Após 50 anos
de sua morte, maestro ainda surpreende pelas lições que deixou nas
melhores orquestras
Lauro Machado
Coelho
Rio de Janeiro, 30 de
junho de 1886: o brasileiro Leopoldo Miguez, regente convidado da
companhia de ópera de Cláudio Rossi, não quer admitir a responsabilidade
pelo fracasso da temporada em São Paulo e das duas primeiras récitas no
Rio. Pondo a culpa nos cantores, retira-se. Em desespero de causa, o
signor Rossi recorre à única pessoa que conhecia a partitura: um
violoncelista de 19 anos que, naquela noite, estava de folga. Convencido
a voltar ao teatro, o rapaz sobe no pódio e encara firmemente a platéia
amotinada. De repente, num gesto teatral, ele atira a partitura ao chão.
E rege de cor, com absoluta segurança. No fim, é delirantemente
ovacionado.
Muito antes de morrer, em 16 de janeiro de 1957 - 50 anos atrás,
portanto -, Arturo Toscanini se transformara numa lenda viva, um
verdadeiro monumento da vida musical que, até hoje, assombra o
imaginário dos maestros e do público, pelo seu gênio criativo. E por sua
espantosa criatividade, que só se encerrou no concerto de 4 de abril de
1954, quando ele já tinha 87 anos, à frente da orquestra da National
Broadcasting Corporation, a NBC, que havia sido criada especialmente
para ele.
Hoje ainda, a sua lenda perdura, eternizada pelas centenas de gravações
que deixou e pelas lições com que marcou as suas aparições diante das
melhores orquestras do mundo. Duas habilidades contribuíram para o
sucesso desse homem nascido em Parma em 21 de março de 1867: o ouvido
absoluto, que lhe permitia identificar o menor desvio de afinação em
qualquer instrumento da orquestra. E uma memória de elefante -
indispensável, no caso de um homem míope como uma toupeira, e vaidoso
demais para usar óculos em público.
Essa memória prodigiosa é responsável por anedotas muito engraçadas.
Como a do trompista da Filarmônica de Londres que, durante um ensaio, em
1936, veio dizer-lhe que uma das chaves de seu instrumento havia
quebrado. Toscanini pensou um pouco e respondeu: 'Não tem importância.
Daqui até o fim você não toca essa nota nem uma vez.' Em Toscanini and
the Art of Conducting (1954), Robert Charles Marsh diz que o estudo das
partituras que lhe pertenciam ajuda muito pouco a conhecer a sua
técnica, pois ele não fazia quase nenhuma anotação nelas: guardava tudo
de cabeça.
Mas essas habilidades são irrelevantes, se comparadas ao legado que ele
deixou em termo da elevação dos padrões de execução orquestral.
Toscanini desempenhou um papel fundamental na superação do estilo
'expressivo' de interpretação, herdado das tradições românticas do
século 19, que admitia a agregação de matizes, a modificação de
andamentos e a distorção da letra e do espírito da obra, a pretexto de
expressar uma sensibilidade pessoal. Dizia detestar o tipo de regente
que gasta vários minutos do ensaio discorrendo sobre a obra e a sua
época. E tinha a mais solene antipatia pelo músico 'dono da verdade'.
Revelou novas e, até então, desconhecidas possibilidades de virtuosismo
e clareza na textura orquestral (vejam, por exemplo, suas gravações de
Debussy e Ravel), e a sua atitude de honestidade e modéstia em relação à
obra de arte - a antítese da vedete - resultava em uma impressionante
capacidade de penetração nos aspectos mais íntimos de cada partitura.
Mas a medalha tem seu reverso. Marsh chama a atenção para os problemas
de sua regência, 'em geral resultado de suas melhores qualidades levadas
a um excesso'. Precisão rítmica convertida em frieza metronômica, dando
às vezes à sua execução mais exatidão mecânica do que criatividade
espontânea. Intensidade dramática que, em certos casos, excedia os
limites do razoável, e a música era conduzida com tal ritmo, que a
eloqüência natural se via diminuída. E a tendência a tornar rotineira a
interpretação de peças que ele regera vezes demais: a execução, rápida e
nervosa, mecanicamente perfeita, transformava-se numa sucessão de
superfícies de correto polimento, mas sem a carga emocional da
interpretação de outros tempos.
Isso se aplica principalmente a certas gravações da fase final de sua
carreira. Nos anos 40/50, ele trabalhava com uma orquestra que reunia
músicos excepcionais, mas fora criada artificialmente e nunca chegou a
ter a identificação de outros agrupamentos de grande tradição (tanto que
ela se desfez após a sua aposentadoria). E a extrema energia e
nervosismo dessas leituras deve-se atribuir ao desejo do músico de
demonstrar que, apesar da idade, ele não perdera o fogo da juventude.
Portanto, é nos registros da década de 30 - às vezes em condições
técnicas precárias - que vamos surpreender aspectos fundamentais de sua
arte. Mas o Toscanini da NBC deixou documentos que mostram seu gênio no
apogeu: La Mer, de Debussy (1º/6/1950); Otello (1947), com as fabulosas
interpretações de Ramón Vinay e Giuseppe Valdengo; o Réquiem dos 50 anos
da morte de Verdi (27/1/1951); a cena 3 do primeiro ato da Valquíria,
com Helen Traubel e Lauritz Melchior (22/2/1941); o Fidélio de 1944, com
Rose Bampton, Jan Peerce e Eleanor Steber; ou as integrais das sinfonias
de Beethoven e de Brahms, feitas em 1952.
Quem ouve a última gravação que ele deixou - o Ballo in Maschera, em
versão de concerto, em 24 de janeiro de 1954, no Carnegie Hall - tem
dificuldade em acreditar que aquilo seja o trabalho de um quase
nonagenário. Aos 90 anos, Toscanini ainda era capaz de infundir à música
de Verdi uma temperatura emocional, uma vitalidade, uma força de impacto
que são frutos daquela energia atordoante que sempre o caracterizaram.
Aliás, a um amigo que o viu, aos 81 anos, fazendo ginástica, esse homem
explosivo, famoso por seus rompantes vulcânicos, durante os ensaios,
respondeu com uma frase que o sintetiza: 'A culpa é de Deus. Quem O
mandou pôr, dentro deste corpo de velho, o sangue de um rapazinho de 17
anos?'