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Migrazioni ItaliaOggi

 

Poucos caminhos levam à Colônia Cecília

06/08/2000

 

Memória: Mistura de realidade e fantasia é a única herança da principal experiência anarquista brasileira, implantada no final do século passado em Palmeira, no Paraná.

Ideal socialista de imigrantes italianos foi a matriz dos movimentos sociais no país.

Roberto Nicolato

Passados mais de 100 anos da principal experiência anarquista da América Latina, os caminhos que levam ao passado vão desembocar numa porteira fechada com cadeado. Da antiga Colônia Cecília, implantada por um grupo de imigrantes italianos idealistas no município de Palmeira, restaram apenas histórias, fábulas que se confundem com a realidade. Até mesmo a única fotografia da colônia tem a sua autenticidade contestada.

O que é fato inegável é que a Colônia existiu e foi implantada numa região conhecida como Santa Bárbara de Cima, a 30 quilômetros da Palmeira. O local é hoje uma fazenda de médio porte de propriedade do oftalmologista Wilson Artuzi, que reside em Curitiba. Ele é neto de Aniceto Artuzzi, um dos anarquistas que vieram para o Brasil acreditando nos ideais utopista de Giovanni Rossi.

Antes de chegarmos ao local da Colônia, por uma estreita estrada de terra, os moradores da região já haviam nos alertado de que a entrada na fazenda seria uma missão totalmente impossível, o que realmente ocorreu. O caseiro que mora numa casa ao lado custou para nos atender e adiantou que estava instruído para barrar qualquer um que se atrevesse a entrar no local. Ligamos então para o proprietário em Curitiba e ele foi taxativo na sua negativa.

O que se sabe com certeza é que naquela fazenda, de 125 alqueires, o que restou da época da Colônia Cecília foi um velho poço, coberto por madeira e forrado de pedras. No Museu Histórico de Palmeira não há qualquer documento ou foto sobre a história da experiência anarquista, embora a prefeitura tenha planos de erguer um memorial na região onde viveram aqueles imigrantes italianos.

O caminho para se chegar à experiência socialista da Colônia Cecília está nos livros e filmes (ver matéria abaixo) ou nas histórias ouvidas por alguns dos descendentes dos imigrantes italianos, como é o caso de dona Ivone Agottani, 78 anos, neta dos casais Tranquilo e Adele Agottoni e Aniceto e Maria Artuzi, que chegaram à Colônia numa segunda leva.

"Meu avô Tranquilo e minha avó Adele moravam na Itália na região de Emilia Romana. Ele era tenor e ela soprano e cantavam nas igrejas. Eles se revoltaram contra a exploração do homem pelo homem, romperam com a Igreja, e decidiram vir para a América do Sul, mas não eram ateus", conta Ivone Agottani.

A família Agottani embarcou no Porto de Gênova no dia 15 de novembro de 1890, junto com mais de cinqüenta pessoas, chegando na Colônia Cecília em 1.º de janeiro de 1891. Na Colônia eles foram recepcionados pelo grupo de sete imigrantes, liderados por Giovanni Rossi, que já estavam no local desde o dia 2 de abril de 1890. Ivone Agottani diz que entre os novos colonos estavam alfaiates, médicos, sapateiros, gente de diploma que teve de trabalhar na roça. O próprio Giovanni Rossi era formado em Agronomia e Veterinária.

"O Rossi trouxe muitas mudas frutíferas da Itália, as famílias compraram uma vaca, porcos, plantaram milho e verduras. A produção era coletiva. Vieram grupos das províncias da Lombardia, Toscana, Piemonte e Emilia Romagna e todos eram recebidos com muita alegria", conta Ivone ao relatar o que ouviu dos antepassados. "A comida era polenta, omelete com cebola e salada de radiche".

A experiência anarquista, no entanto, durou apenas quatro anos. E foram muitos os motivos que contribuíram para a dissolução da Colônia. Com o advento da República, os imigrantes tiveram que pagar as terras que haviam sido doadas pelo imperador dom Pedro II; e para complicar ainda mais a vida das famílias, um espanhol que foi aceito na comunidade levou todo o dinheiro da venda do milho, a principal fonte de renda na Colônia Cecília. O espanhol roubou cinco mil reis e um fuzil velho.

"O que sobrou depois foi destruído pelos federalistas", diz Ivone. Desiludidas, muitas famílias acabaram indo para a região de Canta Galo e Santa Bárbara de Baixo, como os Agottani e Mezzadri. Giovanni Rossi acabou deixando a Colônia para trabalhar Blumenau em Santa Catarina e como professor de Agronomia no Rio Grande do Sul.

Quem também gosta de contar histórias sobre a Colônia Cecília é Orestes Agottani, 93 anos, neto de Tranquilo Agottani e o último dos anarquistas. "Eu nunca pratiquei, mas sempre fui fiel à causa socialista. Alguém já me viu entrar numa Igreja?", pergunta Orestes que nem sempre consegue lembrar dos fatos com muita precisão. Ele prefere entender os acontecimentos da vida à luz da ciência e lembra que os imigrantes que passaram por aquela experiência "cultivaram seus ideais até a morte".

Na memória de Orestes ficou também o conflito que havia entre os italianos e os poloneses vizinhos de terreno. "Eles não sabiam ler e eram muito religiosos. Certa vez não deixaram que uma criança fosse enterrada no cemitério de Santa Bárbara. Foi criado inclusive o cemitério dos renegados, tal era o preconceito". Darvino, filho de Orestes, conta que para os poloneses era um escândalo os italianos trabalharem aos domingos e feriados. Era difícil para as pessoas comprender o idealismo daqueles homens que buscavam uma sociedade justa, que não se apoiava em nenhum poder constituído, mas apenas nos laços da fraternidade.

Mas o passado ficou para trás "e hoje, nessa terceira geração, nos damos muito bem com os descendentes. Somos como irmãos", avisa Darvino.

Perfil

Giovanni Rossi
Um comune socialista

O italiano Giovanni Rossi tinha apenas 22 anos de idade quando publicou no ano de 1978 em Milão o livro Um Comune Socialista. Nessa publicação, ele já expunha as bases dos primeiros projetos de uma sociedade socialista denominada Poggio Al Mare.

Agrônomo, filósofo, poeta, cientista e jornalista, Rossi procurava um lugar no mundo para comprovar as suas idéias anarquistas e mostrar que a vida comunitária era uma coisa totalmente possível. Ele chegou a organizar uma colônia agrícola em Cremona, chamada Cittadella, na Itália. Mas foi a partir de um encontro com o compositor Carlos Gomes, que estudava na Itália, que surgiu a possibilidade de se montar a colônia anarquista no Brasil.

A partir daí, Rossi procurou através do músico obter de d. Pedro II o patrocínio de seu intento e assim nascia a Colônia Cecília, no município de Palmeira. O anarquista acreditava numa forma de vida sem poder constituído e no casamento poliândrico, sem a estrutura patriarcal. Segundo alguns pesquisadores, na Colônia Cecília ele se uniu publicamente a um casal, que posteriormente incorporou ainda um jovem solteiro. Mas essa era uma prática isolada na Colônia, já que não era copiada pelos outros casais.

Quando a experiência anarquista dissolveu, Giovanni Rossi foi para Santa Catarina, onde trabalhou com Blumenau, no projeto de colonização do Vale do Itajaí. Depois, atuou como professor e diretor de um estabelecimento escolar ligado ao ensino agrícola.

Entre a realidade e a ficção

- Pesquisa recentes apontam que o propagado encontro de Giovanni Rossi com dom Pedro II, em Milão, no ano de 1888, é pura fantasia.

- Alguns livros dizem que anarquista teria mantido contato apenas com Carlos Gomes, que era aluno do seu tio Lauro Rossi, embora Ebe Rossi, filha de Giovanni, tenha negado qualquer parentesco com o professor.

- Para muitas pessoas, a Colônia Cecília serviu para projetar fantasias eróticas, uma vez que viam ali um modelo de liberalidade sexual - imagem o que não corresponde à verdade.

- A experiência do casamento poliândrico foi isolada e se resumiu apenas a Rossi, um casal e um rapaz solteiro. O anarquista acreditava nessa relação não como lascívia, mas como experiência coletiva. Ao desfazer a paternidade, os filhos seriam da comunidade.

- A casa do amor era um local na Colônia Cecília onde os italianos se reuniam para discutir todas as questões de interesse da coletividade.

Uma referência para a arte

Episódio foi matéria-prima para filmes e livros

Além de povoar o imáginário popular, a experiência anarquista da Colônia Cecília serviu de objeto de estudo para historiadores e de matéria-prima para produções em vídeo. Vários livros foram publicados sobre o assunto, entre eles Colônia Cecília, uma Aventura na América, de Afonso Schmidt; O Anarquismo da Colônia Cecília, de Newton Stadler de Souza e O Anarquismo Experimental de Giovanni Rossi, de Candido de Mello Neto.

O próprio Giovanni Rossi escreveu em 1920 a publicação Um Episódio de Amor en la Colonia Socialista Cecília, entre outros textos. Essa obra foi inclusive uma das fontes usadas pelo escritor Valêncio Xavier para compor o seu média-metragem Pão Negro, filme lançado na década de 90 e que mistura pesquisa, depoimentos e ficção.

Outro filme considerado antológico é La Cecilia (1976), do diretor francês Jean-Louis Comolli, crítico nos Cahiers du Cinéma, da geração que sucedeu Truffaut e Godard.

A história da principal experiência anarquista da América Latina também foi levada ao palco em 1984. O Teatro de Comédia do Paraná encenou a peça Colônia Cecília, com direção de Ademar Guerra e contando no elenco com grandes nomes do teatro paranaense como Lala Schneider, Luis Melo e Mário Schoemberger, entre outros.

"A Colônia Cecília foi uma utopia que tinha tudo para dar certo, mas acabou demonstrando que o ser humano ainda não está preparado para a vida em comunidade, para dividir a mesma cozinha, o mesmo amor, embora os imigrantes não tenham recebido qualquer tipo de apoio, e estavam numa região totalmente inóspita", afirma o ator Luis Mello.

O importante, na opinião de Melo, é que apesar do fracasso, a experiência anarquista em Palmeira deixou um ensinamento de vida: o de que é preciso levar os ideais até as últimas conseqüências.

Além disso, continua o ator, a montagem da peça foi essencial para o Teatro de Comédia do Paraná, que naquele momento estava desativado. "Para os atores foi uma lição de vida. O espetáculo mostrou que é preciso acreditar numa ideologia e que o espírito coletivo é necessário para manter a própria sobrevivência humana", conclui. 

Família Gattai embarcou na utopia socialista

Escritora relata experiência em livro

Quem também embarcou na onda da utopia anarquista, apregoada por Giovanni Rossi, foi o casal de italianos Francesco Arnaldo e Argia Gattai. Acompanhados dos cinco filhos, eles deixaram o porto de Gênova, na Itália, em fevereiro de 1890, a bordo do navio Città di Roma, integrando um grupo de cerca de 150 pessoas que tinham como destino a Colônia Cecília, no Paraná.

A história é mencionada pela escritora Zélia Gattai, neta de Francesco Arnaldo, em seu último livro de memórias Città di Roma, lançado recentemente pela editora Record. "Mesmo sabendo que o regime no Brasil havia mudado de Monarquia para República e que a doação de terras, feita pelo imperador, tornara-se um dito pelo não-dito, a família não desistiu de partir para a nova terra, tal era o seu utopismo", conta.

Os Gattai chegaram no Porto de Santos depois de uma travessia longa e penosa, segundo as histórias narradas a Zélia pelo seu tio Guerrando. A parte mais triste da viagem tem como personagem a tia Hiena, cuja origem do nome sempre foi motivo de bem-humoradas especulações. A sorte da menina começou a mudar depois que o leite da matriarca Argia secou e só lhe restou a comida gordurosa e pesada dos adultos.

Quando o grupo de imigrantes chegou ao Porto de Santos, a criança já estava agonizando e a família dos Gattai não pôde embarcar junto com os outros em direção a Paranaguá. Zélia conta que sua tia Hiena ainda resistiu dois dias em terra firme, sendo enterrada em Santos.

Para tristeza maior da família, na chegada a Santos os imigrantes tiveram de entregar todas as roupas, inclusive as que estavam no corpo, para que fossem desinfetadas por exigência do serviço sanitário. "Minha avó tinha comprado roupas lindas e caras para o desembarque no Brasil e quando elas foram devolvidas estavam um horror: encolhidas, desbotadas e amassadas".

Depois de dez dias em Santos, a família Gattai conseguiu finalmente embarcar em outro navio e chegar à Colônia Cecília. Ali, eles permaneceram por dois anos. Mas não vendo mais perspectiva de sucesso, Zélia conta que o avô desistiu da experiência, indo tentar a vida em São Paulo.

"Pelo que me contaram, os animais de proprietários vizinhos também entraram nas lavouras destruindo tudo e além disso a própria falta de autoridade, de disciplina, contribuiu para o fracasso da experiência", acredita Zélia Gattai para quem, no entanto, a Colônia Cecília é matriz de todos os movimentos sociais desencadeados no Brasil.

Segundo ela, o seu avô Francesco foi durante toda a vida um homem de esquerda, "um ateu, graças a Deus". "Os anarquistas eram homens corretos, trabalhadores e movidos pelo ideal de mudar o mundo começando pelo Paraná", ressalta Zélia Gattai, que continua acreditando no ideal do socialismo, "mas com democracia".

Trecho
 
"Pouco antes de avistarmos o acampamento, ao passarmos por uma pequena ponte sobre um riacho, uma das rodas soltou-se, a carroça tombou e caímos todos dentro da água. Caímos nós e nossos pertences. A única coisa que se salvou de molhar foi a bandeira brasileira (...). Foi aí que mamãe, ao ver os filhos tremendo, enregelados, saiu de sua apatia, correu e apanhou a sacola, que se encontrava largada na estrada, retirou dela a única peça seca, a bandeira, para agasalhar os filhos. E assim, enrolados na bandeira do brasileira chegamos à Colônia Cecília, onde, tremulando, hasteada no alto de uma palmeira, uma enorme bandeira vermelha e preta nos saudava."

(Gazeta do Povo)            

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