que uma ópera por ano. 'E mesmo assim, já estou achando muito', diz. Pena.

(© Estadão)

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