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"Os Sonhadores" capta espírito libertário dos anos 1960



 

Cena de Os Sonhadores

Por Jean Oppenheimer

   VENEZA (Hollywood Reporter) - Os espectadores que não se chocarem com as imagens explícitas de nudez e incesto entre irmãos talvez se perguntem o quê, exatamente, o diretor de obras reverenciadas -- embora polêmicas -- como "O Conformista" e "O Último Tango em Paris" achou que iria comunicar com esta história de três jovens em Paris durante a primavera de 1968, "Os Sonhadores".

   O fato é que a intenção declarada do diretor italiano Bernardo Bertolucci de criar um filme que captasse o espírito libertário da época -- quando as fronteiras políticas, culturais e morais estavam sendo ampliadas e redefinidas -- parece ter sido prejudicada pela história específica que ele optou por contar. O filme é baseado no romance de Gilbert Adair "The Holy Innocents", de 1988.

   Os gêmeos de mais ou menos 19 anos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (a novata Eva Green) ficam sozinhos em seu apartamento em Paris quando seus pais partem para um mês de férias. Eles convidam um jovem estudante norte-americano que acabaram de conhecer, Matthew (Michael Pitt), de 20 anos, para hospedar-se com eles.

   Os três são cinéfilos convictos (eles se conhecem na Cinemateca Francesa) e o tempo todo testam seus conhecimentos mútuos sobre cinema. Além disso, eles curtem joguinhos sexuais e mentais, tentando pressionar-se uns aos outros para ver até onde cada um está disposto a avançar.

   Filho de uma típica família americana suburbana de classe média, Matthew sente-se incomodado com a desinibição física e sexual dos dois irmãos e fica cada vez mais preocupado com os estreitos laços emocionais e sexuais existentes entre eles.

   Totalmente apaixonado pela bela Isabelle, porém, ele acaba concordando em participar dos jogos deles, ao mesmo tempo em que os acautela sobre sua relação, que considera antinatural.

HOMENAGEM AO CINEMA

   Enquanto os três passam os dias encerrados dentro do apartamento, do lado de fora as ruas de Paris estão em ebulição. Os protestos pacíficos que começam quando o governo demite Henri Langlois da direção da cinemateca acabam sendo precursores de tumultos políticos violentos em maio.

   Theo tem todo um discurso revolucionário pronto, mas, como observa Matthew, se ele realmente acreditasse no que fala, estaria lá fora com os manifestantes.

   As tensões dentro do apartamento aumentam quando Theo e Matthew passam a competir pela atenção de Isabelle, enquanto esta luta com seus conflitos internos provocados pelos sentimentos amorosos que nutre pelo irmão.

   A regressão moral e emocional vivida pelos três jovens se espelha no descaso deles com o apartamento, que vai se transformando num chiqueiro. O clima de decadência crescente lembra "Les Enfants Terribles", de Jean Cocteau.

   O diretor inclui no filme referências a muitos outros trabalhos, intercalando a ação com clipes de alguns dos filmes favoritos dos personagens, incluindo "A Rainha Christina", "A Vênus Loira", "O Picolino" e "Band-a-Part".

   Os personagens o tempo todo citam trechos e representam cenas desses filmes, e "Os Sonhadores" poderia facilmente ser visto como homenagem sentimental ao cinema, não fosse por sua temática incomum.

A NOVA JEANNE MOREAU

   Política e historicamente, a primavera de 1968 marcou um ponto de transição importantíssimo em toda a Europa. A dissensão política espalhou-se pelas ruas, e a geração jovem encontrou novas formas de expressão na fusão de arte com cinema, política, rock'n'roll, filosofia e drogas.

   Mas, se Bertolucci estava tentando captar em seu filme aquele espírito de rebelião, experimentação e esperança, escolheu a história errada para isso. Os manifestantes nas ruas de 1968 esperavam transformar a sociedade para melhor. Já Theo e Isabelle são narcisistas cujo único compromisso é com eles mesmos.

   A trilha sonora do filme é maravilhosa, a melhor que havia em 1968: Janis Joplin, The Doors, Jimi Hendrix. Em sua estréia no cinema, a beldade Eva Green com certeza será a mais comentada do filme, com a sensualidade madura, a melancolia e o ar destrutivo de Jeanne Moreau quando jovem.

   Aliás, ela chega a ser parecida com Moreau, se bem que seus traços sejam mais delicados. Sua performance como atriz também é impressionante, e ela e Garrell transmitem um clima de intimidade emocional totalmente convincente. Michael Pitt também se sai bem em seu papel.

   A temática perversa de "Os Sonhadores" com certeza vai suscitar objeções, mas a verdadeira falha do filme é o fato de que nem a história, nem os personagens conseguem captar o espírito da época que, teoricamente, Bertolucci se propôs a rememorar.

(© UOL Cinema)


Barricadas do amor

Bernardo Bertolucci recupera a nostalgia de uma nova revolução em "Os Sonhadores"

BOB FLYNN
DO "INDEPENDENT"

   O cineasta italiano Bernardo Bertolucci desce a curva branca do passeio de frente para o mar em San Sebastián (Espanha) parecendo muito mais velho do que os 63 anos que tem.

   O diretor de marcos do cinema como "Antes da Revolução" (64) e "O Conformista" (70), que alcançou a fama mundial com o várias vezes oscarizado "O Último Imperador" (87) e a infâmia universal com "O Último Tango em Paris" (72), se apóia numa bengala e dirige um sorriso cansado à multidão de fotógrafos.

   Em setembro passado, o ex-"enfant terrible" foi ao Festival de Cinema de San Sebastián para promover seu 22º filme, "Os Sonhadores", adaptado do romance de Gilbert Adair "The Holy Innocents", que agora estréia no Brasil. Bertolucci pode ser um "enfant" um tanto quanto envelhecido, mas seu novo filme se reconhece como uma volta dele à sua forma e uma tentativa de recuperar memórias de sua juventude, imersa em radicalismo dos anos 60, sexo e flashbacks cinematográficos.

   Embora o filme tenha sido saudado como a volta por cima de Bertolucci, o diretor parece decididamente soturno -estado de ânimo que não foi ajudado por um disco compactado e deslocado, mas que também é conseqüência de ele se ver, mais uma vez, lutando contra as tesouras do estúdio e da censura, que ameaçaram ou fazer cortes drásticos no conteúdo sexual explícito do filme ou condenar "Os Sonhadores" à sentença de morte comercial de uma classificação NC-17 nos EUA, que, na prática, exclui o público vital dos menores de 17.

   Os tumultos e a política revolucionária dos anos 60 constituem o pano de fundo de cenas de nudez, masturbação e a perda de virgindade da heroína, Isabelle, representada por Eva Green, uma pálida parisiense que é o ponto focal das atenções carnais de seu sorumbático irmão gêmeo, Theo (Louis Garrel), e de um estudante americano recém-chegado a Paris, Matthew (Michael Pitt).

   "Eu estava preparando uma seqüência de "1900", para atualizar a história da Itália", diz Bertolucci, referindo-se a seu épico sobre a história italiana, produzido em 1976. "Mas li o livro de Gilbert. Era tão fiel ao clima dos anos 60... Essa foi uma época que conheci bem e me identifiquei profundamente com a história e seus personagens. Quis voltar àquele tempo e fazê-lo reviver. Queria reencontrar aquele clima."

   A campanha de Bertolucci antimutilação funcionou, e "Os Sonhadores" vai ser lançado em versão sem cortes. É a primeira vez em seis anos que um grande estúdio assume um risco desse tipo. "A distribuidora Fox sempre gostou do filme", disse Bertolucci, "e fico muito satisfeito por ela lançar a versão original. Como eu sempre falei, um orgasmo é melhor do que uma bomba".

   "Os Sonhadores" é um filme fortemente pessoal -se bem que, em parte pelo fato de o próprio Bertolucci ter quebrado tantos tabus nos anos 70, as cenas de sexo já não choquem.

   Mas o longa-metragem é carregado de referências cinematográficas, e sua trilha sonora é repleta de Jimi Hendrix e The Doors, lançando um olhar para trás, muito mais do que para o futuro. Bertolucci explica: "Tantas e tantas vezes a nostalgia é vista em sentido negativo, mas eu sinto saudades, sim, do idealismo. Acho que podemos ser nostálgicos sem sermos sentimentais. Hoje não seria possível fazer os filmes que fazíamos nos anos 60 e 70 -o clima não é apropriado".

   "Não sou um cineasta político, mas a política está em meus filmes, é verdade", declara. "Mas tenho me sentido cada vez menos instigado pela política. Hoje em dia a política chega destituída de qualquer ideologia."

   Entretanto, 1968 foi uma primavera falsa, o establishment venceu e, hoje, a impressão que se tem é que aquela época foi um breve período de idealismo social e liberação pessoal tão exóticos e inacreditáveis quanto Camelot. "É verdade que a revolução não aconteceu", concorda Bertolucci. "Sob esse aspecto, o movimento dos anos 60 foi um fracasso. Mas, sob muitos outros, foi um fenômeno social. Foi o início do feminismo. Foi uma época muito importante. As coisas mudaram, sim." (Tradução de Clara Allain)

(© Folha de S. Paulo)


CRÍTICA

Filme revela capacidade do cinema de substituir a vida

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

   Em "Os Sonhadores" há duas míticas superpostas. A primeira, da cinefilia parisiense. A segunda, a de Maio de 68.

   Cinéfilos são esses malucos que passam o dia vendo filmes. Formam uma espécie de comunidade meio à parte do mundo. Reza a lenda que Maio de 68 começou na Cinemateca Francesa, quando o ministro da Cultura André Malraux decidiu demitir Henri Langlois, o fundador da instituição.

   Houve greve de cineastas, a cinemateca fechou. Resumindo: como em Paris não há coisa mais séria que o cinema, Malraux enfiou a viola no saco e Langlois voltou à Cinemateca. É nessa crise que o estudante americano Matthew conhece Isabelle, ou Eva Green, que promete ser o rosto mais sublime do cinema na próxima década. Ela está acompanhada do irmão, Theo.

   Ambos são cinéfilos doentes. Com a cinemateca fechada, nada ocorre aos irmãos exceto retirar Matthew de sua pensão e levá-lo ao apartamento em que vivem. E, como não há filmes na cinemateca, nada lhes resta senão começar a viver.

   É o aspecto mais intrigante deste filme: essa capacidade do cinema de substituir a vida, ao mesmo tempo em que cria modelos para a vida imitar. Só porque não há filmes, os três se entregam a uma intensa amizade, em que o caráter incestuoso da ligação dos irmãos (mais do que incesto, é um caso de irmãos siameses de sexos diferentes: são dois, mas são um) e a relação com Matthew se intensificam. É o aspecto escandaloso da história. Há outro: tudo se passa sob o signo do cinema.

   Homenagem de Bertolucci ao Maio de 68, "Os Sonhadores" aproxima dois tipos de sonhos, os que se produzem dentro do cinema e os produzidos nas ruas. Como se ao fim perguntasse do que Maio de 68 salvou uma geração (não só os cinéfilos). Da loucura, talvez? Pode ser: logo no início as imagens que correm na tela são as do "Shock Corridor", de Samuel Fuller. E a história da juventude no pós-guerra talvez esteja condensada nessa passagem da insânia reprimida nos hospícios à sanidade libertária obtida nas ruas.

   Ao final, "Os Sonhadores" chega tão embebido em mitos que já não sabemos se vemos uma mitologia (a de 68) envolta em outra (a da cinefilia) ou se é o fantasma insepulto de um velho cinema que reaparece, mais ou menos como Drácula, essa carcaça morta a que só a imagem dá vida.

Os Sonhadores
The Dreamers
   
Direção: Bernardo Bertolucci
Produção: ITA/FRA/ING/EUA, 2003
Com: Michael Pitt, Eva Green
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Lumière e circuito

(© Folha de S. Paulo)


Heróis da indecisão

Como tantos de Bernardo Bertolucci, personagens de Os Sonhadores se detêm na encruzilhada entre infância e madureza até que a história os arraste para frente

Por Alcino Leite Neto

   Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, talvez seja a primeira produção “mainstream” do cinema a reconstituir, com barricadas e tudo, as revoltas de Maio de 1968 em Paris. O filme, porém, é muito mais a história de um triângulo amoroso do que a recapitulação dos confrontos políticos da época. A dimensão política só aflora de fato ao final da aventura afetiva e sexual, como parte do desfecho moralizante do filme. Os Sonhadores é herdeiro de Henry Miller, não de Guy Debord.

   Em 1968, em Paris, o jovem americano Matthew (Michael Pitt) conhece os gêmeos franceses Theo e Isabelle (Louis Garrel e Eva Green) durante um protesto na Cinemateca Francesa contra a demissão do diretor Henri Langlois — momento importante na escalada de acontecimentos que levariam às revoltas de maio. A fervorosa cinefilia aproxima o americano desengonçado e os franceses cheios de ousadia. Mas é a dessublimação dessa cinefilia que interessa a Bertolucci.

   Aos poucos, a imaginação do cinema fica em segundo plano em relação aos jogos sexuais que os personagens realizam, trancafiados num apartamento labiríntico. Depois da paixão cega pelo cinema, o sexo hedonista é a segunda modalidade de alienação, vamos dizer assim, neste filme que não oculta seu objetivo didático para as platéias juvenis (o que o diretor confirmou em várias entrevistas). Quando a “trip” cinéfila e sexual entra num beco sem saída, os protagonistas são despertados brutalmente para fora de si, ou seja, para a realidade — e ganham, enfim, o mundo político.

   Sempre ocorre dessa maneira em Bertolucci. Seus personagens são heróis da indecisão que se vêem na encruzilhada entre infância e madureza, imaginação e realidade. Receosos de perder o paraíso, restam indecisos, até que a história os arrasta impiedosamente para frente. É assim em Antes da Revolução (1964), O Último Imperador (1987) e Novecento (1976).

   Bertolucci já filmara um americano armando estripulias sexuais em Paris em O Último Tango em Paris. Em 1972, o fracasso da revolução de maio contribuiu para que desse ao filme um desfecho trágico — Marlon Brando simbolizava uma geração derrotada, e o sexo onipresente era uma manifestação do desespero.

   Os recentes movimentos de antiglobalização, que têm reunido tantos jovens em várias partes do mundo, incentivaram Bertolucci a resolver Os Sonhadores de maneira mais otimista. Mas o diretor simplifica em demasia Maio de 68, ao dispensar praticamente todo o debate político da época, seja por razões narrativas ou comerciais. Do movimento, parece só se interessar por sua parte mitológica, a menos interessante.

   Os Sonhadores dificilmente será classificado como um dos grandes trabalhos de Bertolucci, ao lado de Antes da Revolução, A Estratégia da Aranha (1970), O Último Tango em Paris, Tragédia de um Homem Ridículo (1981) e Assédio (1998). É um filme repleto de pequenos clichês e facilidades narrativas, seja na reconstituição da época, seja na composição dos personagens. As citações de filmes clássicos são divertidas no início, mas tornam-se enfastiantes. A citação da cena de suicídio de Mouchette (1967), de Robert Bresson, transforma a cena equivalente numa bobagem e deixa ver com clareza o vazio para onde Bertolucci nos conduz no final de seu novo filme.

(© BRAVO)

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