Em Harvard, autor
criticava a volta ao passado na busca por entender o presente
João Marcos Coelho
O compositor italiano Luciano Berio (1925-2003) integrou a tropa de
choque das vanguardas do pós-guerra, capitaneadas por Boulez,
Stockhausen e Nono. Elas agiam como se estivessem, com exclusividade,
criando a música do futuro. Deram as costas para o público, consideraram
suas obras como “mensagens na garrafa” lançadas ao mar por eles, e si
próprios como náufragos do futuro. Ele soube, no entanto, construir
“pontes” que o ajudaram a conquistar públicos mais amplos. Que pontes
são essas? Quais as razões do sucesso que a música de Luciano Berio
conquista junto a camadas mais amplas de público sempre que é levada nas
salas de concerto? Agora mesmo, um grupo paulistano, o Percorso
Ensemble, liderado pelo percussionista Ricardo Bologna, acaba de gravar
as famosas Folk Songs de Berio, com Celine Imbert (o CD deve ser lançado
pelo Sesc São Paulo até junho).
Berio tem lugar de honra na música do século 20 porque foi capaz de
aliar padrões rigorosos de criação à notável habilidade de fazer cócegas
nos olhos e ouvidos de todo tipo de público. Foi um sujeito recluso;
suas entrevistas são raras. Mas agora é publicada nos EUA a série de
conferências Charles Eliot Norton que Berio fez em Harvard em 1993. O
título é maravilhoso: Remembering the Future (Harvard, 142 págs., US$
24,90) - Relembrando o Futuro. É aí, nessas preciosas e raríssimas
lições de Berio na primeira pessoa, que podemos encontrar as pistas que
nos ajudam a compreender por que e como a sua música consegue a mágica
de exibir uma genial qualidade de invenção e ser ao mesmo tempo
acessível a públicos mais amplos. Selecionei alguns entre tantos temas
importantes tratados por Berio nessas palestras. É básico dar-lhe a
palavra, porque seu pensamento oxigena de modo inesperado - e magistral
- as discussões em torno da criação musical contemporânea e o mundo que
nos cerca.
LABIRINTO MUSICAL
Berio fala da “estranha, fascinante Babel de comportamentos musicais que
nos rodeia” e complementa dizendo que “minha intenção é partilhar com
vocês algumas experiências musicais que nos convidam a revisar ou
suspender nossa relação com o passado, e redescobri-la como parte de uma
trajetória futura”. Ora, revisar nossa relação com o passado e
redescobri-la como parte de uma trajetória futura é comportamento típico
de compositores pós-modernos.
PRESENTE E PASSADO
“É inútil lutar para entender o passado sem um adequado conhecimento do
presente - os historiadores nos repetem isso desde Plutarco. Toda a
experiência musical, inclusive em suas mais concretas formas, está
permeada por este elementar paradigma.”
A MÚSICA COMO TEXTO
“Em 1965, me encontrei pela primeira vez com o lingüista Roman Jakobson.
Ele me perguntou: ‘Então, Berio, o que é música?’ Depois de um momento
de frustrante silêncio, respondi que música é tudo que ouvimos com a
intenção de ouvir música, e que qualquer coisa (tudo) pode se
transformar em música. Sempre fui fiel a essa resposta dada de
bate-pronto - senão na prática, ao menos como ideal. E acrescentaria
agora o seguinte: qualquer coisa pode tornar-se música na medida em que
possa ser musicalmente conceitualizada, na medida em que possa ser
traduzida (transportada) para outras dimensões. Esta concepção, esta
tradução só são possíveis dentro da noção de música como Texto, um Texto
multidimensional em contínua evolução.”
“O ROSTO É TUDO!”
Berio cita um exemplo dado por Jakobson de um missionário na África
tentando convencer os membros de uma tribo local a não andarem nus. “Mas
você também está nu”, respondeu-lhe um deles, apontando para sua face.
“Mas somente meu rosto está nu”, disse o missionário, e levou a seguinte
resposta: “Bem, pra nós o rosto é tudo!” “Para mim”, diz o compositor,
“a música vocal mais significativa das últimas décadas investiga
justamente isso: a possibilidade de explorar e absorver musicalmente o
rosto inteiro da linguagem. A música vocal lida com a totalidade de suas
configurações, incluindo a fonética e os sempre presentes gestos vocais.
A música jamais vai se afastar das palavras, nem as palavras da música.”
EMBRIÕES DE UMA GRAMÁTICA UNIVERSAL
“Agora mesmo a música nos envia hesitantes sinais sobre a existência de
organismos inatos que, corretamente traduzidos e interpretados, podem
nos ajudar a localizar os embriões de uma gramática musical universal.
(...) Penso que isso poderia contribuir para explorar a experiência
musical como ‘linguagem das linguagens’, estabelecendo um construtivo
intercâmbio entre culturas diversas e a defesa pacífica dessas
diversidades. Espero que isso aconteça. Enquanto isso, vamos continuar
traduzindo.”
O PASSADO COMO MERCADORIA
“Hoje o ouvinte tem a tendência de usar o passado musical inteiro como
se fosse uma mercadoria a ser consumida. E isso faz sentido, porque para
o ouvinte o passado é a mais disponível fonte de conhecimento musical.
Mas esta tendência carrega os sinais de uma frustração ideológica
inconsciente, porque não é construída a partir de um código plausível de
valores musicais, mas sim condicionada pelo mercado. A conservação do
passado, por outro lado, funciona também como um meio de esquecer a
música; senão toda, uma boa parte dela. É a amnésia ‘voluntária’
determinada pelo mercado.”
VIRTUOSIDADE DE INTELIGÊNCIA
“O virtuose esquece que a única forma de virtuosidade digna deste nome é
a virtuosidade de inteligência, capaz de penetrar em diferentes mundos
musicais e transmiti-los artisticamente. Todos nós sabemos que um
pianista que se anuncia como ‘especialista’ no repertório clássico ou
romântico, e que toca Beethoven ou Chopin sem ter tido a necessidade de
experimentar a música do século 20, é apenas um músico raso,
superficial. Tão superficial, aliás, quanto um pianista que se anuncie
como ‘especialista’ em música contemporânea, mas cujas mãos e mente
jamais tenham sido banhadas, num nível profundo por Beethoven ou
Chopin.”
O COMPOSITOR COMO DIRETOR DE CINEMA
“A música pode explorar, significativamente, novos e inexplorados
territórios quando age como uma câmera de cinema - focando, analisando o
som - e quando o compositor, como um diretor de cinema, decide o ângulo,
a velocidade, os close-ups, os zooms, os blow-ups, a edição, e os
silêncios. E isso pode ser feito sem um computador, especialmente quando
o som é a voz humana, que, por sua própria natureza, está sobrecarregada
de traços de experiências e associações musicais e não-musicais.
Musicalmente, a voz não é apenas um nobre instrumento; ela é também a
soma de todos os seus aspectos e comportamentos, do mais respeitável ao
mais trivial, incluindo os mais afastados da música. Na tosse, por
exemplo, não há traço de música, mas no entanto acredito que podemos
atribuir sentido musical a comportamentos vocais diários, assim como os
movimentos do dia-a-dia do corpo podem ser coreograficamente
desenvolvidos, como na Sequenza III para voz feminina-solo.”
A HISTÓRIA VALE A PENA?
“A obra musical jamais está sozinha - ela sempre tem uma grande família
com quem convive, e precisa ser capaz de viver muitas vidas; pode
permanecer em seu próprio passado; e precisa ser capaz de viver no
presente de variadas maneiras, às vezes esquecida de suas origens.
Diante desse raciocínio, vale a pena atentar para a cronologia ou de
história quando se fala da música?”