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Cidadão Dario Fo


 

Maria Elisa Franco/ Divulgação

Julio Adrião tem vigorosa interpretação no monólogo ‘A descoberta das Américas’, em cartaz no Mercado 45, no Centro.

Prêmio Nobel de Literatura de 1997, o italiano Dario Fo, cuja peça 'A descoberta das Américas' lota teatro no Rio, conta que disputa a Prefeitura de Milão em protesto civil ao que chama de vergonhosa parceria da Itália com o poderio bélico americano

Macksen Luiz

   A dramaturgia de Dario Fo está identificada com um certo tipo de ''agitação-propaganda'' no qual o texto serve a um propósito político. Mas, paralelamente às peças de agit-prop dos anos 70, em que se induzia o espectador a tomar posições diante do que era proposto cenicamente, através do envolvimento total da platéia com o espetáculo, o teatro de Fo se baseia na múltipla tradição do palco. Ao mesmo tempo em que pode construir um monólogo (como em Brincando em cima daquilo) para revelar a condição da mulher, ou reunir vários esquetes (em Um orgasmo adulto escapou do zoológico) alinhavados pela bufonaria para projetar problemas contemporâneos, pode ainda escrever uma comédia tradicional (Ninguém pega, ninguém paga) para tentar justificar socialmente saques a supermercados, ou investir criticamente contra a Igreja (Mistério bufo) por meio da revisão do Evangelho.

   Mas ele pode também revisar o caráter civilizatório do europeu em terras inexploradas, o que pode ser visto atualmente na Casa Mercado 45, em A descoberta das Américas, monólogo vivido pelo ator Julio Adrião. Em cartaz desde 14 de setembro no pequeno espaço do Centro, com casa cheia, a montagem acaba de ter sua temporada prorrogada até 8 de dezembro.

   Dario Fo, italiano de 79 anos, Prêmio Nobel de Literatura de 1997, autor, ator, diretor, cenógrafo, figurinista, decorador, desenhista, é um homem-instrumento da política que transforma a sua ação artística em atos de intervenção. Se no teatro essa intervenção reflete idéias que se confundem com ideologia, na sociedade, o cidadão Fo faz bem mais do que metaforizar cenicamente as suas idéias, buscando a concretização de inquestionável papel social. Fo se candidatou pela lista Unione, que reúne militantes de esquerda, à Prefeitura de Milão. Nas primárias, que acontecem em janeiro, ele se apresenta como um dos postulantes ao cargo, ''candidato da sociedade civil'', sem nenhuma filiação partidária.

   - Há uma situação difícil, atualmente, em Milão, a minha cidade. A esquerda se encontra num estado de confusão de valores, em conseqüência da falta de clareza de idéias, numa conjuntura emergencial que, inclusive, levou a classe política a pleitear as eleições primárias. Minha intervenção nesta fase visa a colocar-me em jogo como sujeito político e pôr minhas energias à disposição desta ciranda pública de idéias, cumprindo minha função de cidadão e ao mesmo tempo, estimulando a cultura democrática da participação - diz ele, em entrevista ao JB, por telefone, de Milão.

   A descoberta das Américas (Johan Padan a la descoverta de le Americhe), escrita em 1992 e por encomenda da comissão de comemorações dos 500 anos de chegada dos europeus ao Novo Mundo, faz o mesmo percurso das críticas atuais de Fo ao poderio americano. Na montagem brasileira, assinada por Alessandra Vannucci e vigorosamente interpretada por Julio Adrião, há um histrionismo que destaca os métodos de dominação. Na versão de Dario Fo, ele próprio o intérprete deste monólogo, abre-se mão do histrionismo e o ator, quase hierático em cena, vai desfiando sua denúncia de maneira fria, contracenando apenas com a projeção dos painéis com os seus desenhos.

   - A peça não é uma narrativa apenas ligada a um evento histórico, muito menos a uma só conjuntura de representação. Visa a ser uma história universal, é a crônica daquilo que acontece quando a Europa entra na história de um outro povo e o invade, domina e escraviza. É a crônica da infinita cobiça da Europa diante dos tesouros da América, aliás das Américas, mas ao mesmo tempo poderia valer como história da infinita avidez do Ocidente, enquanto civilização da extorsão e do assalto, que se manifestou também na África, na Índia e agora no Oriente Médio. É universal porque, quando se constata a história da ''descoberta'' da América, percebemos que, do sistema de extorsão colonialista até o atual sistema imperialista, os mecanismos de invasão e marginalização permanecem, mais ou menos, os mesmos.

   Como autor de farsas, a totalidade delas políticas, Dario Fo se apropria de personagens que circulam pela vida pública italiana e os transfere para o seu teatro. Se há alguns anos o ex-magistrado Antonio di Pietro, símbolo da Operação Mãos Limpas, foi o inspirador da sua peça O diabo com tetas, o atual primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, é alvo de um dos seus textos para o palco, A anomalia de duas cabeças, do ano passado, em que o próprio Fo representa o líder, mostrando-o como um anão abobalhado. Para ele, o líder ''já é por si só um personagem de farsa'':

   - É um sujeito que se deixa apanhar em situações cômicas. Por exemplo, após ter enviado três mil soldados italianos para o Iraque e ter investido, oficialmente, como primeiro-ministro, na aliança armada com os Estados Unidos, agora, diante do rumo catastrófico desta guerra, declara que sempre foi contrário a toda e qualquer guerra. Dentro desse quadro real, Berlusconi se enquadra no papel farsesco de empregado do vilão, numa farsa em que o vilão fracassa e é castigado, e o empregado tenta se salvar a todo custo. É fácil fazer dele um personagem cômico, já que é uma figura que lida com a realidade de forma grotesca.

(© JB Online)


Idéias em carne e osso

   Daí a candidatura de Fo também adquirir o sentido de protesto contra a posição secundária que a Europa assume diante da presença hegemônica dos Estados Unidos.

   - A Europa poderia ter um papel muito importante na conjuntura mundial, inclusive a Itália, se quisesse opor seus fundamentos humanistas e sua cultura de construção de paz contra toda essa violência bélica que expressa a vontade de poder do império americano.

   Mas, para ele, justamente a Itália tem puxado o tapete da Europa, já que Berlusconi se colocou, não contra, mas a serviço da missão americana no Iraque, a qual, ao invés de ser uma ''missão de paz'', na verdade é uma campanha militar invasiva. Como tal, trouxe a tragédia do povo iraquiano aos olhos de todos na cena mundial, e também trouxe luto, sofrimento e prejuízo para a própria Itália.

   - Esta é mais uma razão para que eu participe, assim como todos aqueles que discordam como cidadãos, têm direitos e devem levantar a voz e entrar na ágora, intervir na luta democrática para dizer não a esta Itália que envergonha e enfraquece a Europa.

   Mas será que todas as preocupações políticas de Dario Fo se concretizam no palco, a ponto de fazê-lo comunicativo e efetivamente popular?

   - Sem dúvida, uma vez que me preocupo em escrever uma crônica e retratar fatos de modo a torná-los mais visíveis, ilustrá-los como num desenho, através do olhar satírico. A dramaturgia, ou seu princípio de narração, é assim um instrumento que traduz num palco popular a nossa vontade de explicar e esclarecer, de forma comunicativa, simples e em viva voz, os fatos que acontecem. E é popular porque não simplifica as contradições do real, mas se converte em vontades opostas, agentes em conflito, porque, no palco, as ideologias se manifestam em carne e osso, se revelam como personagens.

   A descoberta das Américas. Tradução e adaptação de Alessandra Vannucci e Julio Adrião sobre texto de Dario Fo. Direção de Alessandra Vannucci. Casa Mercado 45, Rua do Mercado, 45, Praça 15, Centro (2262-1739). Capacidade: 50 pessoas. Quarta e quinta, 19h. R$ 10. Estudantes e idosos pagam meia. Duração: 1h10. Até 8 de dezembro.

(© JB Online)

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