Por David Farley
Tanto faz se você chegar a Calcata de
carro ou se vier de ônibus de Roma — é impossível ficar indiferente,
assim que a vila desponta na paisagem. Instalada no alto de uma rocha
vulcânica escura em forma de bolo — engalanada com um castelo diminuto,
como se fosse parte de um jogo de xadrez, e cercado por uma densa
floresta — a vila fortificada se insere no mito coletivo dos viajantes
como a cidade italiana montesa quintessencial.
É só percorrer a pista em forma de S até a piazza alinhada com bancos de
mármore, no centro desta vila encantadora, a aproximadamente 50
quilômetros ao norte de Roma, para perceber que alguma coisa está fora
da ordem. Talvez seja o afresco de Jimi Hendrix pintado na parede de um
prédio do século 18. Ou os moradores com cabelos em rabos-de-cavalo,
alguns deles perambulando vestidos com saris indianos. Ou o número
absurdo de galerias de arte dispersas pelo emaranhado de vielas com
muros de pedras arredondadas. Seja o que for, não se leva muito tempo
para perceber que Calcata não é bem aquela sua típica cidade italiana
montesa.
Esta pode bem ser a vila mais descolada na Itália, terra de uma
excêntrica comunidade de aproximadamente 100 artistas, boêmios, velhos
hippies e de tipos New Age. Suas raízes alternativas remontam aos anos
30, quando o governo interditou a vila medieval, por medo de que os
penhascos íngremes pudessem desabar. Os habitantes de Calcata então se
mudaram para uma cidade recém-construída, Calcata Nuova, a menos de um
quilômetro de distância, e à exceção de um bando de gatos selvagens e
algumas pessoas relutantes, a velha aldeia montesa ficou lá, deserta, à
espera da chegada de uma equipe de demolição governamental.
Até que, no final dos anos 60 e começo dos anos 70, artistas e boêmios
começaram a circular pela vila, atraídos por sua beleza rústica e pela
energia mística que alguns dizem emanar do bloco de pedra vulcânica que
sustenta Calcata, com cerca de 30 metros de altura. (Os faliscanos, um
povo pré-romano, usava a montanha como local para um ritual sagrado, e
alguns crentes dizem que ainda podem sentir a força espiritual.)
Foi quando novos habitantes com pretensões artísticas ocuparam casas de
pedra abandonadas, antes de comprá-las (os proprietários originais
ficaram felizes por poder vendê-las). Eles cavaram buracos sob as vielas
de pedra e transformaram muitas das cavernas sob a aldeia em casas
subterrâneas. Abriram galerias de arte, restaurantes e cafés. E
finalmente fizeram lobby bem sucedido até revogarem a sentença de morte
de Calcata, convencendo o governo de que o laudo técnico anterior era
equivocado.
"Ao nos mudarmos para cá, salvamos Calcata", diz Athon Veggi, artista e
egiptóloga que se mudou para a vila nos anos 70 e que agora vive em duas
cavernas adjacentes: uma para seu trabalho artístico e outra que ela
compartilha com doze corvos. "Pessoas assim como eu viemos para cá
porque é um lugar poderoso e porque nós estamos livres para fazer o que
quisermos."
Na verdade, Calcata já tinha sua história de bizarrices bem antes da
chegada dos boêmios. Pouco depois do saque a Roma em 1527, quando a
cidade foi pilhada pelos exércitos do Imperador Carlos 5º, um soldado
alemão apareceu em Calcata portando uma lembrança que tinha roubado
durante a invasão: o suposto prepúcio de Jesus! O soldado foi preso, e o
tal prepúcio sagrado confiscado, instalando Calcata de vez na rota
relicária dos excêntricos.
Só que o "prepúcio sagrado" desapareceu misteriosamente em 1983 (alguns
habitantes locais juram que foi sob ordem do Vaticano). Desde então, os
peregrinos foram substituídos por tipos viajandões que freqüentam
galerias, e que vêm se deslumbrar com a arquitetura medieval de Calcata
nesse paese fricchettoni, ou aldeia dos excêntricos.
"O fato de que quase todos os habitantes são de alguma outra parte — da
Itália ou de outras regiões do mundo — já faz de Calcata um lugar
original", diz Pancho Garrison, ex-coreógrafo do Texas que administra a
Grotta dei Germogli, um restaurante nouvelle italiano numa cave toda
decorada com mosaicos (Rupe San Giovanni; 39-761-588-003;
www.grottadeigermogli.org).
"Mas o que realmente me inspira por aqui é que todos que você encontra
têm tendências criativas."
Veja, por exemplo, Marijcke der Maden, uma artesã de marionetes
holandesa, que veio para cá no começo dos anos 80 e que agora organiza
jam sessions com músicos locais, concertos de música clássica, palestras
e exposições no Granarone (Via di Porta Segreta, 8; 39-0761-587-855;
www.ilgranarone.com), um
amplo salão com um café bem mundano que de fato serve como central de
recepção aos visitantes da aldeia. Ou veja também o caso do pintor
Giancarlo Croce, que cuida de uma galeria subterrânea, Studio d'Arte
Porta Segreta (Via Porta Segreta, 15; 39-761-587-563), que expõe os
trabalhos do escultor local Costantino Morosin, que é conhecido em toda
a Itália por suas esculturas feitas de tufo, a rocha vulcânica,
incluindo os três tronos em estilo etrusco que adornam a praça central
de Calcata. Ou considere ainda o esfuziante Gianni Macchia, ator de
filmes-B dos anos 70, que adora mostrar aos visitantes seu café, Caffe
Kafir (Via Garibaldi 12-14; 39-338-172-5339), e o palácio cheio de
painéis artísticos que abriga o estabelecimento.
A inspiração artística já se espalhou além dos limites da aldeia. Logo
abaixo de Calcata, um vasto bosque florestal foi convertido numa sinuosa
galeria de arte, a Ópera Bosco (Localita Colle; 39-761-588-048;
www.operabosco.com). Distante 20 minutos da cidade, após agradável
caminhada, a galeria apresenta esculturas e instalações artísticas
criadas a partir de material local, como o tufo, galhos de madeira e
barro.
Mas nem todo mundo é atraído a Calcata por suas vibrações artísticas, a
energia espiritual ou as ruínas. A pura e simples compleição estética de
Calcata - uma das mais bem preservadas cidades medievais montesas da
Itália - já é razão suficiente para atrair pessoas como o príncipe
Stefano Massimo, que deriva de uma das mais antigas famílias nobres da
Europa (e cuja família possuía Calcata no século 19). Ele vive metade do
tempo numa mansão que se espalha ao longo do sudeste da aldeia, composta
de cinco residências que foram integradas e reformadas por uma arquiteta
local, Patrizia Crisanti.
"Eu tento vir aqui tanto quanto possível", diz Massimo. "Não pela tal
energia de que tanto falam, ou pelos artistas que estão vivendo aqui,
mas porque...onde mais você poderia encontrar um lugar assim tão
bonito?"
Calcata é também charmosamente antiquada. Há muitos lugares onde se pode
fazer leituras de tarô ou comprar caixas de incenso, mas para se retirar
dinheiro de um caixa eletrônico, enviar uma carta ou para outras
conveniências modernas, você tem que se dirigir a Calcata Nuova ou
percorrer cinco quilômetros até Faleria.
Mesmo assim, para a maioria dos habitantes de Calcata, vale a pena.
"Você poderia andar por aqui de pijamas portando uma xícara de café ou
um copo de vinho, que ninguém irá julgá-lo por você não estar
sintonizado com a maneira italiana apropriada de se comportar", diz
Garrison. "Isso já diz muito sobre o lugar."
Embora a aldeia seja bastante freqüentada por viajantes que não
pernoitam, passar uma noite por lá é a melhor maneira de se conhecer
Calcata de verdade. A agência I Sensi della Terra (Via San Giovanni 1,
39-0761-587-733;
www.isensidellaterra.it) aluga quartos e apartamentos dispersos
pela aldeia. As diárias dos quartos começam a partir de 20 euros, ou U$
38, com o euro cotado a U$ 1,29.
E se os aldeões estiverem reunidos em um de seus jantares com
macarronada comunitária na praça, eles bem poderão convidá-lo para
participar. Apenas certifique-se que não terá nenhum plano para a manhã
seguinte.
Para um lugar que foge dos estereótipos da Itália, no final das contas
essa poderá ser uma experiência bem italiana.
Caves e castelosA maneira mais fácil de chegar a Calcata é de carro. De Roma, é uma
viagem de cerca de 50 quilômetros pela estrada Cassia Bis (SS2); a saída
é pela Sette Vene, e depois é só seguir as placas que indicam Calcata.
Você pode também pode chegar a Calcata de ônibus. Pegue um dos bondes
elétricos da estação Ferrovia Nord em Roma em direção ao terminal de
ônibus de Saxa Rubra (uma viagem de 20 minutos custa 1 euro, ou U$ 1,29)
e depois comute para um ônibus azul da Cotral (www.cotralspa.it),
que pára em Calcata. Os ônibus saem quase a cada hora, e a viagem leva
aproximadamente 45 minutos. Os bilhetes são vendidos na lanchonete, o
Bar Saxa; o bilhete de ida custa 2 euros.
Tradução: Marcelo Godoy
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