Nanni
Moretti é mais um a apontar o dedo para a mistura explosiva entre
política e dinheiro
KLEBER MENDONÇA FILHO
No início dos anos 90, surgiu no Brasil a celeuma relacionada
a um documentário inglês intitulado Beyond citizen Kane (Muito
além do cidadão Kane), feito pela rede de TV Channel 4. O filme,
bastante instrutivo, teve exibições quase secretas e na calada da
noite em universidades e sindicatos, e radiografava corretamente o
Brasil como um país de vidiotas, dominado pela ainda mais poderosa
(na época) Rede Globo de Televisão.
O personagem principal era o
jornalista e empresário Roberto Marinho, cujo poder o filme
comparava ao de Kane, personagem que Orson Welles decalcou sem muita
vontade de ser discreto do verdadeiro super-homem da mídia nos EUA,
William Randolph Hearst. Tanto Hearst como Marinho quiseram ver as
respectivas obras sobre eles destruídas e, no caso de O crocodilo
(Il Caimano, Itália, 2006), filme de Nanni Moretti,
controvérsia semelhante surgiu na Itália com esse retrato cáustico
do também onipresente super-empresário da mídia, dono de time de
futebol e ex-primeiro ministro, Silvio Berlusconi. O filme estréia
domingo, no Apolo.
O Crocodilo foi exibido em competição no último Festival
de Cannes, em maio do ano passado, semanas depois de estrear na
Itália num redemoinho de controvérsias, às vésperas das eleições
italianas. O filme é uma representação artística fascinante sobre um
estado de coisas político italiano, país que elegeu duas vezes o
empresário Berlusconi. É provável que alguma parte do efeito desta
obra perca-se para nós estrangeiros, diante de filme tão
apaixonadamente italiano e político para com as coisas da sociedade
de lá.
Mesmo assim, Moretti (Palma de Ouro em Cannes por O quarto do
filho) consegue injetar sangue o suficiente nesta sua crônica
para que sintamos a ressonância no drama humano de um cineasta, sua
vida familiar, o poder político e midiático dos graúdos e também o
próprio cinema como arte e comércio. São temas e idéias apresentadas
via roteiro construído em várias camadas de êxtase, energia e
frustração.
“O Crocodilo” é um apelido fictício criado por Moretti para
Berlusconi, que perdeu as eleições do ano passado. Acusado
notoriamente de enriquecer com dinheiro da máfia e de transformar a
televisão italiana na pior da Europa, ele é o principal obstáculo de
Bruno (Silvio Orlando), produtor de filmes B como Mocassins
assassinos e Maciste contra Freud.
Com sua vida pessoal desmoronando (refletindo problemas pessoais
que o próprio Moretti teve recentemente), Bruno recebe roteiro de
Teresa (Jasmine Trinca), uma jovem mãe de família, intitulado Il
caimano. Aos poucos, descobre que ali por baixo há uma alegoria
ex/implícita sobre Berlusconi, que aparece no filme em imagens
constrangedoras de TV, apresentado como “a piada da Europa”.
O choque de ir contra figura tão poderosa é discutido nos termos
de um pecado, e nesse sentido lembramos do Brasil, onde cultural e
politicamente um filme como este não é feito. “Os americanos fazem
filmes contra figuras importantes, por que não podemos fazer
também?", pergunta Teresa. Moretti vai à frente e nos dá uma
reflexão cheia de energia sobre cinema e verdade, arte e política,
lembrando muito e quase que obrigatoriamente o drama pessoal e
artístico de Welles ao fazer o seu Cidadão Kane. Bom.
Saiba + sobre Nanni Moretti