"PASOLINI, NOSSO PRÓXIMO" REÚNE FOTOS E ENTREVISTA
DADA PELO CINEASTA EM 1975, EM QUE DIZ QUE A LIBERDADE
"NECROSOU" O SEXO NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS
PAOLO D'AGOSTINI
Giuseppe Bertolucci, que disse a respeito de seu
filme "Pasolini Prossimo Nostro" [Pasolini, Nosso
Próximo] ter "tentado dar voz ao material de arquivo",
trouxe dessa imersão no último Pasolini, trágico e
negativo a respeito de tudo, sobretudo uma emoção.
"Aqueles anos, em meados dos anos 1970, que é mais ou
menos o mesmo momento de "Novecento" [1976, filme em que
assistiu seu irmão Bernardo], me pareceram marcados por
uma extraordinária margem de liberdade."
"Dali em diante, a forma filme avançou para um
irrefreável declínio. Perdeu sua hegemonia, acossada por
milhões de horas de imagens televisivas -que só no
início foram imagens de filme- e depois pela rede
informática."
Big Brother
"Creio que "Saló", assim como outros filmes do mesmo
período, não apenas não seriam factíveis hoje mas nem
mesmo concebíveis: não seriam nem sequer pensáveis.
Imaginemos: em torno de "Saló", mas também em torno de
"Novecento", vinham a campo [os escritores] Calvino ou
Moravia.
Não há um correspondente hoje, quando um episódio do
"Big Brother" suscita bem mais debates que um filme.
Isso substituiu os filmes, que noutros tempos
modificavam aspectos do costume, da moral, da política."
"Pasolini, Nosso Próximo", que foi exibido na Mostra de
Veneza em setembro passado, surge assim.
O jornalista Gideon Bachmann e sua mulher, a
fotógrafa Deborah Imogen Beer, freqüentaram o restrito
set do último filme de Pasolini e recolheram uma
riquíssima documentação: uma longa entrevista com o
cineasta, além de muitas fotografias.
Disso resulta o retrato de um artista polemista
amargurado, que declara o fracasso de sua anterior
"Trilogia da Vida" ["Decameron" (1971), "Os Contos de
Canterbury" (1972) e "As Mil e Uma Noites" (1973)], cujo
sucesso comercial, obtido graças a mal-entendidas
promessas de nudez e de erotismo, seguiu o sentido
inverso de suas intenções: opor-se ao conformismo
consumista, ao nivelamento homologante e aburguesado dos
comportamentos juvenis, à falsa liberdade dos costumes
que reduz corpo e sexo a mercadoria.
Este texto foi publicado no "La
Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.
(©
Folha de S. Paulo)
FilmografiaDesajuste Social
Mamma Roma
A Raiva
Comícios de Amor
Locações na Palestina
O Evangelho Segundo São Mateus
Gaviões e Passarinhos
Totó no Circo
Édipo Rei
Notas para um Filme sobre a Índia
Teorema
Pocilga
Medéia
Notas para uma Oréstia Africana
Os Muros de Sanaa
Set de Sanaa
Decameron
Os Contos de Canterbury
As Mil e Uma Noites de Pasolini
Saló - Os 120 Dias de Sodoma
(©
Folha de S. Paulo)
+ a vida como ele
é, por Pier Paolo PasoliniO corpo subjugado
Saló" foi baseado em "120 Dias de Sodoma", do
marquês de Sade, mas se passa durante a República de
Saló, ou seja, entre 1944 e 45.
Portanto, há muito sexo, mas o sexo que aparece no filme
é o típico sexo de Sade, cujo traço é exclusivamente
sadomasoquista, com todas as atrocidades de detalhes e
situações.
[...] Em meu filme, todo esse sexo assume um significado
específico: é a metáfora daquilo que o poder faz com o
corpo humano, é a reificação do corpo humano, sua
redução a coisa, que é típica do poder, de qualquer
poder.
Se em lugar da palavra "Deus", de Sade, ponho a palavra
"poder", vem à tona uma estranha ideologia, extremamente
atual [...]. Outro elemento de inspiração do filme é a
evocação daqueles dias que vivi, os dias da República de
Saló [...].
Eu não estava em Saló, mas no Friuli. O Friuli se
tornara uma região alemã, fora burocraticamente anexado
à Alemanha. Chamava-se o "Litoral adriático". De 8/ 9/43
até o final da guerra, ali houve um "gauleiter", uma
espécie de governador. Isso quer dizer que passei dias
terríveis no Friuli.
Mas ali se deu uma das mais aguerridas lutas "partisans"
[de resistência à ocupação], e meu irmão morreu nela
[...].
Além disso, o Friuli era sempre bombardeado pelos
americanos, e por lá passavam aviões que iam bombardear
a Alemanha. Capturas, vilarejos desertos, bombardeios
quase inúteis, de pura crueldade.
Juventude transviada
Não tenho ilusões de ser compreendido pelos jovens,
porque é impossível instaurar uma relação de caráter
cultural com eles, já que vivem novos valores com os
quais os velhos valores -em nome dos quais eu falo- são
incomensuráveis.
Parece que estão todos de acordo! Falam, riem e se
comportam da mesma maneira, fazem os mesmos gestos,
adoram as mesmas coisas, montam as mesmas motocicletas
[...].
A coisa medonha da cultura italiana é que os jovens
sejam livres, desprovidos de complexos, que vivam uma
vida feliz. Toda a burguesia italiana está convencida
disso. E também toda a esquerda, sim. [...] Não
entendem, não vêem. Porque não se importam com eles!
Quem não se importa com os camponeses não entende a
tragédia deles.
Quem não gosta dos jovens não está nem
aí para eles. "Mas, claro, eles estão contentes, são
desinibidos!"
Pais e filhos
Todos os meus livros e minhas obras narrativas falam
de jovens: eu os amava e os representava.
Agora não poderia fazer um filme sobre esses imbecis que
nos circundam. Às vezes até choro, literalmente, quando
vejo o filho de Ninetto [Davoli, ator], de um ano.
Lágrimas escorrem de meus olhos por pena de seu futuro.
[...]
Nas grandes cidades industrializadas, a juventude se
tornou odiosa, insuportável.
No fundo, o que seus pais fizeram, esses que têm entre
40 e 50 anos de idade? O que fizeram para que esses
filhos não fossem assim? Nada!
Pais cujos filhos têm de 15 a 20 anos já não podem
objetivamente ensinar mais nada, porque não
experimentaram o tipo de vida dos filhos.
Liberdade desassistida
Nas épocas de repressão, o sexo era uma felicidade
porque ocorria às ocultas e era a derrisão de todos os
deveres e obrigações que o poder impunha.
Ao contrário, nas sociedades tolerantes, como se
proclama esta em que vivemos, o sexo é necrosante porque
a liberdade concedida é falsa e porque é concedida de
cima, e não conquistada a partir de baixo.
Portanto, não se trata de viver uma liberdade sexual,
mas de se adequar a uma liberdade que é concedida.
Então, a certa altura do filme, uma das personagens dirá
exatamente isto: "As sociedades repressivas reprimem
tudo, portanto os homens podem fazer tudo".
Mas acrescentei este conceito que para mim é lapidar: as
sociedades permissivas permitem qualquer coisa, e só se
pode fazer essa qualquer coisa. O que é terrível! Hoje
na Itália se pode fazer qualquer coisa.
Antes, na realidade, nada era permitido. As mulheres
viviam quase como nos países árabes.
O sexo era escondido: não se podia falar, não se podia
nem sequer mostrar meio peito nu numa revista. Agora
permitem qualquer coisa, permitem fotos de mulheres
nuas, mas não de homens.
O casal é um pesadelo
De resto, há uma grande liberdade nas relações entre
casais heterossexuais, uma liberdade falaciosa porque
deve ser aquela mesma, e porque é obrigatória. Como é
concedida, tornou-se obrigatória; e um jovem, posto que
lhe é concedida, não pode não aproveitar essa concessão.
Daí ele se sente obrigado a estar sempre em casal, e o
casal se transformou num pesadelo, numa obsessão, e não
numa liberdade [...]. É um casal completamente falso e
insincero, de uma insinceridade espantosa. Vejam os
jovens que, tomados sabe-se lá de que ímpeto romântico,
caminham de mãos dadas ou abraçados.
Você se pergunta: "O que é esse tipo de romantismo?".
Nada. É um casal relançado pelo consumismo, pois esse
casal consumista compra. De mãos dadas, vão à
Rinascente, à Upim [redes de lojas locais].
Genocídio das culturas
Cada um odeia o poder a que está submetido. Sendo
assim, odeio com especial veemência o poder de hoje,
1975. Trata-se de um poder que manipula os corpos de
modo horrível, que não tem nada a dever à manipulação de
Heinrich Himmler ou Hitler.
Manipula-os transformando-lhes a consciência, isto é, da
pior maneira, instituindo novos valores que são
alienantes e falsos.
São os valores do consumo que cumprem o que Marx chama
de genocídio das culturas viventes, reais, precedentes.
Comendo lixo
Um velho camponês tradicionalista e religioso não
consumia cretinices preconizadas pela televisão. No
entanto era preciso fazer com que ele as consumisse.
Na realidade, os produtores forçam os consumidores a
comer merda.
Oferecem coisas sofisticadas e ruins, requeijões,
queijinhos para crianças, coisas medonhas, pura merda.
Se eu fizesse um filme sobre um industrial milanês que
fabricasse de biscoitos, um sujeito que os anunciasse e
os fizesse engolir pelos consumidores, o resultado disso
seria um filme terrível sobre a contaminação, a
sofisticação, o óleo feito com os ossos das carcaças.
Eu até poderia fazer um filme assim, mas não posso! Como
dedicar um ano pensando nisso e, depois, filmando? Seria
mais útil, no sentido direto e prático da palavra,
fazê-lo exatamente assim como é.
Mas quem me força a isso?
A união pelo consumo
O único sistema ideológico que de fato enredou até as
classes dominantes é o consumismo, porque é o único que
foi até o fundo e que produz certa agressividade, já que
essa agressividade é necessária ao consumo.
Se alguém é puramente submetido, segue o instinto puro
da submissão, como o velho camponês que abaixava a
cabeça e se resignava -coisa tão sublime quanto o
heroísmo.
Agora esse espírito de submissão e resignação já não
existe, pois onde está o consumidor que se resigna e
aceita sua condição arcaica, retrógrada e inferior? Ele
deve lutar a fim de elevar seu status social.
"Eu baixo a cabeça em nome de Deus" já é uma grande
frase. Enquanto agora o consumidor não sabe mais baixar
a cabeça; ao contrário, crê estupidamente que a baixa e
tem os seus direitos. Aliás, está sempre ali,
reivindicando seus direitos, acreditando neles, quando
na verdade é um pobre cretino.[...] Não creio que
existirá um tipo de sociedade em que o homem seja livre.
Portanto, é inútil esperar por isso. Já não é preciso
esperar por nada. A esperança é algo horrendo, inventado
pelos partidos para manter seus filiados tranqüilos.
Renúncia à língua
Não escrevo mais como antes, o que equivale a dizer
que não escrevo mais. A princípio, quando comecei a
fazer cinema, pensei que fosse apenas a adoção de uma
técnica diferente, quase uma técnica literária diversa.
Mas depois, pouco a pouco, percebi que se trata da
adoção de uma língua diferente.
Então abandonei a língua italiana, com a qual me
expressava como escritor, e adotei a língua
cinematográfica. Disse várias vezes, por puro protesto,
contestação total, que eu gostaria de renunciar à
nacionalidade italiana. Ao fazer cinema, renunciei à
língua italiana, isto é, à minha nacionalidade.
Mas a verdade é outra, talvez mais complicada e
profunda: a língua exprime a realidade por meio de um
sistema de signos. Já o cineasta exprime a realidade por
meio da realidade. Essa talvez seja a razão de gostar do
cinema, de preferi-lo, pois, ao exprimir a realidade
como realidade, opero e vivo continuamente no nível da
realidade.
Não nos importamos nem um pouco com a poesia. Usamos a
palavra "flor" porque ela nos serve em nossas relações
humanas. As imagens, ao contrário, fundam-se nas imagens
dos sonhos e da memória.
Quando sonhamos e recordamos, rodamos dentro de nós
pequenos filmes. Isso quer dizer que o cinema tem seus
fundamentos e suas raízes numa linguagem completamente
irracional, irracionalista. [...]No fundo, quando alguém
vê um filme, tem a impressão de ter sonhado.
Cinema e resistência
Se eu acreditasse que meu cinema fosse completamente
integrado por uma sociedade que quer inclusive o tipo de
filme que faço, então talvez eu não o fizesse. [...]
A sociedade burguesa digere tudo: amalgama, assimila e
digere tudo. Porém, em cada obra em que a
individualidade e a singularidade se afirmam com
originalidade e violência, há algo de inintegrável.
[...] Tenho essa confiança na liberdade humana, que não
saberia expor em termos racionais. Mas percebo que, se
as coisas continuarem assim, o homem se mecanizará e
alienará a tal ponto, se tornará tão antipático e
odioso, que essa liberdade se perderá inteiramente. Eu
continuaria a fazer cinema do mesmo modo, ainda que a
liberdade estivesse apenas comigo e se exaurisse com a
expressão.
Continuaria a fazê-lo do mesmo modo porque preciso
fazê-lo. Ou me suicido ou sigo fazendo. [...]
Penso que em nenhuma sociedade o artista é livre. Sendo
esmagado pela normalidade e pela média de qualquer
sociedade onde viva, o artista é uma contestação
vivente. Representa sempre o outro daquela idéia que
todo homem, em toda sociedade, tem de si mesmo.
Em minha opinião, uma margem mínima de liberdade, ainda
que nem seja mensurável, sempre existe. Não sei dizer
até que ponto isso é ou não liberdade. Mas com certeza
há algo que escapa à lógica matemática da cultura de
massa.
Esses trechos foram extraídos de
"Pasolini, Nosso Próximo", de Giuseppe Bertolucci.
(©
Folha de S. Paulo) |