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ROMA: Cidade fechada

18/06/2001

 

 

Brasileiros da Roma têm vida de rei na capital italiana, mas moram em "gueto" e são vítimas da xenofobia no país

RODRIGO BUENO

   Eles são ricos, famosos e estão prestes a entrar para a história da Itália. Cinco jogadores brasileiros, quatro negros e um branco, que gozam vida de rei em Roma, mas, devido ao racismo, administram ofensas, provocações, conflitos, agressões e atentados.

   Aldair, Antônio Carlos, Cafu, Emerson e Marcos Assunção estão perto de levar a Roma, popular equipe italiana que só ganhou o "scudetto" duas vezes e que não é campeã há quase 18 anos, ao título do Campeonato Italiano.

   Os cinco, porém, experimentam um mar de rosas recheadas de espinhos na capital italiana. Demonstram grande satisfação em trabalhar em Roma, onde têm qualidade de vida invejável, mas criaram um "gueto" para enfrentar a crescente xenofobia na Itália.

   Só Emerson, que foi contratado para esta temporada, não reside ainda em E.U.R., bairro de classe alta afastado do centro, mais próximo do Centro de Treinamento da Roma, do mar e do Aeroporto Internacional de Fiumicino.

   No bairro, que nasceu na metade do século em meio a uma série de exposições e ao fascismo, a vida é tranquila. Quase todos moram em condomínios de alto padrão, com boa segurança. Para os jogadores, em especial, significa distanciamento de torcedores fanáticos e preconceituosos, que promovem manifestações contra negros e judeus.

   As famílias dos cinco brasileiros são hoje uma só. Os homens trabalham juntos, mantêm rotina e hábitos semelhantes. As mulheres dos atletas são íntimas. As crianças frequentam a mesma escola, dividem os mesmos amigos. Todos saem para os mesmos lugares e enfrentam juntos os problemas.

   Os filhos dos atletas, bem ambientados na cidade, praticamente só falam italiano, mesmo com um grande esforço dos pais em manter o português deles ativo. Com pouca idade, aparentemente não sentem ainda os efeitos de uma possível discriminação racial contra eles ou contra seus pais.

   Stefano, 9, e Julia, 6, os filhos de Aldair, por exemplo, podem segurar o pai em Roma após o final de sua carreira -o jogo Roma x Atalanta foi provavelmente o último do zagueiro tetracampeão mundial, que, aos 35 anos, sofreu grave lesão no joelho esquerdo.

   Aldair é o brasileiro que está há mais tempo na Itália (11 anos) e o único entre os negros da Roma que não têm uma mulher branca. Talvez por esses fatores é o que mais discute abertamente o racismo, estampado bastante em mensagens nos jogos em Roma e em muros do centro da cidade.

   ""Quando cheguei aqui, o Gullit [holandês, ex-jogador negro do Milan" falava muito sobre racismo. Acho que tem racismo em algumas partes da Itália, não em todas. É uma coisa que a gente não aceita. Vivo em um país estrangeiro há muito tempo e não aceito esse tipo de provocação."

   Ele diz que as faixas exibidas em jogos da Roma aludindo ao fato de o time ser uma ""esquadra de negros" ou mesmo imitações de macaco por parte de alguns torcedores até o estimulam em campo. ""Quando acontece isso, é uma coisa que me deixa mais forte. Eu consigo me concentrar muito bem na partida, faço coisas melhores", afirma.

   Sua maior revolta aconteceu quando Marcos Assunção, volante que chegou na temporada passada à Roma, foi ofendido pelos próprios romanistas.

   ""Foi muito ruim. Ali fiquei magoado. Não me chamaram de negro, essa coisa. Talvez pelo tempo que eu estou na Roma tiveram esse respeito, mas, a partir do momento em que fizeram com o Assunção, o ofenderam, fiquei chateado. Era o nosso torcedor, não de outro time. Sofri muito e, mais que eu, sofreu o Assunção."

   Após a eliminação na Copa da Itália, no início da temporada, Assunção e Cafu foram atacados por torcedores racistas no CT.

   "Chutaram, arranharam e riscaram meu carro. O meu e o do Cafu, que estava com as crianças dentro. Foi um momento difícil porque seu próprio torcedor te agredir é uma coisa estranha", conta Assunção, que pouco jogou por não ser comunitário -com as novas regras, terá mais chance.
Assunção procura ignorar o racismo. ""Para nós, jogadores negros, é chato ver que um país como a Itália ainda tem esse problema. A partir do momento em que você entra no campo, tem que tapar os ouvidos, jogar e esquecer o que estão falando."

   Ele também fala em estímulo em campo após provocações racistas (quando vêm da torcida adversária). ""Isso serve até como estímulo a mais para fazermos o melhor e ganharmos do time que eles estão torcendo."

   Já Cafu, o mais extrovertido dos jogadores da Roma (é o que possui mais amigos italianos) e mais querido brasileiro do time, desdenha a dura situação que os negros vivem na Itália hoje.

   "Para ser sincero, se não falassem para mim que tinha uma faixa em campo, eu nem ia ficar sabendo. Eu não vejo nada", afirma o ala-direito, que promoveu festa para celebrar a comunhão dos filhos em restaurante no centro da cidade, cercado de muros com pichações xenófobas.

   "O racismo é uma falta de educação e cultura, sem dúvida nenhuma. Para mim é uma ignorância", diz Cafu, que vê sua camisa em quase toda Roma.

   "A torcida nunca pegou no meu pé. Sempre me incentivaram, me deram apoio, força", minimizando o incidente que pôs em risco a integridade física de seus filhos no CT em Trigoria.

   Emerson, que ainda se adapta à Itália depois de três anos na Alemanha, onde defendeu o Bayer Leverkusen, não sofreu agressão, mas reconhece um clima tenso.

   "Nos três anos em que vivi na Alemanha não vi situação desse tipo. Estamos no ano 2001 e temos esse tipo de coisa. É ruim, e a gente fala sobre racismo."

   Diante de xenofobia tão escancarada, Emerson, como a maioria dos negros na Itália, resigna-se. ""Se as pessoas vão para um espetáculo com essa mentalidade, o que você pode fazer?"

   Antônio Carlos, o brasileiro branco do time, sente pelos colegas. ""Como brasileiro, é chato", diz o zagueiro, que estuda contratar segurança novamente após ser agredido em um restaurante.

   Ele parece sentir mais que Cafu, que diz ter sofrido humilhação apenas no Maracanã, quando foi vaiado pelos conterrâneos.

   "Se você pensa bem, o Brasil não foge muito disso não. Esse tipo de racismo [o que se vê hoje na Itália] não tem, mas a gente vê que tem racismo no Brasil também. O mundo inteiro tem." (Folha de S. Paulo)

Torcidas de origem fascista fazem negócios e intimidam clubes, mas problema atinge também times de "esquerda"

   A história de alguns times italianos, em especial os de Roma, está fortemente ligada com a política e com manifestações racistas.

   A Lazio, vista hoje como líder na Itália em matéria de xenofobia, sempre foi atrelada ao fascismo. Já a Roma posa de ""clube de esquerda", mas nem por isso alguns de seus torcedores deixam de levantar a bandeira do racismo.

   Há cerca de 15 anos, nascia na Itália um grupo conhecido como ""Irriducibili". Formado por radicais torcedores da Lazio, o grupo tomou conta da Curva Nord, arquibancada que fica atrás de um dos gols do estádio Olímpico.

   Com gritos de ""buuu" para os atletas negros e cantando hinos fascistas (Giovinezza e Faccetta Nera), o ""Irriducibili" expulsou da Curva Nord, até mesmo com pancadas, pessoas que não seguiam o pensamento do grupo. No último clássico com a Roma, foi exibida nesse setor faixa com a mensagem ""Squadra di Negri, Tifoseria di Ebrei" (time de negros, torcida de judeus).

   No passado, a Lazio já teve outras torcidas extremistas, como ""Eagles Supporters" e ""Viking". Frequentemente, esses grupos entravam em choque com torcidas adversárias ligadas à esquerda em toda a Itália -o Milan, o Perugia e a Ternana são alguns dos clubes que têm torcidas esquerdistas.

   Um jogador que virou grande alvo da torcida da Lazio foi o holandês Winter. Negro e judeu, ele teve destaque no time, mas viveu com provocações. Winter era amigo de Gullit, ídolo do Milan que liderava os jogadores negros na Itália, mas defendeu passivamente de 1992 a 96 a Lazio mesmo sendo vítima do preconceito.

   A Lazio é apenas um dos clubes com grande tradição em xenofobia na Itália. Verona, Brescia e Atalanta, por exemplo, também contam com grupos radicais.
O presidente do Verona, Giambattista Pastorello, declarou a uma rádio nesta temporada que jamais contrataria um jogador negro para não ter problemas com a torcida. A Udinese já dispensou um jogador judeu devido à revolta de seus torcedores.

   Mas é na equipe romana que os extremistas mais têm poder. A SS Lazio controla a venda de produtos oficiais do time e os ingressos para os jogos da equipe fora de Roma. As caravanas de torcedores da Lazio pela Itália são verdadeiras manifestações fascistas.

   Membros da maior torcida da Lazio teriam sido os responsáveis pela agressão a Antônio Carlos em um restaurante -seria uma resposta ao fato de o zagueiro ter gerado a expulsão de Simeone num dos clássicos entre os times.

   Uma semana depois da agressão, a mulher de Yuri, o líder principal dos ""Irriducibili", foi espancada e sofreu tentativa de estupro na frente de sua casa. Foi uma resposta dos torcedores da Roma.

   A imagem da Lazio está tão afetada pelos últimos atos que Sergio Cragnotti, presidente do clube, recebeu em Formello, onde a equipe treina, um grupo de judeus em jogada de marketing.

   A Roma, com imagem brasileira, também tem sua versão dos ""Irriducibili". O grupo AS Roma Ultras vem tentando dominar a Curva Sud do Olímpico, antes ocupada pelo grupo CUCS.

   Entre outras coisas, o AS Roma Ultras exibe a suástica. Como a Roma é esquerdista, o símbolo recebe algumas vaias. E só. (RBU) (Folha de S. Paulo)

Quinteto vive céu ou inferno hoje

   Uma festa inesquecível e um espaço na história de um dos clubes mais amados da Itália. Ou uma frustração épica e o risco de ser execrado e até agredido. Eis o que o jogo de hoje, entre Roma e Parma, oferece a cinco brasileiros.

   A Roma não consegue um título desde 1983, quando tinha como astro um volante brasileiro: Falcão. A ansiedade em busca do "scudetto" cresceu na temporada passada, quando a Lazio, grande rival da equipe, conquistou a taça.

   A "fila" romana deveria ter sido quebrada já há algumas rodadas não fosse a queda de rendimento do time do técnico Fabio Capello. No domingo passado, cerca de 180 mil pessoas acompanharam nas ruas de Roma o jogo contra o Napoli certas do título, mas, com um empate de 2 a 2, a festa foi adiada. E pior: pode não ocorrer.

   A Juventus, especialmente, e a Lazio podem alcançar hoje, na rodada derradeira do torneio, a Roma em pontos -a Juventus pode até passar a equipe romana.

   Caso dois times terminem em igualdade de pontos, o regulamento prevê um jogo extra para a definição do campeão. Isso acontecerá se a Roma empatar com o Parma e a Juventus ganhar do Atalanta ou também se a Roma perder, a Lazio vencer e a Juventus não sair vitoriosa hoje.
Apenas a Roma depende de si, mas uma vitória simples contra o Parma, mesmo no estádio Olímpico, é vista como missão difícil -o Parma é o quarto colocado na tabela e foi vice da Copa da Itália.

   A Juventus e a Lazio enfrentam, respectivamente, Atalanta e Lecce, dois adversários frágeis.

   A pressão está toda, é claro, na Roma. Os brasileiros que o digam. ""Já perdi um Campeonato Alemão nos últimos minutos. Não quero nem pensar", disse Emerson, que viu o seu Bayer Leverkusen perder um título quase ganho para o Bayern de Munique na temporada passada.

   Além de Emerson, Cafu e Antônio Carlos estarão em campo hoje. Marcos Assunção fica como opção no banco de reservas. Aldair, contundido, só torce pelo título que transformaria todos os cinco em novos ""Reis de Roma".

   "A gente ouve aqui que o título italiano para a Roma é mais importante que a Copa do Mundo. Será uma loucura", disse Aldair, que está no clube desde 1990.

   Os brasileiros da Roma sabem que serão os maiores heróis ou vilões. ""Os brasileiros são os mais cobrados", disse Cafu. (RBU) (Folha de S. Paulo)


ANÁLISE

Racismo na Itália remete a paradoxo do país

HUMBERTO SACCOMANDI

   Há vários fatores tradicionalmente associados ao fenômeno do racismo no futebol italiano. Mas convém antes dizer que não se trata de um sentimento generalizado no país, ainda que seja difícil estimar o quão isolado seja.
Nas recentes eleições parlamentares, a Liga Norte, abertamente xenófoba, teve menos de 4% dos votos. Mas a Forza Italia (partido do atual premiê, Silvio Berlusconi) e a Alianza Nazionale (neofascistas), que exploraram o sentimento antiimigração, venceram.

   Na raiz do problema há um paradoxo italiano. Apesar de ser um dos países europeus que mais toleram a imigração ilegal e de receber um percentual de imigrantes equivalente ao de outros países, a Itália parece ter uma dificuldade maior de integrá-los e de se aceitar como sociedade multiétnica.

   Itália e Alemanha, que se unificaram como nações somente na segunda metade do século 19, não participaram da expansão colonial européia na África e na Ásia. A Itália não teve colônias, a não ser por um breve período no regime fascista e que não deixou marcas na sociedade. Desse modo, há poucos italianos negros, orientais, hindus ou norte-africanos, em comparação com França, Holanda, Reino Unido ou Portugal.

   No caso do futebol, fica difícil, até mesmo para um obtuso torcedor neonazista, não perceber a contradição entre vaiar um negro de um time adversário e torcer por outro que atua na sua seleção. Na seleção italiana, por exemplo, não há jogadores de origem estrangeira (houve, sim, italianos nascidos em outros países).

   Já metade dos titulares da França campeã mundial em 98 era imigrante, a começar pelo craque Zinedine Zidane.

(Folha de S. Paulo)

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