Brasileiros da Roma têm vida de rei na
capital italiana, mas moram em "gueto" e são vítimas da xenofobia no país
RODRIGO BUENO
Eles são ricos, famosos e estão prestes a entrar para a história da
Itália. Cinco jogadores brasileiros, quatro negros e um branco, que gozam vida de rei em
Roma, mas, devido ao racismo, administram ofensas, provocações, conflitos, agressões e
atentados.
Aldair, Antônio Carlos, Cafu, Emerson e Marcos
Assunção estão perto de levar a Roma, popular equipe italiana que só ganhou o
"scudetto" duas vezes e que não é campeã há quase 18 anos, ao título do
Campeonato Italiano.
Os cinco, porém, experimentam um mar de rosas
recheadas de espinhos na capital italiana. Demonstram grande satisfação em trabalhar em
Roma, onde têm qualidade de vida invejável, mas criaram um "gueto" para
enfrentar a crescente xenofobia na Itália.
Só Emerson, que foi contratado para esta temporada,
não reside ainda em E.U.R., bairro de classe alta afastado do centro, mais próximo do
Centro de Treinamento da Roma, do mar e do Aeroporto Internacional de Fiumicino.
No bairro, que nasceu na metade do século em meio a
uma série de exposições e ao fascismo, a vida é tranquila. Quase todos moram em
condomínios de alto padrão, com boa segurança. Para os jogadores, em especial,
significa distanciamento de torcedores fanáticos e preconceituosos, que promovem
manifestações contra negros e judeus.
As famílias dos cinco brasileiros são hoje uma só.
Os homens trabalham juntos, mantêm rotina e hábitos semelhantes. As mulheres dos atletas
são íntimas. As crianças frequentam a mesma escola, dividem os mesmos amigos. Todos
saem para os mesmos lugares e enfrentam juntos os problemas.
Os filhos dos atletas, bem ambientados na cidade,
praticamente só falam italiano, mesmo com um grande esforço dos pais em manter o
português deles ativo. Com pouca idade, aparentemente não sentem ainda os efeitos de uma
possível discriminação racial contra eles ou contra seus pais.
Stefano, 9, e Julia, 6, os filhos de Aldair, por
exemplo, podem segurar o pai em Roma após o final de sua carreira -o jogo Roma x Atalanta
foi provavelmente o último do zagueiro tetracampeão mundial, que, aos 35 anos, sofreu
grave lesão no joelho esquerdo.
Aldair é o brasileiro que está há mais tempo na
Itália (11 anos) e o único entre os negros da Roma que não têm uma mulher branca.
Talvez por esses fatores é o que mais discute abertamente o racismo, estampado bastante
em mensagens nos jogos em Roma e em muros do centro da cidade.
""Quando cheguei aqui, o Gullit [holandês,
ex-jogador negro do Milan" falava muito sobre racismo. Acho que tem racismo em
algumas partes da Itália, não em todas. É uma coisa que a gente não aceita. Vivo em um
país estrangeiro há muito tempo e não aceito esse tipo de provocação."
Ele diz que as faixas exibidas em jogos da Roma
aludindo ao fato de o time ser uma ""esquadra de negros" ou mesmo
imitações de macaco por parte de alguns torcedores até o estimulam em campo.
""Quando acontece isso, é uma coisa que me deixa mais forte. Eu consigo me
concentrar muito bem na partida, faço coisas melhores", afirma.
Sua maior revolta aconteceu quando Marcos Assunção,
volante que chegou na temporada passada à Roma, foi ofendido pelos próprios romanistas.
""Foi muito ruim. Ali fiquei magoado. Não
me chamaram de negro, essa coisa. Talvez pelo tempo que eu estou na Roma tiveram esse
respeito, mas, a partir do momento em que fizeram com o Assunção, o ofenderam, fiquei
chateado. Era o nosso torcedor, não de outro time. Sofri muito e, mais que eu, sofreu o
Assunção."
Após a eliminação na Copa da Itália, no início
da temporada, Assunção e Cafu foram atacados por torcedores racistas no CT.
"Chutaram, arranharam e riscaram meu carro. O
meu e o do Cafu, que estava com as crianças dentro. Foi um momento difícil porque seu
próprio torcedor te agredir é uma coisa estranha", conta Assunção, que pouco
jogou por não ser comunitário -com as novas regras, terá mais chance.
Assunção procura ignorar o racismo. ""Para nós, jogadores negros, é chato
ver que um país como a Itália ainda tem esse problema. A partir do momento em que você
entra no campo, tem que tapar os ouvidos, jogar e esquecer o que estão falando."
Ele também fala em estímulo em campo após
provocações racistas (quando vêm da torcida adversária). ""Isso serve até
como estímulo a mais para fazermos o melhor e ganharmos do time que eles estão
torcendo."
Já Cafu, o mais extrovertido dos jogadores da Roma
(é o que possui mais amigos italianos) e mais querido brasileiro do time, desdenha a dura
situação que os negros vivem na Itália hoje.
"Para ser sincero, se não falassem para mim que
tinha uma faixa em campo, eu nem ia ficar sabendo. Eu não vejo nada", afirma o
ala-direito, que promoveu festa para celebrar a comunhão dos filhos em restaurante no
centro da cidade, cercado de muros com pichações xenófobas.
"O racismo é uma falta de educação e cultura,
sem dúvida nenhuma. Para mim é uma ignorância", diz Cafu, que vê sua camisa em
quase toda Roma.
"A torcida nunca pegou no meu pé. Sempre me
incentivaram, me deram apoio, força", minimizando o incidente que pôs em risco a
integridade física de seus filhos no CT em Trigoria.
Emerson, que ainda se adapta à Itália depois de
três anos na Alemanha, onde defendeu o Bayer Leverkusen, não sofreu agressão, mas
reconhece um clima tenso.
"Nos três anos em que vivi na Alemanha não vi
situação desse tipo. Estamos no ano 2001 e temos esse tipo de coisa. É ruim, e a gente
fala sobre racismo."
Diante de xenofobia tão escancarada, Emerson, como a
maioria dos negros na Itália, resigna-se. ""Se as pessoas vão para um
espetáculo com essa mentalidade, o que você pode fazer?"
Antônio Carlos, o brasileiro branco do time, sente
pelos colegas. ""Como brasileiro, é chato", diz o zagueiro, que estuda
contratar segurança novamente após ser agredido em um restaurante.
Ele parece sentir mais que Cafu, que diz ter sofrido
humilhação apenas no Maracanã, quando foi vaiado pelos conterrâneos.
"Se você pensa bem, o Brasil não foge muito
disso não. Esse tipo de racismo [o que se vê hoje na Itália] não tem, mas a gente vê
que tem racismo no Brasil também. O mundo inteiro tem." (Folha de S. Paulo)
Torcidas
de origem fascista fazem negócios e intimidam clubes, mas problema atinge também times
de "esquerda"
A história de alguns times italianos,
em especial os de Roma, está fortemente ligada com a política e com manifestações
racistas.
A Lazio, vista hoje como líder na
Itália em matéria de xenofobia, sempre foi atrelada ao fascismo. Já a Roma posa de
""clube de esquerda", mas nem por isso alguns de seus torcedores deixam de
levantar a bandeira do racismo.
Há cerca de 15 anos, nascia na Itália
um grupo conhecido como ""Irriducibili". Formado por radicais torcedores da
Lazio, o grupo tomou conta da Curva Nord, arquibancada que fica atrás de um dos gols do
estádio Olímpico.
Com gritos de ""buuu"
para os atletas negros e cantando hinos fascistas (Giovinezza e Faccetta Nera), o
""Irriducibili" expulsou da Curva Nord, até mesmo com pancadas, pessoas
que não seguiam o pensamento do grupo. No último clássico com a Roma, foi exibida nesse
setor faixa com a mensagem ""Squadra di Negri, Tifoseria di Ebrei" (time de
negros, torcida de judeus).
No passado, a Lazio já teve outras
torcidas extremistas, como ""Eagles Supporters" e ""Viking".
Frequentemente, esses grupos entravam em choque com torcidas adversárias ligadas à
esquerda em toda a Itália -o Milan, o Perugia e a Ternana são alguns dos clubes que têm
torcidas esquerdistas.
Um jogador que virou grande alvo da
torcida da Lazio foi o holandês Winter. Negro e judeu, ele teve destaque no time, mas
viveu com provocações. Winter era amigo de Gullit, ídolo do Milan que liderava os
jogadores negros na Itália, mas defendeu passivamente de 1992 a 96 a Lazio mesmo sendo
vítima do preconceito.
A Lazio é apenas um dos clubes com
grande tradição em xenofobia na Itália. Verona, Brescia e Atalanta, por exemplo,
também contam com grupos radicais.
O presidente do Verona, Giambattista Pastorello, declarou a uma rádio nesta temporada que
jamais contrataria um jogador negro para não ter problemas com a torcida. A Udinese já
dispensou um jogador judeu devido à revolta de seus torcedores.
Mas é na equipe romana que os
extremistas mais têm poder. A SS Lazio controla a venda de produtos oficiais do time e os
ingressos para os jogos da equipe fora de Roma. As caravanas de torcedores da Lazio pela
Itália são verdadeiras manifestações fascistas.
Membros da maior torcida da Lazio teriam
sido os responsáveis pela agressão a Antônio Carlos em um restaurante -seria uma
resposta ao fato de o zagueiro ter gerado a expulsão de Simeone num dos clássicos entre
os times.
Uma semana depois da agressão, a mulher
de Yuri, o líder principal dos ""Irriducibili", foi espancada e sofreu
tentativa de estupro na frente de sua casa. Foi uma resposta dos torcedores da Roma.
A imagem da Lazio está tão afetada
pelos últimos atos que Sergio Cragnotti, presidente do clube, recebeu em Formello, onde a
equipe treina, um grupo de judeus em jogada de marketing.
A Roma, com imagem brasileira, também
tem sua versão dos ""Irriducibili". O grupo AS Roma Ultras vem tentando
dominar a Curva Sud do Olímpico, antes ocupada pelo grupo CUCS.
Entre outras coisas, o AS Roma Ultras
exibe a suástica. Como a Roma é esquerdista, o símbolo recebe algumas vaias. E só. (RBU) (Folha de S. Paulo) |
Quinteto vive
céu ou inferno hoje
Uma festa inesquecível e um espaço na história de
um dos clubes mais amados da Itália. Ou uma frustração épica e o risco de ser execrado
e até agredido. Eis o que o jogo de hoje, entre Roma e Parma, oferece a cinco
brasileiros.
A Roma não consegue um título desde 1983, quando
tinha como astro um volante brasileiro: Falcão. A ansiedade em busca do
"scudetto" cresceu na temporada passada, quando a Lazio, grande rival da equipe,
conquistou a taça.
A "fila" romana deveria ter sido quebrada
já há algumas rodadas não fosse a queda de rendimento do time do técnico Fabio
Capello. No domingo passado, cerca de 180 mil pessoas acompanharam nas ruas de Roma o jogo
contra o Napoli certas do título, mas, com um empate de 2 a 2, a festa foi adiada. E
pior: pode não ocorrer.
A Juventus, especialmente, e a Lazio podem alcançar
hoje, na rodada derradeira do torneio, a Roma em pontos -a Juventus pode até passar a
equipe romana.
Caso dois times terminem em igualdade de pontos, o
regulamento prevê um jogo extra para a definição do campeão. Isso acontecerá se a
Roma empatar com o Parma e a Juventus ganhar do Atalanta ou também se a Roma perder, a
Lazio vencer e a Juventus não sair vitoriosa hoje.
Apenas a Roma depende de si, mas uma vitória simples contra o Parma, mesmo no estádio
Olímpico, é vista como missão difícil -o Parma é o quarto colocado na tabela e foi
vice da Copa da Itália.
A Juventus e a Lazio enfrentam, respectivamente,
Atalanta e Lecce, dois adversários frágeis.
A pressão está toda, é claro, na Roma. Os
brasileiros que o digam. ""Já perdi um Campeonato Alemão nos últimos minutos.
Não quero nem pensar", disse Emerson, que viu o seu Bayer Leverkusen perder um
título quase ganho para o Bayern de Munique na temporada passada.
Além de Emerson, Cafu e Antônio Carlos estarão em
campo hoje. Marcos Assunção fica como opção no banco de reservas. Aldair, contundido,
só torce pelo título que transformaria todos os cinco em novos ""Reis de
Roma".
"A gente ouve aqui que o título italiano para a
Roma é mais importante que a Copa do Mundo. Será uma loucura", disse Aldair, que
está no clube desde 1990.
Os brasileiros da Roma sabem que serão os maiores
heróis ou vilões. ""Os brasileiros são os mais cobrados", disse Cafu. (RBU) (Folha de S. Paulo)
ANÁLISE
Racismo na Itália remete a paradoxo do país
HUMBERTO SACCOMANDI
Há vários fatores tradicionalmente associados ao fenômeno do racismo no
futebol italiano. Mas convém antes dizer que não se trata de um sentimento generalizado
no país, ainda que seja difícil estimar o quão isolado seja.
Nas recentes eleições parlamentares, a Liga Norte, abertamente xenófoba, teve menos de
4% dos votos. Mas a Forza Italia (partido do atual premiê, Silvio Berlusconi) e a Alianza
Nazionale (neofascistas), que exploraram o sentimento antiimigração, venceram.
Na raiz do problema há um paradoxo italiano. Apesar
de ser um dos países europeus que mais toleram a imigração ilegal e de receber um
percentual de imigrantes equivalente ao de outros países, a Itália parece ter uma
dificuldade maior de integrá-los e de se aceitar como sociedade multiétnica.
Itália e Alemanha, que se unificaram como nações
somente na segunda metade do século 19, não participaram da expansão colonial européia
na África e na Ásia. A Itália não teve colônias, a não ser por um breve período no
regime fascista e que não deixou marcas na sociedade. Desse modo, há poucos italianos
negros, orientais, hindus ou norte-africanos, em comparação com França, Holanda, Reino
Unido ou Portugal.
No caso do futebol, fica difícil, até mesmo para um
obtuso torcedor neonazista, não perceber a contradição entre vaiar um negro de um time
adversário e torcer por outro que atua na sua seleção. Na seleção italiana, por
exemplo, não há jogadores de origem estrangeira (houve, sim, italianos nascidos em
outros países).
Já metade dos titulares da França campeã mundial
em 98 era imigrante, a começar pelo craque Zinedine Zidane.
(Folha de S. Paulo)