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O escritor Primo Levi |
Coletânea "71 Contos" reúne as três
obras de ficção científica do autor italiano Primo Levi, as quais,
porém, não conseguem atingir o mesmo nível de seu clássico "É Isto um
Homem?"
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Um
aparelho capaz de produzir versos automaticamente, em qualquer forma
poética conhecida. Máquinas que funcionam como uma espécie de xerox
tridimensional, criando réplicas quase perfeitas de tudo o que quisermos
-animais e seres humanos inclusive. Substâncias químicas indutoras de
felicidade psicológica ou de espírito de sacrifício. Pessoas que vivem
séculos, graças a técnicas de congelamento. Um medidor mecânico,
objetivo, da beleza física dos seres humanos. Vernizes que evitam o mau
olhado.
É
desse gênero de produtos e descobertas que se alimentam os três livros
de ficção científica de Primo Levi que a editora Companhia das Letras
colige no volume "71 Contos".
Formado em química pela Universidade de Turim, Primo Levi participava de
um movimento de resistência antifascista em dezembro de 1943, quando foi
descoberto pelos partidários de Mussolini e deportado para Auschwitz.
Seu primeiro livro, "É Isto um Homem?", foi publicado em 1947 e
constitui um dos mais importantes relatos já escritos sobre a
experiência de sobreviver aos campos de extermínio nazistas.
O
extraordinário poder de síntese, de compaixão reflexiva e sobriedade
literária daquele pequeno volume de testemunho pessoal (175 páginas na
edição brasileira da Rocco) é infelizmente substituído, na maioria dos
contos aqui publicados, por uma espécie de crispação satírica, de
imediatismo narrativo, de superficialidade sem leveza, que torna
bastante irritante, ou pelo menos inócuo, o empenho ficcional do autor.
Perda de impacto
Contribui
para essa impressão a circunstância de que "Histórias Naturais", o
primeiro livro de ficção científica de Levi, foi publicado em 1966. O
que ali aparecia como novidade tecnológica intrigante ou absurda tende a
perder impacto diante das descobertas reais -clonagem, transgênicos,
antidepressivos, bebês de proveta, internet- que estão no cotidiano de
qualquer leitor de jornais hoje em dia.
Uma ou outra história retém, como que involuntariamente, sua força de
antecipação: é quando Primo Levi imagina uma espécie de epidemia que
atinge os automóveis ou quando supõe que o sistema telefônico possa ser
atacado por uma praga virtual de trotes e ligações erradas. Em casos
assim, o que surpreende é encontrar o que já sabemos possível (os vírus
de computador) num contexto ainda alheio aos sucessos da informática.
Tudo se passaria melhor se os contos de Levi procurassem desenvolver,
como ocorre em certos clássicos da ficção científica, as conseqüências
mais remotas, os resultados extremos e paradoxais de determinada
descoberta.
Os
contos de "Histórias Naturais" obedecem, entretanto, a outro tipo de
estrutura e de intenção literária. Na maior parte das vezes, o leitor se
vê diante de uma situação estranha, de um diálogo inicialmente
incompreensível, até o momento em que o autor revela o artefato, a
invenção estrambótica na qual o conto se baseava. A história se esgota,
assim, quando ficamos conhecendo o invento imaginado; trata-se, sem
dúvida, de uma ficção científica em que o interesse ainda está focado na
antecipação tecnológica, como nos velhos exemplos de Júlio Verne; claro
que, agora, num espírito bem mais crítico e pessimista.
Das geringonças inventadas pelo americano Simpson -personagem caricata,
que retorna em vários contos- aos diversos casos de hibridismo biológico
propostos em "Desfibragem" (homens com genes de trutas ou esquilos),
passando pelos hoje banais bebês de proveta e pelas técnicas de
marketing imaginadas no ainda chocante "Escrito na Testa", um fio
condutor parece ligar estas histórias às preocupações mais profundas de
Primo Levi. Comum a todas estas narrativas, o tema da desumanização do
mundo é retrabalhado de inúmeras formas. Trabalhadores-insetos, robôs
incipientes, centauros, automóveis dotados de sexualidade, frascos onde
se guarda a memória pessoal, sanguessugas que escrevem textos, galinhas
que censuram outros: em todas essas situações, como aponta o excelente
prefácio de Maurício Santana Dias, é da negação do homem que se trata.
Ainda que indiretamente, retorna-se assim ao centro das preocupações -e
ao próprio título- do melhor livro de Primo Levi. Mas o autor de "É Isto
um Homem?" felizmente se reconhece em outros momentos desta coletânea de
contos.
Depois de "Histórias Naturais" (1966) e "Vício de Forma" (1971),
"Lilith", o terceiro livro incluído nesta edição, traz textos mais
variados, livres da incômoda armadura ficcional dos anteriores.
Experiência química
Publicado originalmente em 1981, "Lilith" divide-se em três
partes. Se "Futuro Anterior" repete, com poucas mudanças, os esquemas da
ficção fantástica que já conhecemos, as doze notáveis evocações de
"Passado Próximo" e os textos de "Presente Indicativo" -algo entre a
crônica e o que poderíamos chamar de "documentário escrito"- valem pelo
livro inteiro.
Em
"O Desafio da Molécula" somos confrontados, por exemplo, com a
possibilidade de uma "narrativa científica" de não-ficção (?),
magistralmente levada a cabo pelo autor. Trata-se de uma experiência
química que termina não dando certo, num cenário industrial comum,
baseada em depoimentos de total simplicidade, da qual Primo Levi sabe
extrair, no parágrafo final, uma belíssima e austera conclusão.
Sua imensa arte literária pode ser avaliada, com efeito, no modo com que
duas ou três frases dão o fecho moral para cada episódio narrado,
circunscrevendo-o numa experiência ao mesmo tempo exemplar e
inesgotável, eloqüente, mas impossível de explicar em sua plenitude.
É
o que acontece na seqüência de retratos de alguns dos prisioneiros de
Auschwitz -o cigano Grigo, o santo Ezra, o adorável Tschler, o melômano
Wolf-, que fazem de "Passado Próximo" um conjunto de textos comparável
ao que de melhor Primo Levi escreveu, e muito superior aos contos que
lhe fazem companhia neste livro.
71 Contos
528 págs., R$ 41 de Primo Levi. Tradução de Maurício Santana Dias.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).
(© Folha
de S. Paulo)
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